Minha mãe sempre me pede para elaborar mensagens de aniversário, casamento, feliz natal e formatura. Qualquer celebração é um motivo para ela enviar um cartão, um bilhete, uma mensagem no WhatsApp para qualquer pessoa que ela goste. Eu digo “não” e ela me desafia dizendo “por que isso se você é tão boa nessas coisas de escrever?”
Sempre insisto no não. Digo que posso revisar a mensagem, sugerir edições, preparar o texto, mas escrever por ela sobre isso é impossível. Meu léxico é limitado demais. Sobra palavra, falta comida, é esquisito. E todas as cartas de amor são ridículas, mas as mensagens que minha mãe envia para amigos e familiares são bonitas, atenciosas, construídas sem medo dos clichês se eles ali couberem.
Eu juro, essa negativa minha não vem de nenhum lugar estranho e sombrio. Esse não é um caso do famigerado não aleatório que surge porque quando nasci um anjo Do Contra disse que eu seria uma representante dele na Terra. A resposta dessa teimosia que se repete há anos é simples: como posso escrever sobre amor em nome dela se é ela quem verdadeiramente entende do riscado?
Hoje tento dizer a ela com essa mensagem (pública, vejam só!) que pra mim só dá pra rascunhar algo sobre amor se a destinatária for ela.
Nesse caso, posso me arriscar a falar do meu amor de filha em uma estranha crônica de Instagram, porque eu sei que ela vai gostar e é isso que me importa agora. Hoje me coloco como remetente, como nas cartas de dia das mães que aprendi a fazer na escola, simplesmente porque eu te amo, mãe.
Prometo fazer um cartão melhor no seu aniversário. Quem sabe até novembro eu aprenda a ser mais direta.
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já não me lembro mais a exata cor dos azulejos do meu antigo banheiro
carrego comigo uma saudade estranha dos azulejos azuis do banheiro que chamei de meu durante mais de cinco anos. minhas sinapses tentam preservar cada quadradinho pregado na parede. durante o esforço de mantê-los nítidos, junto da pia, do bidê, da privada, das saboneteiras e outros detalhes — todos esses em seus devidos lugares e no tom de azul escuro correto — penso nas padarias que deixei para trás.
disse adeus para a Sabinão, para Arte do Trigo, para a Dupão e para a produção panificadora da rede de supermercados Verdemar e isso me lembra que a cozinha do apartamento que eu morava até mês passado também era de ladrilho, como o banheiro que sinto tanta falta.
nunca comi pão e nem bolo olhando para os raminhos de trigo dispostos em azulejos ao lado do filtro de barro que me seguiu de volta para Divinópolis. talvez se essa parte do apartamento fosse de um amarelo bonito, eu diria, inspirada em minha de novo conterrânea Adélia Prado, que essa cozinha estava constantemente amanhecendo. mas essa cozinha era de um azulejo amarelo feio que passou batido e nunca conseguiu inspirar um poema meu, nem minhas papilas gustativas. ainda bem que sempre estive rodeada de bons pães para isso.
e então penso nos pontos do transporte público do bairro, nas linhas 8102 e 8150, que me pegavam tão perto de casa sempre que eu precisava. e também nas vezes que eu descia longe, porque vim de 9410, esse ônibus que ficou inscrito em mim por trajetos anteriores ao dessa vidinha e vez ou outra me aparecia como solução mais fácil, embora não fosse.
nesses dias, eu descia ruas acima e circulava pelo bairro todo, andando e buscando o caminho que fosse mais bonito, tivesse menos morro e não me levasse para mais longe. costumava escolher o caminho do melhor pão, mesmo que no fim sempre desviasse para me esbaldar na sorveteria.
depois do sorvete, não consigo me ver mais no pretérito imperfeito e, de repente, estou pulando de uma sorveteria para outra, enquanto busco o melhor sabor de cada uma delas. alimentada, me desloco em segundos até uma agência dos Correios, a certa, aquela dos atendentes legais que nunca encrencaram com meus envios em impresso módico. visto uma roupa nova, mais recente até que minha mudança, enquanto ando nos corredores da Feira dos Produtores procurando a farofa que gosto de comer com feijão, compro uvas sem sementes no varejão, ando, corro e troto na rua de bares e restaurantes do bairro e penso, mais uma vez, que a Avenida José Cândido está muito perto e muito longe dali, e acabo andando mais devagar do que devia entre aqueles que bebem uma cervejinha no fim da tarde.
no meio da caminhada, paro para almoçar um surubim no espeto, janto sushi, procuro algum self-service para o almoço seguinte. e volto a pensar nas sorveterias. e também nos prédios azulejados que vi ao lembrar todos esses trajetos. nenhum desses prédios era feito de azulejos tão azuis quanto aos do meu antigo banheiro. que pena!
