Uma crônica de dia das mães

Acervo pessoal – minha mãe e eu

Minha mãe sempre me pede para elaborar mensagens de aniversário, casamento, feliz natal e formatura. Qualquer celebração é um motivo para ela enviar um cartão, um bilhete, uma mensagem no WhatsApp para qualquer pessoa que ela goste. Eu digo “não” e ela me desafia dizendo “por que isso se você é tão boa nessas coisas de escrever?”

Sempre insisto no não. Digo que posso revisar a mensagem, sugerir edições, preparar o texto, mas escrever por ela sobre isso é impossível. Meu léxico é limitado demais. Sobra palavra, falta comida, é esquisito. E todas as cartas de amor são ridículas, mas as mensagens que minha mãe envia para amigos e familiares são bonitas, atenciosas, construídas sem medo dos clichês se eles ali couberem.

Eu juro, essa negativa minha não vem de nenhum lugar estranho e sombrio. Esse não é um caso do famigerado não aleatório que surge porque quando nasci um anjo Do Contra disse que eu seria uma representante dele na Terra. A resposta dessa teimosia que se repete há anos é simples: como posso escrever sobre amor em nome dela se é ela quem verdadeiramente entende do riscado?

Hoje tento dizer a ela com essa mensagem (pública, vejam só!) que pra mim só dá pra rascunhar algo sobre amor se a destinatária for ela.

Nesse caso, posso me arriscar a falar do meu amor de filha em uma estranha crônica de Instagram, porque eu sei que ela vai gostar e é isso que me importa agora. Hoje me coloco como remetente, como nas cartas de dia das mães que aprendi a fazer na escola, simplesmente porque eu te amo, mãe.

Prometo fazer um cartão melhor no seu aniversário. Quem sabe até novembro eu aprenda a ser mais direta.

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O acontecimento também é a escrita: a proposta literária de Annie Ernaux encontra o aborto clandestino

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A escrita de Annie Ernaux foi um acontecimento pra mim: ler “Os Anos” (tradução de Marília Garcia) me impactou de um jeito que de repente me vi indo atrás de tudo que ela escreveu. Cheguei a cogitar começar a estudar francês para eventualmente poder ler sua obra no original, sonhando em não ter mais que lidar com a busca por uma ponte idiomática entre ela e eu e a espera por novas traduções ou encontros com exemplares em inglês perdidos em sebos. Desisti quando percebi o óbvio: a fluência necessária ainda ia demorar muito e os novos lançamentos da autora pela Fósforo acabariam vindo primeiro, até porque o período de aprendizado de um novo idioma dura uma vida inteira.

Annie Ernaux faz literatura a partir do tempo e da vida. E por causa dela me peguei negociando com ambos, como se eu já não estivesse acostumada a tentar controlá-los. O tempo para essa autora não é simplesmente uma agenda, um relógio, o despertador que se esgoela, é a matéria da vida. E não só a vida dela. Escrevendo a partir de si, Annie Ernaux aborda a memória como vida, identidade e zeitgeist, uma mistura que transforma uma cena pessoal em um retrato de um momento específico na França, um recorte que só ela, tendo vivido aquelas experiências, poderia fazer como foi feito. A memória em “Os anos”, “O lugar” e “O acontecimento” é uma manifestação que abarca os arredores de quem narra, forma paisagens e cenas vívidas, é feita por pessoas além da autora e os lugares que cada uma dessas pessoas tem dentro do que a sociedade definiu nesse recorte temporal que pode caber quase um século ou três meses. É uma mancha disforme feita de gente se espalhando em um papel, não um ponto perdido e fixo no eu.

Além de contar o que lembra, a escritora relata com detalhes o processo de lembrar, e assim transforma sua escrita numa busca que parte do registro da lembrança como tentativa de capturar a sua verdade, o seu sentido da vida. Essa investida em transpor memória na escrita é o desafio impossível que a move. A partir do ato de registrar e formular, a autora tenta preservar a memória, torná-la menos volátil, tirar dela a abstração presente em sua composição, transformá-la em algo menos dela. A escrita então não representa as condições de temperatura e pressões normais, ela é a ferramenta que se usa para tentar tornar sólido o que em nosso universo só se encontra em estado gasoso. É uma busca por materialidade.

