
Eu decidi me mudar. Depois de dez anos morando em repúblicas com gente de todo jeito, eu aluguei um apartamento para mim. Finalmente eu ia poder seguir minha vida sem pensar no que a mãe da Tati ia fazer quando descobrisse que a moça que estava sempre comigo era a minha namorada e parar de brigar todo dia antes mesmo de tomar café porque só tem um banheiro com chuveiro e quatro mulheres que saem na mesma hora para trabalhar.
Estava feliz. Cheguei a me sentir uma adulta de verdade. Apesar de ter precisado pedir meu pai para ser meu fiador. Depois deixei de me sentir assim. Quando decidi que era hora de me mudar, o maior motivo foi a minha vontade de ter um lugar em que pudesse ficar à vontade com a Juliana. Estávamos juntas há três anos e toda vez que eu visitava apartamentos para escolher minha futura moradia, eu pensava nela comigo naquele espaço. Avaliava se a cozinha era boa para a gente cozinhar em dupla, como gostamos, e julgava se naquele lugar daria para adotar um cão vira-lata caramelo que na minha cabeça se chamaria Megan por causa da Megan Rapinoe. Antes de analisar se o preço do aluguel valia a pena, eu olhava no Google a distância entre o apartamento e os nossos trabalhos e quais ônibus a gente teria que pegar para irmos onde sempre vamos. Tudo foi pensado em nós, mas eu me mudaria em três semanas e ainda não tinha falado para Juliana que eu queria que ela se mudasse comigo e a felicidade de dar esse passo tinha virado uma angústia sem fim.
Me sentia ridícula por não conseguir convidá-la para morar junto. Nunca me dei bem com palavras faladas. Elas sempre saíam da minha boca entrecortadas e artificiais. Eu tentei várias vezes. Desistia quando eu notava que ia parecer discurso de agradecimento do Oscar. Tudo soava forçado. Nos ensaios, eu parecia um robô programado a fazer um discurso amoroso. Por isso, pensei em escrever uma carta. Desisti. Achei coisa de covarde. Eu sou covarde, mas há níveis de covardia que até hoje eu me recuso a atingir.
Decidi comprar um cupom no Groupon e convidá-la para jantarmos num restaurante chique. No caminho, conferi se estava com minha chave do novo apartamento e uma cópia. Ambas já com chaveiro, porque eu sempre penso em tudo, mesmo antes de falar qualquer coisa. Queria entregar a dela já com o símbolo da casa Stark posto. Ela adora “As crônicas de Gelo e Fogo”. A minha, no entanto, já estava com o emblema da casa Lufa-Lufa, porque eu morro de preguiça do George Martin e sou lufa-lufana com orgulho.
Tudo estava pronto, perfeito até. Tinha que ser no jantar. Não dava mais pra fugir. Eu precisava falar. Não queria montar a casa sem ela saber que é algo nosso, sabe? Seria injusto com ela e até comigo.
Entrada, prato principal e sobremesa. O cupom nos permitia escolher várias opções. Peixe não. Salada de entrada não. Se bem que tem palmito. No fim das contas, fui no prato que levava um creme de batata baroa. Estava delicioso ou eu me lembro assim porque essa noite terminou muito bem.
“Será que a gente devia pedir um vinho?”, eu disse enquanto pensava que aquilo com certeza daria um ar mais romântico ao jantar, mesmo que a gente deixasse a taça praticamente intocada ao lado do prato. A verdade era que a vontade era de chamar o garçom e dizer: “Desce uma subzero aí, parça!”. Compartilhei esse pensamento com ela. Ela riu bastante. Pedimos chopp artesanal no lugar. “Acho que dá para falar que conseguimos achar um meio termo entre o vinho chique que deixa a gente com a língua estranha e a subzero de sempre”, ela disse.
Enquanto a gente comia, ela contava coisas engraçadas que aconteceram no trabalho dela. Tinha surgido um cara chamado Segunda-feira por lá. Todo mundo da repartição achou que ele ia requerer mudança de nome, mas ele só queria ver como ia o processo dele contra um banco. Também tinha uma outra história, mas eu não sei mais sobre o que era. Eu estava lá, sem prestar atenção, nervosa e pensando que tinha que ser naquela hora, que eu tinha tudo ao meu favor, mas, só para variar, eu não conseguia falar.
“Petit Gateau ou Crème Brûlée?”, Juliana disse totalmente formal quando acabamos de comer o prato principal. “O que diabos é Crème Brûlée? Como fala isso? Será que eu peço?”, reagi. Pedimos o creminho, mesmo sem saber o que era. Um pouco de coragem ao pedir o prato podia me ajudar a agir e fazer o convite oficial e, para falar a verdade, eu até acho que isso me ajudou no final das contas.