Ao som de Prélude nº 1 — Melodía lírica de Heitor Villa-Lobos
Andar de meias pela casa é uma experiência sem volta, amor. Uma só vez deslizando pelo corredor até o meio da sala será o suficiente para fazer aparecer na sua frente um complexo de patinação artística entre o rack da TV e a porta para a cozinha.
No começo, cada toque dos pés protegidos por meias 100% algodão chega ao piso irradiando conforto, vontade de correr e medo de se estatelar. E, de repente, sem qualquer planejamento, você se deixa ganhar velocidade e cai em gargalhadas quando se vê derrapando até desabar de qualquer jeito no sofá. O taco gasto do apartamento alugado chamado de casa de repente pura pista de gelo.
Da janela, o sol distante das primeiras horas da manhã parecia um floco de neve quente que avermelhava a alvorada prestes a se fazer derreter em uma imensidão azul, sem nuvens. Ainda pálido, ele iluminou a minha primeira acrobacia e ela, que surgiu de maneira tão desajeitada a partir de um impulso que veio não sei de onde, talvez da vontade de imitar Frajola que tinha pulado no tapete somente pelo prazer de deslizar, iniciou essas Olimpíadas de Inverno.
Agora o movimento dos apartamentos ao redor indica que a vizinhança se prepara para começar sua rotina, como eu e você estávamos antes de sermos botados para dançar ao som dos passarinhos, gatos pedindo ração e despertadores. Sei que hoje será diferente pelas risadas. E pelo som das quedas, esbarrões, móveis sendo arrastados e controles remotos fazendo piiiiiii antes de quebrarem de vez.
São tantos risos que, no apartamento debaixo, a cachorrinha Calabresa dá um latido estridente, segundos antes de pular no colo da dona Dirce que parece brincar de girar na cadeira de escritório da filha. Alguns vizinhos também cantam, outros acordam lentamente já seduzidos a fazer de patins suas meias. A maioria, ainda de pijama, só dança sorrindo se mostrando pela janela com as cortinas escancaradas pela primeira vez em meses.
São tantos dentes à mostra que começo a pensar que estou dentro de uma boca e é por isso que a sala se tornou lugar de saborear. A boca enorme é o que me deixa escorregar sem me estripar toda. Meu tapete, uma gengiva macia. Uma língua gigante me impede de cair, impede o bairro inteiro de descer goela abaixo ao som das próprias gargalhadas. E a luz, que vem de fora, gelada, porque ainda venta frio em Belo Horizonte, se derrete como picolé nessa boca quente e lúbrica. E eu sigo com você, dançando pelos dentes, me deixando levar corredor adiante pelo suor e pela saliva, porque sei que essa boca se abriu assim por estar cansada de nos devorar.
“Domesticidades”, diz a capa de um pequeno livro turquesa numa exposição de arte. Não posso folheá-lo, conferir o que foi revelado ali. “Domesticidades” está enclausurado, protegido das minhas mãos meladas de suor e álcool em gel. Dentro da mesma redoma de vidro, há um outro exemplar, esse aberto na página 72. Alguém definiu que isso seria o que eu veria das tais domesticidades, mas o reflexo da luz no mostruário tornou aqueles borrões de quintais um desafio de se enxergar.
Quero saber quem escolheu destacar a página 72. Descubro no texto de apoio dois nomes: Renata Marquez e Wellington Cançado. E encontro a descrição da ideia, uma possibilidade de vislumbrar a obra sem saber o que diabos tem nela. Usando fotos disponíveis em sites de imobiliárias, nasceu um guia dos lugares não visitáveis de BH. Ali está um arquivo mal fotografado de um mundo de inquilinos e proprietários que buscam a ilusão de fazer algum espaço seu.