Ao escolher a via da memória como projeto literário, Annie Ernaux decide expor seu corpo, sua verdade, seus registros mentais e documentais e todo seu esforço por lembrar e escrever e elaborar. A exposição em si não é o intento final, é o meio, é a única forma de buscar acessar a reminiscência, logo a percepção de tempo tangível para a humanidade e que, de maneira única, forma quem cada um de nós é, enquanto nos une em torno de uma mesma época.

Em “O acontecimento” (tradução por Isadora de Araújo Pontes) isso se torna ainda mais evidente, talvez pela gravidade da situação narrada, da separação desse momento de todos os outros, pelo uso da primeira pessoal do singular ou por tudo isso junto. Quando ela escreve seu aborto e afirma que a única culpa que carregava a respeito dele era a de até então não ter criado algo não ficcional a partir disso que aconteceu com ela, Annie Ernaux revela quem ela é, foi e quis ser e a relação disso com sua motivação para escrever.

Relatar seu aborto clandestino é se colocar novamente exposta ao olhar de julgamento do Outro e de uma época, enquanto toma pra si o direito de lembrar, de falar, de escrever. É uma busca extrema por autonomia, porque vai muito além da escolha que ela expõe e revela como parte de si e direito essencial, é sobre olhar para quem se é até o limite e transformar esse processo criativo em sentido da vida, em algo que vai se fazer chegar em forma de literatura até outras pessoas. Sendo as epígrafes desse livro uma pista desse projeto maior: “Meu duplo desejo: que o acontecimento se torne escrita. E que a escrita seja acontecimento” (Michel Leiris) e “Talvez a memória não seja mais do que olhar as coisas até o limite” (Yüko Tsushima).

E o que torna essa escrita que busca autonomia ainda mais interessante é que a autora tenta dar forma às suas memórias levando em conta uma perspectiva documental, de registro de um momento além dela mesma, ainda que nesse livro a escritora francesa não use o nós e nem a 3ª pessoa, como faz em “Os Anos”. O individual e o coletivo se encontram o tempo todo ainda assim, quando ela narra o que viveu. A conexão dela com os Outros, no caso, principalmente as Outras, não está no jornal ou na lei, está nesse espaço coletivo e público não captado e captável pelo jornalismo ou pelo legislativo francês, esse espaço que ela como escritora tenta acessar ao fazer e ler literatura. O lugar de suspensão da personagem durante a espera pelo aborto parece só dela, mas nunca foi e, justamente por saber disso, Annie Ernaux escreve assim, buscando expor a experiência humana a partir da própria subjetividade, sendo essa subjetividade um eu presente e marcante e também parte de um meio, um mix de self, origens familiares, bagagem cultural, conhecimento e construção social. Um mundo feito de memoração pura e simples, daquilo que foi capaz de fixar nesse cérebro, independente da procedência, da lógica e da utilidade.

Ler “O acontecimento” num fôlego só dá mais sentido ainda pra tudo que está escrito ali. Toda a angústia e desespero que movem essa narradora pela cidade e a silencia pela solidão e pelo interdito estão ali, mesmo quando a gente lê que ela falou de novo com alguém sobre seu desejo de abortar, porque a gente sabe que se ela fez isso foi para lembrar que ainda existe, importa, está viva, quer algo diferente do que está posto. A gente só respira direito quando termina o livro e sabe que tudo passou e que ela conseguiu, tanto abortar na clandestinidade e sair viva, quanto escrever sobre essa experiência de extrema violência sem os ornamentos literários comuns às representações de angústia e desespero. E isso importa, porque a busca por autonomia dessa escritora também tem a ver com encontrar essa crueza sem os artifícios tradicionais, porque para Annie Ernaux autonomia também é fazer a experiência dobrar o que a linguagem impõe a ela e é por isso que ela evidencia, ao longo do livro, que a palavra aborto era proibida para o mundo, enquanto para ela o que nunca fez sentido foi a palavra grávida. Palavra é poder e é por isso que ela narra assim, como se somente a partir desse tensionamento ela pudesse se colocar no mundo de verdade, integrada ao todo, sem estampar no texto de maneira óbvia o desamparo que a acompanhou durante seus três meses de gravidez indesejada, mas ainda assim torná-lo quase palpável para quem a lê.