Eu tinha que abrir o jogo antes do jantar acabar, mas pensar na palavra oficial me deixou ainda mais desconfortável. Não queria soar como um ofício institucional. As sobremesas deviam chegar em minutos. O tempo estava acabando e eu estava ainda mais ansiosa com tudo aquilo. Decidi ir ao banheiro para enrolar, fazer um xixizinho e jogar uma água na cara.
“Que limpo! Nem parece que alguém mija aqui!”, pensei ao passar por aquela porta de madeira enorme e me deparar com azulejos claros, um vasinho de planta, uma pia bem decorada e cheirinho de lavanda. Tinha papel higiênico na cabine, infelizmente um luxo na maioria dos bares que frequentávamos na época, e ainda era um daqueles super macios e cheio de camadas! Sei que isso vai soar decadente, mas esse papel era uma novidade e tanto para minhas partes! Nessa hora, segurando a risada, decidi que tinha que voltar para mesa logo e fazer o convite nem que fosse do jeito mais tosco possível só para depois falar com a Juliana sobre ela precisar conhecer o banheiro antes de ir embora. Infelizmente toda a coragem me escapou quando me olhei no espelho ao lavar as mãos e me deparei com o meu olhar inseguro de sempre. Ali iniciei um breve monólogo encorajador e, para vergonha minha, em voz alta. Não lembro bem o que falei comigo, mas acho que foi algo assim: “Vai, Letícia, pense em outra coisa. Pense no papel higiênico macio. Pense na ousadia de pedir o creminho francês. Pense na Juliana e no cachorro que vocês vão adotar juntas. Pense em como vai ser bom acordar sempre ao lado dela. Pense que só falta suas palavras para fazer isso tudo acontecer. Respira fundo. Joga uma água na cara. Deixe vir espontaneamente. Pare de falar consigo mesma se olhando no espelho. Vai que alguém entra aqui e te vê falando sozinha desse jeito. Vão achar que você está metida com coach, Letícia! Vai para mesa agora! Vai logo!”
Lembro de ter voltado para a mesa morrendo de vergonha pensando que alguém podia ter tentado ir ao banheiro e se deparado comigo falando sozinha e decidido dar a meia volta porque era melhor ficar apertada do que lidar com uma possível doida, mas sei que logo me esqueci disso, porque assim que sentei de novo na cadeira, a Ju me perguntou sobre uma oficina literária que eu estava fazendo.
As aulas de escrita criativa foram divertidas, falei, e disparei a contar todos os detalhes: os exercícios feitos em aula, os deveres de casa, o medo do meu trabalho ser visto como ridículo, o incentivo que ouvi dos colegas e blablabla. No meio disso, me lembrei que a professora me aconselhou a criar cenas na hora de escrever e a parar de achar que preciso colocar todos os pingos nos is, deixar tudo explicadíssimo. Segundo ela, há formas mais fáceis de mostrar o que queremos. Criar cenas, por exemplo. Ao falar isso em voz alta, eu finalmente soube o que fazer e coloquei a minha chave na minha frente. Me levantei e posicionei a dela bem ao lado do pratinho de Crème Brûlée que ela saboreava. Parei ali, ao lado dela, olhei para aqueles olhos brilhantes e sorri. Ela me olhou de volta com uma expressão de alegria e surpresa. A risada dela é sempre deliciosa.
Só precisei falar “Vamos?”, logo depois de nos beijarmos, para ela dizer sim e o garçom que viu toda a cena começar a aplaudir e assim puxar as palmas das mesas ao nosso redor.
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Observação: Quando tentam censurar e intimidar quem publica, vende, lê e escreve literatura com presença de LGBTs, a gente vê o quanto é necessário escrever, publicar, ler e vender mais e mais livros com essa temática e/ou esses personagens.
Conservadores fanáticos surfam no medo das pessoas pelo que elas não conhecem para buscar votos ou apoio e é por isso que é tão importante espalhar essas histórias. Quanto mais elas forem lidas e conhecidas, menos terror vai dar para fazer com base nisso. É com o contato com histórias de amor, sexo e descoberta que envolvam casais de mulheres ou de homens que a sociedade vai, enfim, entender que não há o que temer.
A questão por trás dessas atitudes autoritárias não é “proteger as criancinhas” e nem uma mera questão de classificação indicativa ou qualquer outra desculpa. A intenção deles é cercear o direito das pessoas conhecerem narrativas que fujam da heteronormatividade e dos papéis tradicionais de homens e mulheres, ainda que elas sejam adequadas para crianças, e a gente não pode se esquecer disso. Para eles, mesmo as ingênuas mãos dadas podem ser vistas como um conteúdo perigoso, pornográfico, promíscuo, se forem um carinho entre pessoas do mesmo sexo. O problema deles não é só com o erótico e o sexual em si. Vai muito além. É homofobia, bifobia e lesbofobia.