Captar a vida privada é um desafio da memória coletiva. As domesticidades não estão totalmente visíveis nem nas mais cruas fotos do Instagram. Elas estão enclausuradas, como a obra de Renata e Wellington está. Documentar o universo íntimo é um desafio também para a memória individual. Quando estou fora, penso na minha escrivaninha organizada, sendo que ela com certeza está entulhada de livros, papéis, canetas e itens tecnológicos relacionados a esse computador que me serve de máquina de escrever e conexão com o mundo.
O registro das domesticidades — e talvez até mesmo a própria memória — sofre com o medo do julgamento e da inescapabilidade do banal. Vivo de maneira aceitável? Sou suja? Porca? Cafona? Mimada? Durmo demais? Sou gente? Sou bicho? Existo?Tem algo que importe aqui?
Talvez nem mesmo o cronista mais atento consiga assimilar completamente o meio termo entre o conforto de uma cama desarrumada e o nojo de uma pia suja. Só os gatos sabem, porque eles têm como hábito jogar ao chão todas as redomas de vidro.
Esse texto foi escrito por mim para o módulo “Ler e escrever crônicas” da Iana Soares a partir de uma proposta que envolvia a ideia de “Nomear o tempo” e fotografias autorais. Esse módulo fez parte da minha turma da especialização em Escrita e Criação da Unifor, curso de pós-graduação coordenado por Socorro Acioli.
Para fazer esse exercício, parti de uma visita a um museu de Belo Horizonte em que encontrei essa obra aprisionada para refletir sobre memória, o eu e o Outro.
Colagens digitais de Thaís Campolina a partir de fotos de Barbara Olsen
Ma-má? Mã-mã? Ma-mã-ma-mãe? Mamãe? Vem cá, mamãe. Mamãe, dorme comigo hoje? Por que, mamãe? É só um au-au, mamãe. Mamãe, eu quero. Não, mamãe. Desculpa, mamãe. Mamãe, o que é isso? Não é nada não, mamãe. Mamãe, me dá? Por que, mamãe? Mamãe, cê tá triste comigo? Me conta uma historinha, mamãe. Mamãe, eu não quero. Olha que bonito, mamãe! Mamãe, cê gostou? Vem brincar, manhêêêê! Mãe, cuidado com a bola! Eu juro que não fui eu, mãe. Eu prometo, mãe! Mãe, foi sem querer. Ah nem, mãe. Mãe, que saco! Toda hora isso, mãe. Mãe, posso dormir na casa da vovó hoje? Chuta pra mim, mãe! Que bicuda você deu, mãe! Por que não, mãe? Não quero brincar de boneca, mãe, não gosto mais. Foi mal, mãe. Vamos dormir mais tarde hoje, mãe? Mãe, deixa eu levar esse gatinho pra casa? Que que tem, mãe? Mãe, o que eu faço agora? Não vou calçar essa sandália hoje, mãe. Não gosto, mãe. E quem disse que eu ligo para isso, mãe? Não quero, mãe. Mãe, eu já falei que eu não quero! Mãe, nem vem que já não sou mais criança. Que delícia, mãe! Me ensina, mãe? Deixa eu ir, mãe. Mãe, por favor! Ai, mãe, cê não vem mesmo nadar com a gente? Mãe, por que você tem que fazer isso toda vez que eu vou sair? Como você era na escola, mãe? Cê ia bem em tudo, mãe? Mãe, me ajuda com esse zíper. Mãe, me empresta essa jaqueta? Boa noite, mãe. Só hoje, mãe. Mãe? Me deixa tentar, mãe. Eu sei, mãe. Mãe, que saco! Mãe, o que você tá fazendo aqui? Por que você fez isso, mãe? Mas eu não gosto, mãe. Eu não quero usar mais essas roupas feias suas, mãe. Ai, mãe. Tudo bem, mãe? Me dá uma carona, mãe? Obrigada, mãe. Mãe, que livro é esse que cê tá lendo agora? Mãe, me deixa em paz. Não quero falar com você agora, mãe. Eu quero ficar sozinha, mãe! Mãe, que gracinha! Te contei, mãe? O que está passando na TV, mãe? Esse programa é bom, mãe? Mãe, eu quero é isso pra mim. Ai, mãe, eu já não sei mais o que fazer. Me ajuda, mãe. Mãe, cê não vai acreditar… Você