Annie Ernaux escreve porque quer registrar uma verdade pessoal e coletiva que se dissipa ao ser procurada, ela quer transformar em palavra sentimentos, reflexões e memórias difusas e criar a partir do indizível. Com sua criação e processo criativo, Annie Ernaux tenta controlar o tempo, dominar as próprias vivências, entender como a memória funciona e torna cada um de nós um, mas também nos une aos outros, tudo com base no misterioso poder da palavra, do simbólico, do dito e não dito. Annie Ernaux escreve, porque quer captar o que é a experiência humana total para depois transmiti-la, se tornando parte desse todo, e, por isso, diz ao fim desse livro: “As coisas acontecem comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.”

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Você também pode se interessar em ler o ensaio “Igual à narina e também a resenha ““O acontecimento” segue acontecendo aqui e agora: o impacto da adaptação cinematográfica do livro de Annie Ernaux numa leitora brasileira”.

Espinheira-santa: luz e sombra na infância e além

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Em algum momento do fim da adolescência e ainda em Divinópolis-MG, Igor Damasceno e eu nos conhecemos. Há quase quinze anos, a partir dos blogs literários que mantínhamos em um misto de dedicação inesperada e displicência forçada, começamos a conversar. Igor foi o primeiro grande amigo que a literatura me trouxe. Se hoje troco com tantos leitores e escritores foi porque em algum momento a gente se encontrou e eu entendi o poder de conexão que a arte tem. E agora, em pleno 2021, estamos realizando o sonho que nos uniu: eu na espera do lançamento do meu livro de poemas eu investigo qualquer coisa sem registro, que sairá ainda esse ano pela Crivo Editorial, e Igor com seu livro recém chegado no mundo, vendo amigos e conhecidos espalhados pelo Brasil recebendo seus exemplares pelos Correios.

Com Espinheira-santa, que acabou de sair pela Caravana Grupo Editorial, meu amigo estreia e eu queria convidar vocês para lerem essa novela. Esse não é um convite que faço (só) como wannabe influencer literária, ele vem de um outro lugar, vem da sensação de que esse é um livro que me pega pela memória em todos os sentidos: evoca conversas, sonhos e leituras que dividi com o autor e também com o mundo, esse mundo que, mesmo sendo o da minha época, me parece mais próximo agora que eu o conheço pela turma de Reinaldo e Adelina. Esse mundo que, querendo ou não, também me formou.

Essa é uma obra com ares infanto-juvenis que tem como protagonista uma turminha de crianças que quer se dar bem a qualquer custo. Tudo se passa numa cidade do interior de Minas Gerais nos anos 90 e, durante a leitura, a gente se depara com referências da época, muita diversão e também as regras sociais que vigoravam enquanto os tais millenials cresciam.

Na última newsletter que enviei para meus apoiadores, eu disse “Se Ted Lasso é sobre acreditar, Espinheira-santa é sobre desconfiar”. Explico: a vida, especialmente essa que vivemos em pleno capitalismo tardio, vai nos ensinando a desconfiar de tudo, nos deixando cínicos e desencantados. Vivemos sem acreditar que um outro futuro é possível. Por isso, eu preciso do Ted Lasso. Ele, como personagem e programa de TV, me lembra de respirar, acreditar e sorrir. Fui 100% Ted Lassada não pela promessa de gargalhadas, mas pelo encantamento que essa série foi capaz de gerar em mim mesmo nesse aqui e agora. Só que eu nasci, cresci e vivo no Brasil e reaprender a acreditar é um exercício tão complexo justamente porque preciso continuar desconfiando. Então chega o Espinheira-santa que me lembra que as crianças vivem nesse mesmo mundo que a gente conhece e às vezes quase nega conhecer, elas não estão isoladas do universo adulto, e, por essas e outras, são pessoas com suas complexidades e, principalmente, interesses.

Desconfiar e acreditar coexistem dentro de nós: o mundo nos ensina a suspeitar, como também nos ensina a querer conquistar o posto de o melhor em alguma coisa e levar vantagem em tudo, então a gente vai e, sem jeito e hipocritamente, começa a depositar todas as nossas esperanças nas crianças, enquanto continuamos os mesmos ou quase isso. Mas esperança é algo a ser cultivado em conjunto, como numa horta comunitária. Mudar o mundo não pode ser algo guardado para gerações futuras, porque acreditar e desconfiar são ensinamentos e consequências da vida em todas as idades. Se o mundo é dos espertos hoje, a geração que cresce agora tem aprendido isso desde que respirou fora da placenta pela primeira vez. Exatamente como foi com a gente.

Em um momento em que a defesa dos direitos das crianças se tornou um tema constantemente manipulado para servir à censura e ao autoritarismo, essa novela de Igor Damasceno representa um respiro. Ele ousa sair desse lugar comum que insiste em reduzir a humanidade das crianças colocando-as como anjinhos puros unidimensionais, escolhendo contar uma boa história que expõe quem fomos, somos e podemos ser nesse mundo que nos é oferecido. Com uma narrativa que expõe uma multiplicidade de crenças brasileiras, os perigos da fé cega e sutis exemplos de intolerância religiosa, o livro mostra um mundo de plantas, filmes, conhecimentos gerais e sociais que cercam esses personagens cativantes que ainda veem meninas de uma maneira meio torta, tem medo de serem zombados e provavelmente surtariam com qualquer insinuação sobre a sexualidade de qualquer um deles.

Espinheira-santa brinca com o imoral e justamente por isso importa, porque o certo e o errado não são tão óbvios quanto parecem. Fugindo dessa idealização típica da infância e do passado, Igor nos diverte, enquanto nos faz refletir sobre como é preciso explorar o mundo para aprender mais sobre ele e seus horrores tão naturalizados. Talvez esse processo seja o melhor exemplo do que é crescer. E crescer também inclui olhar para trás, para quando éramos crianças, e perceber que muita coisa mudou, ainda bem, mas seria bom mudar mais um pouquinho e, como Ted Lasso, acreditar que isso é possível.

Seguindo a sugestão da capa do livro com vários tons de verde e título vegetal, começo então a pensar que há algo muito importante a se aprender com as plantas e que Igor captou bem: elas podem ser ornamentais, gostosas ou mesmo fitoterápicas, não importa, todas existem a partir da combinação de luz e sombra e seus mais variados usos dependem de nós. Acreditar inclui entender que essa é a regra da natureza, logo nossa, e assim aprender a lidar com esse outro lado repleto de zonas cinzentas que dizem muito mais da humanidade do que o simples preto e branco ousariam tentar.

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Perguntar é processo criativo, tentar responder também, conseguir eu já não sei se é

Acervo pessoal

Quem escreve vive se deparando com essa pergunta. Não necessariamente vinda do eu, no caso. Ela chega, na maioria das vezes, em tom de inquérito e na voz de um outro alguém, mas às vezes fica, e reverbera com esse eu bem destacado e acaba virando investigação pessoal, obsessão, tragédia, caso de família, sessão de terapia e até tema de livro.

O “por que você escreve?” sempre vem intimidador e pode permanecer assim até quando o pronome muda. Eu mesma nunca soube dar uma resposta definitiva ou mesmo satisfatória para essa indagação. Seja ela vinda do você ou do eu.

Sei lá. Acho que gosto justamente é dos muitos porquês possíveis e da expectativa de ficar transitando na vida e nos textos a partir do desejo no sentido mais amplo da palavra. Busco o movimento que a escrita evoca, não a rigidez das respostas.

Ainda que todo questionamento importe, nem tudo precisa de fins e certezas. Principalmente quando estamos falando em criação. Às vezes os meios importam mais.

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Mulheres negras escrevem o mundo

No mesmo mês que “Poetas negras brasileiras: uma antologia” chegou em minha casa, o livro “A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios” da Gloria Anzaldúa veio parar em minhas nãos. A antologia foi lida primeiro, a partir do acaso que, com ajuda dos Correios, impôs a esses dois livros diferentes datas de chegada, mas Gloria Anzaldúa já estava ali comigo, acompanhando minha incursão nos vários universos poéticos catalogados por esse livro de poemas que, do miolo até a capa, reafirma a existência e a heterogeneidade da escrita feminina e negra e brasileira, essa escrita feita fora do que chamam de Norte do planeta por quem precisa colocar sua voz no mundo.

De Gloria Anzaldúa conheço pouco até então, apenas o texto Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, lido antes e depois da chegada desse pequeno tijolinho roxo editado pela A Bolha e traduzido pela poeta Tatiana Nascimento, e algumas outras citações esparsas, mas isso foi mais do que o suficiente para eu costurar essas duas leituras que agora me parecem tão complementares.