já fez isso mesmo, mãe? Jura? Mãe, agora tá pronto, pode olhar. Ficou bom, mãe? Não tem nada demais nisso, mãe. Não precisa ficar elogiando, mãe. Mãe, deixa de ser boba. Uai, mãe… Cê adorou, né mãe? Mania nova, mãe? Valeu, mãe. Que beleza, mãe! Mãe, mas cê já vai? Chegou cedo hoje, tava com saudade de mim, né mãe? Mãe, você viu isso? Vamos fazer alguma coisa diferente esse domingo, mãe? Mãe, cê ficou sabendo? Tava bom demais, mãe. Do que você tá falando, mãe? Não se faz de sonsa, mãe. Mãe, o que cê achou? Curtiu, mãe? Que vergonha, mãe. Dá licença, mãe. Gostou do presente, mãe? Vem tirar foto, mãe! Mãe, tudo vira neura na sua cabeça. Mãe? Credo, mãe, que mania que você tem de botar defeito nas minhas coisas. Bom apetite, mãe! Vai um baralhinho hoje, mãe? Mãe, eu já disse que não quero mais. Vou ter que repetir, mãe? Sério isso, mãe? Mãe, deixa eu ver. Vamos agora, mãe? Já tá na hora, né? Mãe, como foi lá? Deu pra entender bem, mãe. Que que foi, mãe? Nossa, mãe, me conta isso direito. E essas fotos antigas, hein, mãe? Olha essas roupas esquisitas que todo mundo usava, mãe! Esses cabelos, mãe! O que vamos fazer hoje, mãe? Ai, ai, mãe. Se anima aí, mãe! E o que você disse, mãe? É assim que se faz, mãe! Mãe, quer emprestado? Me mostra logo como ficou, mãe! Mãe, tô curiosa! Tá toda toda, hein, mãe? Mãe, como você não entendeu ainda que eu faço o que eu quiser? Mãe? Mãe, tô preocupada com você. Conversa comigo, mãe. Mãe, você não presta atenção no que eu falo mesmo, hein? Mãe, já marcou seu médico? O que o médico falou, mãe? Mãe, que saco, hein? Toma esses remédios direito, mãe. Mãe? Quer vir pra cá, mãe? Cê gostou, mãe? Mãe, cê mesma quem fez? Lá vem você de novo com esses trem, né mãe? Ai, mãe. Não sei, mãe. Se animar, eu te levo, mãe. Me conta isso direito, mãe. E cê acreditou, mãe? Ai, mãe, eu não aguento mais. Quem disse que ia ser fácil, né mãe? Quer um pouquinho, mãe? Mãe, vem dançar! Onde você aprendeu esses passos, mãe? Você não tem jeito mesmo, né mãe? Só mais um pedaço de bolo, viu mãe? Chegou chegando, hein mãe? Mãe? Tá pronta, mãe? Tô passando aí, mãe. A gente combinou, mãe. Cê esqueceu de novo, mãe? Mãe, mas cê desistiu de ir e nem me avisou? É isso mesmo, mãe? Mãe, o que você achou? Aceita, mãe? Tá tudo bem, mãe? Obrigada, mãe. Trouxe cruzadinha, mãe. Mãe, precisa de ajuda? Bem-vinda, mãe. Mãe, pode deixar que eu faço. Tá gostando, mãe? Mãe, você sabe que você não dá conta mais. Caramba, mãe! Vem cá, mãe. Mãe?
Colagem analógica de Thaís Campolina a partir de fotos de Bárbara Olsen
Esse conto, assim como essas colagens, fazem parte da coletânea “Casa nua – maternidade devassada”, obra que reúne trabalhos produzidos pelas participantes do Coletivo Escreviventes numa parceria com a Revista Tamarina. O e-book é composto por textos em prosa e verso de 49 escritoras brasileiras e trata sobre diferentes perspectivas de ser mãe e ser filha, levando em conta também a possibilidade de não ser mãe e os aspectos políticos e sociais desse ser e não ser. Baixe o PDF aqui.
Tudo começou com um “Você sabe o que aconteceu?” impaciente e sem interlocutor definido. “Aposto que é cratera”, comentou uma jovem negra de tranças coloridas. “Mas a cratera que abriu foi em outro lugar do Floresta, moça”, respondeu um homem grisalho, de pele rosa e terno. Uma voz feminina no meio do ônibus fez questão de opinar: “Uai, pode ter aparecido mais outra aqui também, não?”. “Não seria a primeira vez”, manifestou a loira ao lado do homem engravatado.