“Poetas negras brasileiras” tem como organizadora Jarid Arraes, escritora que desde a sua origem independente atua evidenciando as desigualdades do mercado editorial e do mundo da escrita em seu sentido mais amplo. Com esse livro, que une estreantes e também nomes consolidados, a editora do selo Ferina desconstrói estereótipos sobre a escrita feminina e negra e indica novos caminhos para quem escreve e quem lê, enquanto apresenta o livro e a palavra como ferramentas de expressão cultural e individual e também de luta e denúncia. Semelhança e diferença coexistem na obra como uma bandeira literária que aponta o óbvio ao leitor, ao crítico e à sociedade: a literatura não é feita só por homens brancos e a ideia de condição humana e universalidade não vem somente dessa perspectiva, ela vem das múltiplas possibilidades de encontro da alteridade com a identidade.

Gloria, em seu ensaio mais famoso, diz:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Para ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.”

E continua:

“O ato de escrever é um ato de fazer alma, uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu, aquele nós mulheres de cor pensamos ser “a outra” – a escura, a feminina.”

E depois, seguindo esse raciocínio, afirma:

“A escrita é uma ferramenta para adentrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver”.

Por mais diversos em temática, estilo e até estrutura que sejam os poemas das autoras negras brasileiras catalogados nessa antologia, todos eles me parecem ter sido escritos por essa força-motriz exposta pela Gloria nesses destaques. A escrita para grupos oprimidos é marcada pelo desejo de subjetivação perante o mundo que prega o individualismo homogêneo, enquanto nega a subjetividade de certos corpos, e é por isso que a publicação de obras como essa antologia importam tanto e tem dimensões políticas que mesclam o individual e o coletivo.

Ancestralidade e filiação, afetos e sexualidade, identidade, racismo, trajetória, dúvidas, amor romântico e a falta dele e até mesmo as angústias contemporâneas que se relacionam com as redes sociais são alguns dos assuntos trabalhados por algumas das mais de 70 poetas negras que fazem parte desse trabalho. Vale destacar que a curadoria de Jarid reuniu autoras de 18 anos a 70 anos e tentou abarcar todo o Brasil, com nomes oriundos inclusive de cidades do interior, mas infelizmente falhando em não conter representantes das regiões Sul e Norte do país*.

Com poemas de nomes como Conceição Evaristo, Bianca Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Duarte, Lubi Prates, Mika Andrade, Nina Rizzi, Tatiana Nascimento, Cecília Floresta e o da própria organizadora, a obra surge já mostrando que o enorme talento dessas poetas negras não é exceção. Entre as poetas que eu ainda não conhecia, destaco o que vi de Thamires P., Silvia Barros, Pétala Souza, Nicole de Antunes, Mayara Ísis, Marina Farias, Mariana Madelinn, Maria Vitória, Luna Vitrolira, Juliana Berlim, Jhen Fontinelli, Gessica Borges, Eliza Araújo, Débora Gil Pantaleão, Kiusam de Oliveira, Jovina Souza e Andrezza Xavier no livro. Há um mar de mulheres negras fazendo literatura em terra firme mesmo quando o mundo, na prática, ainda insiste em dizer que esse não é um lugar para elas.

*O livro foi construído a partir de uma chamada nas redes sociais e, apesar do esforço da organizadora em mudar isso, a ausência de autoras dessas regiões provavelmente veio da limitação desse formato.

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Parece uma conversa, só que isso aqui é mais pretensioso


— Depois temos que fazer a sua entrevista. Eu tive uma ideia ótima. Eu abro um documento no drive, falo umas coisas, faço uma pergunta ou uma afirmação e você vai e comenta ou responde.

— achei vanguarda, fluido, arrojado, os artistas mais engajados na cena certamente devem ter um nome pra isso.

— Parece uma conversa, só que vai ser mais pretensioso. Inclusive acho que podemos começar com isso aqui.

— devia se chamar assim: “parece uma conversa, só que é mais pretensioso”.

*editando o nome do documento no drive*
*salvando…

*alterações salvas no drive

— Ninguém morre sem ser anunciado. Esse é um bom título, viu? Você se considera uma boa criadora de títulos? Você criou esse antes de iniciar a escrita do seu primeiro livro ou foi algo que surgiu durante ou mesmo depois?