Um menino vestido de uniforme, em pé ao lado das cadeiras altas, começou a dizer: “Mas nem choveu essa tarde…” e a frase “Não tem mais aonde ir água, filho” surgiu no ar, como se tivesse sido dita pelo calor úmido que infernizava todos os passageiros do 8102.
Fora do ônibus, um homem que carregava uma bíblia toda gasta bradou: “É o fim do mundo se aproximando!”, enquanto, dentro do coletivo, um sujeito sem qualquer característica marcante reclamou: “Que cratera o quê? É buraco. Cratera tem é em Marte!”
Alguém sacou o celular e mostrou uma notícia sobre o engarrafamento e o seu motivo para todos os curiosos ao alcance de um braço. O asfalto se rompeu no fim da tarde, minutos antes de o ônibus chegar à Assis Chateaubriand, e especialistas culpavam a chuva da noite anterior pela nova cratera.
“Chove e fura buraco na cidade inteira! Tem mais jeito não”, concluiu alguém, enquanto outro dizia: “Assim não dá mais! O prefeito tem que meter uma ponte ligando essa rua aqui com a Jacuí e depois com a Cristiano Machado”. Em resposta, uma mulher comentou: “Chuva faz buraco em ponte também, hein?” e risadas abafadas surgiram.
“Nesse calorão, sem ar condicionado, todo mundo espremido dando volta pelo bairro. Assim não dá”, desabafou aos gritos um senhor próximo ao trocador. Perto dele, sentados nos assentos preferenciais, dois idosos resmungavam sobre o azar de terem perdido o ônibus anterior, aquele que passou minutos antes de a fenda se abrir.
Além deles, havia também uma mulher que não parava de escrever em um caderninho vermelho e um vasto grupo de silenciosos que ora observava a conversa coletiva, ora encarava a tela do celular.
O papo continuou até o ônibus se esvaziar e o blá-blá-blá desceu junto com cada um dos passageiros. Uns dividiram a conversa que tiveram em casa, outros não, mas todo mundo dormiu pensando que um dia vai chover tanto, mas tanto, que um buraco maior do que a própria cidade vai se abrir e Belo Horizonte vai deixar de existir. Uma única mulher, aquela que não parava de escrever, lembrou-se de Marte e suas crateras e se levantou da cama para escrever um conto sobre o fim da vida na Terra.
*“Crateras de verão” faz parte da publicação independente & coletiva nomeada Jurema, obra que reúne textos que surgiram numa oficina sobre cotidiano ministrada pela Carina Gonçalves no ateliê de escrita Estratégias Narrativas em março (ou maio, não lembro mais) de 2018. O livreto foi lançado em fevereiro de 2019 numa Feira Textura e conta também com trabalhos de Beth Andrade, Glau Nascimento, Isabelle Chagas, Olivia Gutierrez, Viviane Moreira e da professora já citada acima. “Jurema” ainda pode ser adquirida no site do Impressões de Minas.
A linguagem nasce como um bocejo. Quando uma boca se abre e o cenho se franze, o rosto ao lado reage fazendo o mesmo. De repente, nosso jeito de falar, estruturar pensamentos e agir começa a mudar: uma palavra nova é adicionada ao vocabulário, uma pausa que não existia antes aparece, um novo jeito de mexer as mãos e balançar as pernas é imposto pelo corpo, o ritmo da respiração muda, um fonema fica mais chiado, a voz agora soa fanha, a risada ganha ou perde fôlego, você passa a dar três beijinhos ou fazer um toque de cotovelos para cumprimentar alguém e se surpreende com os músculos do rosto se contraindo numa careta inédita. E esses novos hábitos podem ou não se manter. Depende da sua abertura para o mundo, da quantidade de contato e conexão que você tem com quem interage com você e com tudo que vem a acontecer nos domínios próximos ou distantes do universo desconhecido que vive bem debaixo do seu nariz. É por isso que algumas pessoas dizem que uma separação, qualquer que seja ela, é sempre o fim de uma língua, aquela que foi desenvolvida pouco a pouco pelos envolvidos e que agora permanecerá interrompida, um idioma fóssil geolocalizado na memória, sem falantes fora do mundo das recordações.