— É uma pergunta difícil (quando me perguntam alguma coisa, meu cérebro trava. perguntas são difíceis). mas a ideia veio de um esquete do programa “tv pirata”, que era mais ou menos assim: umas pessoas sentadas em uma mesa jogando pôquer, e, não sei por que, eles começam a impedir as pessoas de sair da mesa. passam dias lá. quando alguém esboça alguma vontade de sair, eles gritam “ninguém sai, ninguém sai!”. eu encaro a vida um pouco assim, não quero perder ninguém, então baixinho, sempre estou dizendo “ninguém morre. ninguém morre!” a parte do “sem ser anunciado” é porque a morte também tem essa face “apoética”, vamos inventar essa palavra. esse lado burocrático. me lembra um funcionário público desmotivado que colocou um cartaz passivo-agressivo no seu guichê escrito “ESPERE SER ANUNCIADO”. a ideia do livro é ficar meio que transitando por esses dois lugares horríveis.

— Então o título é o resultado da mistura de algo extremamente emocional, sensível e complexo, como a morte e todas nossas relações, com uma planilha do Excel? Se a morte fosse mais burocrática, ela seria mais simples ou mais complicada? Eu voto em complicada, porque eu estudei Direito na faculdade e depois dividi parede com uma advogada de direito de família e sucessões e simplesmente sei que testamento, herança, pensão por morte e todo o resto da nossa vida civil só dá problema. Já que estamos falando de Direito, queria saber se você não teme ser processada por algum síndico que ler seu livro. A Ceci comenta algumas particularidades do exercício dessa profissão ou do perfil desses profissionais com uma certa crueza.

— sim! ter que “dar baixa” do seu familiar no sistema é melancólico. e solitário, já que acaba sobrando sempre para uma pessoa só. no tocante ao síndico, tive uma experiência de quase-morte na mão de um síndico uma vez, e acho que isso acabou me marcando negativamente: na faculdade, dividia apartamento com mais três meninas em bauru e, uma noite, acordei meio zonza, com um barulho esquisito vindo da cozinha. um cheiro esquisito. já antevendo a desgraça, fui, guiada pela luzinha do celular até o fogão e vi que estava JORRANDO GÁS pela mangueira, que tinha se desconectado. descemos até a portaria correndo, o porteiro disse que não podia sair de lá e chamou o síndico. no apartamento, a primeira coisa que o síndico fez foi LIGAR UM VENTILADOR NA COZINHA, “para passar esse cheiro ruim”. eu falei “mas meu senhor, se a tomada produzisse uma faísca, ia tudo pelos ares.”, ele me olhou como se as leis físico-químicas que regem o universo simplesmente não se aplicassem naquele espaço. eu não sei quantas pessoas um síndico é capaz de matar por ano, mas suspeito que esse número não seja muito baixo, não. algum síndico já tentou te matar, thaís?

— que eu saiba não. Minha experiência com síndicos são parcas. Vivi quase a vida toda em casa. Todo o risco residencial que já corri foi por culpa exclusiva minha ou da minha família mesmo. Apesar disso, eu não posso afirmar que nunca rolou nada, porque já morei em um prédio enorme em que aconteceu uma eleição de síndico que foi muito intensa. Todo dia amanhecia com um bilhetinho debaixo da porta sobre os riscos de votar no outro candidato. Meu voto era disputado. Eu devia ser um desses indecisos, alvo de campanhas vira-voto, sabe? Eu sequer sei se eram os candidatos que diretamente passavam essas mensagens para mim por debaixo da porta ou se eram seus cabos eleitorais. Eu só sei que eventualmente avisei na portaria que eu não ia votar, porque na data não estaria na cidade. Se esse texto fosse uma autoficção, eu falaria que nessa mesma semana o elevador enguiçou comigo dentro. Na verdade, até onde sei, nada aconteceu, mas como disputaram tanto meu voto e usaram muita tinta de suas impressoras, eu sinceramente não duvido que a decepção deles com a minha ausência pode ter encadeado alguma tentativa de assassinato que não deu certo e eu nem fiquei sabendo. Disputas eleitorais, né? Eu tinha uma pergunta para você, mas eu confesso que agora me perdi. Deve ser por isso que falam que o entrevistado não pode fazer perguntas, né? O entrevistador não consegue estar em dois lugares ao mesmo tempo em um mesmo texto. Vamos falar de texto então, né? Como você escreve? Você tem alguma rotina de escrita?