A linguagem surge da observação. Cada palavra, frase e gesto vem de um exercício de atenção que, sem a gente perceber, se transforma em uma outra coisa. A linguagem então também é memória, mas o que não é memória? Não importa. Ela é cada um de nós, mesmo nascendo do encontro com outras pessoas. O que é humano e não vem desse paradoxo entre o eu e nós? A linguagem é o que temos. É o que nos permite formular sozinhos ou acompanhados aquilo que é aprendido ou percebido. O que passa pelos sentidos e fica, provoca os neurônios-espelhos e dura além de um espasmo. Para cada povo ou indivíduo, a linguagem é uma identidade que vem de algo anterior, algo que só existe a partir do outro, algo único e em constante mutação. O encontro do eu com o nós, da rotina com o novo, do espontâneo com o que já foi pensando antes, do corpo com qualquer coisa.
A linguagem é absurda. O que eu chamo de amarelo não é o mesmo amarelo que você vê. O que se conhece como cor da pele não é a cor de todas as peles. Os gregos antigos não conheciam a cor azul, porque o mar e o céu assumem muitas tonalidades além. O nome das coisas nos situa no mundo, nos dá palavras para contar o que só a gente pode contar, mas não se bastam. Uma língua pode até ser criada com um fim específico, como o ficcional právico de Os Despossuídos da Ursula Le Guin ou o esperanto do mundo que conhecemos, mas somente no uso as palavras encontram a vida, se transformam e ganham os contornos das idiossincrasias. Nem precisa ser poeta para fazer uma metáfora, nem Guimarães Rosa para ousar um neologismo. Muito menos atuar como personagem italiano de novela brasileira para gesticular até torcer o que dizem as palavras pronunciadas com um sotaque que só existe no mundo da ficção.
A linguagem é um vírus. Ela muda, ela circula, ela precisa de contato para continuar. Ela pode ser transmitida. Ela tem que ser transmitida. Talvez nem o isolamento total consiga parar essa contaminação. Algo fica, eu sei que fica.
A linguagem é um erro. Ninguém consegue dizer o que quer ou precisa. Emissor, receptor, mensagem, tudo, absolutamente tudo, que envolve nossa vontade de se fazer entender é feito por caquinhos que se unem apenas pela liga da saliva. Sem cola escolar ou super bonder, apenas saliva. O papel pode se rasgar se a gente umedecer demais a mensagem, virar uma bola de cuspe que pode ser moldada até atingir qualquer forma, esculturas do que se quis dizer ou se quis entender. Ou pode vir seca, sem sentido, e ainda assim chegar rasgando a pele fina das mãos ou a garganta originária.
A linguagem é bestial. O cachorro late, o gato ronrona, os grandes felinos rugem, os pássaros cantam, os lobos uivam, o ser humano canta e o português cria palavras para referenciar a comunicação e os coletivos desses e outros animais. E tem as interjeições, os feromônios, as garras, a peçonha, as multidões e, de novo, o diferente. E do diferente origina-se também tudo aquilo que alguns chamam de monstros, esses bichos que a gente aprende a imaginar a partir desse medo do Outro que nos une e nos separa. E tem também a comunicação interespécies, que me faz entender as piscadas carinhosas dos meus gatos e também seus rabinhos que em um único movimento me avisam que eles querem continuar brincando. E assim surge mais um dialeto, esse centrado no aqui e agora da minha casa. E isso acontece também via tweets, emails, posts, mensagens instantâneas, chamadas de vídeos e áudios de cinco minutos. As amizades e as línguas surgem na fricção dos interesses comuns com tudo aquilo que a gente inventa.
A linguagem é neurociência, linguística, gramática, programação, biologia, antropologia, esporte, ABNT e arte, ela é língua, boca, dentes, bochechas, mãos, postura, músculos, corpo, careta, máscara. É indomável, capaz de invadir territórios, criar espaços, transformar o meu, o nosso, modo de dizer. É meme, é incômodo, é risada, é troca, é terror, é guerra, é você, nós, eles… sou eu.
A linguagem é uma brincadeira, são as peças de lego que a gente usa para montar e desmontar cenários e narrativas, tentando desesperadamente contar para alguém um pouco sobre a convergência dos universos que somos com o que percebemos em contato com os outros. É o que eu tenho para satisfazer minha vontade de tentar explicar porque escrevo, tagarelo, gesticulo, observo, crio, sonho, mexo as pernas, batuco mesas e explico o cotidiano. É o que me faz sentir parte, buscar sentidos, fazer perguntas, formular resposta, ligar o computador e escrever uma mensagem para um destinatário desconhecido, elaborar experiências, abrir um caderno e rabiscar com uma caneta rosa um monstro com cabeça de mulher, rabo de cavalo, grandes caninos e tentáculos abissais. É o que me leva a amar conversar de todas as formas e com todos os animais, inclusive com uma gata preto e branca que tem as narinas rosadas como os meus mamilos e eu só conheço pela internet.
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Quem escreve vive se deparando com essa pergunta. Não necessariamente vinda do eu, no caso. Ela chega, na maioria das vezes, em tom de inquérito e na voz de um outro alguém, mas às vezes fica, e reverbera com esse eu bem destacado e acaba virando investigação pessoal, obsessão, tragédia, caso de família, sessão de terapia e até tema de livro.
O “por que você escreve?” sempre vem intimidador e pode permanecer assim até quando o pronome muda. Eu mesma nunca soube dar uma resposta definitiva ou mesmo satisfatória para essa indagação. Seja ela vinda do você ou do eu.
Sei lá. Acho que gosto justamente é dos muitos porquês possíveis e da expectativa de ficar transitando na vida e nos textos a partir do desejo no sentido mais amplo da palavra. Busco o movimento que a escrita evoca, não a rigidez das respostas.
Ainda que todo questionamento importe, nem tudo precisa de fins e certezas. Principalmente quando estamos falando em criação. Às vezes os meios importam mais.
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Vovó adora contar histórias da minha infância. São causos variados, alguns envolvendo viagens ao litoral, outros, festas de família, mas a maioria mesmo é sobre nosso cotidiano: minha vó contando suas memórias e eu ouvindo, minha vó me olhando e eu falando sem parar, minha vó jogando baralho e eu aprendendo com ela todas as regras, minha vó assistindo à televisão e eu observando suas reações ao Sílvio Santos ou mesmo ao Thiago Lacerda, minha vó bordando e eu dizendo que só aceitaria tentar se fosse um risco da digimon Tailmon, minha vó fazendo biscuit ou flor de meia e eu logo ao lado colando um porta-retrato de EVA com um enfeite da digimon Tailmon feito por mim como exercício da aula de artes da escola, minha vó cantando e eu no meu quarto tentando me concentrar em alguma coisa, minha vó fazendo bolo e eu fugindo da cozinha para não ter que ajudar.
Entre tantos causos possíveis, ela escolheu como história preferida a de quando ela descobriu que eu já sabia ler. Eu tinha três anos, quase quatro, e parei frente ao portão do quintal da minha casa, olhei para o cadeado dependurado e soletrei Papaiz, depois juntei as sílabas e formei a palavra. Vovó falou “mas você já sabe ler, menina?” e eu, fingindo que aquilo não era importante pra mim, simplesmente disse “claro que eu sei”. Ela sempre ri quando conta essa história, um riso que parece dizer que a surpresa dela foi sempre uma piada, como se fizesse questão de repassar essa memória simplesmente porque aquela cena foi o momento que ela me descobriu, viu o que me tornava Thaís. De certa forma, foi isso mesmo o que aconteceu. Ouvi tanto essa história que me tornei leitora. Ouvi tanto essa história que entendi que por mais que minha avó me cobrasse que eu aprendesse o que toda meninA deve saber, ela tinha certeza que isso nunca me bastaria. Ouvi tanto essa história que entendi que a curiosidade era a principal característica que nos unia, aquilo que deu a liga ao nosso gosto em comum em ouvir e descobrir histórias. A partir da narração dessa memória, minha vó teceu nossa filiação, nossa semelhança, nossa conexão às vezes desconectada. Vovó me construiu leitora quando me viu uma.
Nos meus ouvidos atentos por histórias, a leitora já existia. Na observação dos comportamentos ao redor, também. Na minha vontade de falar tudo que eu sentia, vivenciava, descobria e, principalmente, inventava, mais ainda. Vovó conta a descoberta dela como se esse momento fosse a história de origem de uma super-heroína da linguagem que ela acredita que eu sou.