— Essa história é muito boa (aqui pensando que eu devia ter coletado dos amigos experiências esquisitas com síndicos, pra aproveitar no livro. mas agora ceci é morta [não sei se isso se classifica como um spoiler]). sobre minha rotina de escrita: eu não tenho nada vagamente parecido com isso. escrevo no tempo livre, e não é todo dia que tenho tempo livre. às vezes tenho tempo livre, mas não tenho vontade de escrever. a única coisa que faço diariamente é anotar alguns trechos soltos de diálogos que tenho com as pessoas, ou que ouço de terceiros. anoto também algumas ideias, frases avulsas, que servem de inspiração quando sento pra escrever. vou lendo essas coisas que anotei, e de repente uma ou duas frases despertam alguma ideia, aí escrevo o texto. funcionaria melhor se eu não fosse tão desorganizada. essas anotações estão espalhadas entre vários rascunhos do medium, um arquivo do google docs e um grupo do whats que eu tenho comigo mesma (jogo algumas ideias ali quando estou fora de casa, ou simplesmente com preguiça de ir até o notebook anotar).

— Eu tenho um texto que agora me parece ótimo, já escrito, prontinho para ser publicado, seja em livro ou no Medium, inspirado livremente em uma vizinha que tive nesse prédio. Também tenho uma narrativa de tamanho indefinido já começada, mas muito pouco desenvolvida, em que uma das personagens principais surgiu a partir da observação lúdica da porteira diurna das terças, quintas e sábados. Acho que eu deveria juntar tudo, desenvolver o que falta e publicar um livro chamado “Condomínio Alguma Coisa”, sendo o alguma coisa apenas uma expressão para me lembrar que seria legal especificar sem falar o nome real do prédio que morei e assim evitar conflitos. O que você acha, Paula? Desculpe te usar como consultora de projetos, mas é tão difícil escrever sem alguém para afirmar o que a gente quer ouvir. Acho que posso abusar um pouquinho da minha posição de entrevistadora já que dividimos esse desejo por escrever livros e você mesma elogiou minha história. Enfim, vejo que você tem um interesse genuíno em diálogos. O que você acha que faz com que conversas te atraiam tanto? O que elas têm de tão especial ao ponto de serem uma grande fonte de ideias pra você? Você gosta mais de captar conversas de ônibus ou de mesa de bar? Como você está fazendo para escrever durante o isolamento social já que ele reduziu tanto a possibilidade de se ouvir conversas alheias de desconhecidos?

— Eu acho que você deveria pegar firme nessas histórias, terminar e publicar. porque (1) são boas, (2) já estão mais ou menos prontas e (3) eu fiquei com vontade de ler. eu não sei porque eu gosto tanto de diálogos. meus processos criativos não estão claros pra mim. nada que produzo é muito consciente. mas se tivesse que elaborar uma resposta mais aceitável, diria que o que mais gosto dos diálogos é o ruído. as falhas de comunicação. o falar uma coisa e o outro entender outra. vejo menos como um encontro de ideias e mais como um choque, uma colisão, um esbarrão. eu prefiro conversas de ônibus. conversas de bar, pra mim, se esgotam nelas mesmas. não acho que dão bons materiais. está realmente mais difícil buscar inspiração durante a pandemia, já que ando tendo pouquíssimo contato com outras pessoas. mas por sorte tenho uma vizinha que fala alto, com a família e no telefone. anoto quase tudo que ela fala.

— Com sua aprovação, me animo. Considero que o primeiro passo do projeto foi dado: a ideia foi falada para alguém, tomando forma o suficiente para puxar meu pé de noite e não me deixar mais dormir. O processo criativo é um negócio engraçado, né? A gente fica tentando racionalizar, mas ele simplesmente acontece. Não tem tanta lógica quanto a gente quer acreditar que tem, né? Queria saber algumas coisas: 1) você se sente uma espécie de antena por gostar tanto de conversa alheia? 2) o que você faz quando algum conhecido, falando diretamente com você, fala algo que cairia perfeitamente em um texto? O que ele fala vira matéria-prima? Você vai e transforma a fala dele em um personagem de um romance? Como você criou os personagens do “Ninguém morre sem ser anunciado”? Por que você é Ceci no Medium e não simplesmente Paula? Estar ali com um outro nome que também é personagem é uma espécie de performance que brinca com a tal da autoficção? (CARAI OSTENTEI DEMAIS NESSA PERGUNTA QUASE ME SENTI CULTA)