A história sempre vem com algum comentário. Ela complementa dizendo que eu não parava quieta, queria tudo e pulava de galho em galho atrás da próxima palavra. Essa energia minha, na voz da minha vó, nunca teve tom de crítica direta. Vovó sempre me pareceu se encantar com o tanto que eu, teoricamente, era difícil, como se certos defeitos meus fizessem parte desse pacote maior que me tornava eu.
Vovó gostava de ler histórias de mistério. Hoje não mais. Cansou disso. Minha primeira vez com Agatha Christie foi com um livro dela caindo aos pedaços, numa época em que ela ainda gostava dessas coisas. Ela tem lido menos e preferido formas breves, mas contado e recontado mais histórias, descobrindo, agora que os olhos se cansam fácil das letras, uma veia cronista cansada, mas firme. Grata também.
Não sei como minha vó me vê hoje. Sei que ela não parece se decepcionar com quem me tornei, mesmo eu não tendo uma carreira brilhante. Talvez isso seja vestígio do machismo de sua época, inclusive, mas isso não importa agora. Me conforta, na verdade. Me parece que para ela a minha característica leitora não me fazia prometer nada além de uma boa conversa. Só que isso me lembra que ela quer que eu tente participar do programa “Quem quer ser um milionário?” do Luciano Huck desde que era Show do Milhão do Silvio Santos. Ela jura que eu ganharia meu milhão assim. É, talvez haja alguma expectativa. Ela deve esperar que eu faça alguma coisa com tanta vontade de ler o mundo. Alguma coisa que renda dinheiro. Talvez prestígio também. Como todo mundo espera, inclusive eu. Ela quer uma cena nova que me defina, como foi a do cadeado Papaiz. Uma cena que mostre que as palavras dela criaram a super-heroína da linguagem que ela vê. Sei que ela espera algo mais grandioso, mais capitalista talvez, mas eu vejo essa cena acontecer toda vez que medeio um clube de leitura, converso sobre um livro, falo sobre o que eu escrevo. Ou escrevo. Ou simplesmente leio. Ou paro para ouvir uma história que só ela pode contar e leio a mais recente folha de caderno que ela preencheu pra mim e me entregou se desculpando pelos possíveis erros ortográficos de quem só estudou até a 3ª série.
Vovó, eu estou aqui criando e recriando a cena que você adora contar mesmo que você não note e isso me conforta. Vovó, eu estou aqui usando as palavras pra contar nossas histórias. Vovó, eu ainda pulo de galho em galho atrás da próxima palavra, da próxima história, da próxima chance de conexão.
Quero entender melhor os diferentes tamanhos que a pracinha que eu ia durante a infância pode assumir.
Parei de crescer faz tempo, mas ainda assim toda vez que piso aqui adulta, a lembrança do que a pracinha foi se transforma.
Ela se expande sob o meu olhar atento às diferenças, mas eu pareço cruzá-la em tão poucos passos. Ela está cada vez menor, mas seu limite ainda está em outro tempo. Ela parece mais vazia sem os bichos que eu costumava encontrar ali nas minhas expedições como wannabe biológa, mas também mais ocupada agora que tem até aparelho de ginástica. A árvore que levou pedaços dos meus dentes numa trombada com minha bicicleta ainda parece ameaçadora.
Penso em quantos passos o Billy precisa dar pra me acompanhar. São os mesmos de quando ele era jovem? E me pergunto quantas pisadas Faruck I precisava para cortar toda essa pouca extensão e nos tantos milhares de odores que Faruck II pode cheirar ali todas as vezes que o acompanhei.
Com a mi band presa ao meu pulso, sei exatamente quantos passos eu precisei dar para medir esse cenário e isso não é o suficiente para me convencer da diferença do que vejo, sinto, lembro.
Atravesso, calculo o raio, elevo-o ao quadrado, multiplico o resultado pelo pi. Encontro minha recuperação de matemática. Volto pra casa em 2003.
Tudo mudou.
E toda vez que mudo, uma nova perspectiva vira possibilidade. Com uma câmera nas mãos, posso ver a praça sob outro ângulo, o do pássaro que nunca fui. E, depois, quando voltar, lembrar diferente, como se em algum momento da minha história, eu tivesse sido dona desse céu de inverno.
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