— Eu só sei que tenho sorte de morar no brasil gostando tanto de ouvir a conversa dos outros.aqui as pessoas falam muito alto e são muito didáticas e ricas em detalhes quando contam histórias. facilita meu trabalho. quanto a usar parentes e amigos como fontes de inspiração, pratico muito.me aproprio de histórias, frases, traços de personalidades deles. uso muita coisa minha também, mas, para evitar o “climão” de alguém se reconhecer ali, não gostar e vir tirar satisfação comigo, eu uso tudo misturado. nenhum personagem que faço é baseado 100% em uma pessoa só, tem um pouco de uma tia, um pouco de um amigo, um pouco de mim mesma. a questão do meu perfil do medium ser “Ceci” e não “Paula” é porque no começo, quando fiz o perfil, a minha ideia era outra. era fazer uma longa história, composta por episódios, envolvendo a personagem Ceci, uma escritora. pensando agora, essa ideia talvez pudesse ser chamada de autoficção, sim. a questão toda é que eu escrevi uns 3 textos nesse formato, depois desencanei e comecei a escrever sobre qualquer coisa. o nome “Ceci” acabou ficando lá por preguiça de mudar e também porque me parecia uma boa manter certo nível anonimato, já que acabava me expondo muito nos textos. isso era uma preocupação no começo. depois acabei desencanando do anonimato também, então o Ceci só se mantém lá até hoje por pura preguiça de mudar mesmo.

— Eu acho esse negócio de pseudônimo chique demais. Mesmo se não for secreto. Também gosto de nome artístico diferente do nome original. Acho elegante, sabe? Tem um certo desprendimento com a própria identidade. Acho bonito isso, humilde talvez. Me conta aqui, como você se apresenta para as pessoas? Você fala que é escritora? Acabou que a entrevista não teve apresentação e seria bom ter, né? Vou usar essa pergunta para fazer o famoso “seu nome, seu bairro” só que mais completo, porque todo escritor precisa falar muito de si mesmo, mesmo que seja só por meio do seu trabalho. Faz parte da profissão. O leitor espera isso, entende? (Não esquece de falar suas referências na hora de falar bastante de você).

— rindo sozinha aqui com o “seu nome, seu bairro” que me lembrou o vídeo do “passa longe” da xuxa (até abri aqui no youtube pra ver de novo. NÃO PERDE A GRAÇA, é impressionante). eu não me apresento como escritora porque ainda sou muito insegura com a minha escrita (digo “ainda” como se isso fosse mudar um dia, bem iludida). sou mais segura em minhas outras ocupações: doutora/pesquisadora/professora de cinema e tenho uma empresa de foto e vídeo de eventos. mas sou a favor das mulheres reivindicarem mais a definição de escritora. se você for olhar os “about me” aqui do medium, a maioria dos perfis dos homens tem a palavra “escritor”, junto com mil outras coisas. “pintor, pesquisador, cineasta, fotógrafo etc.” as descrições dos perfis femininos são bem mais hesitantes, inseguras. evitam afirmar que são profissionais e artistas, e que fazem essas coisas muito bem. sobre as referências, vou citar algumas mulheres na ordem que elas forem surgindo na cabeça: Ottessa Moshfegh, Giovana Madalosso, Conceição Evaristo, Patricia Melo, Ali Smith, Chimamanda Ngozi Adichie. Quais escritoras aparecem rapidamente na sua cabeça, assim, sem muita análise e ordem específica?

— Você me pegou. Eu não sei listar nada. Eu fico muito nervosa. Sério. Dá branco. Eu não consigo lembrar de nada que eu li e gostei na vida. Acho que eu falaria Angélica Freitas, Wislawa Szymborska, Conceição Evaristo, Caitlin Doughty, Ana Martins Marques,Natália Borges Polesso, Elena Ferrante, Jarid Arraes, Ana Paula Maia, Mariana Salomão Carrara, Olivia Laing, Vivian Gornick, Paloma Vidal, Verena Cavalcante, Ana Cristina César, Chimamanda Ngozi Adichie e Patrícia Melo também, mas da última só li “O matador”. Nessa linha de só li um livro da autora, mas elas tomaram meu cérebro de mim, eu colocaria a Jenny Zhang, a Celeste Ng, a Ana Maria Gonçalves, a Ruth Guimarães e a Nicole Dennis-Benn. Não sei se posso listá-las então. Eu acho que o fenômeno de ter medo de se definir como escritora me atinge até na hora de me apresentar como leitora. É esquisito. Como costumo encontrar coisas boas e interessantes em toda leitura que faço, eu duvido do meu senso crítico o tempo todo.

Eu imaginei que após a publicação de um livro, a gente começasse a se definir como escritora com mais facilidade. Pelo jeito não. Como você comentou sobre sua pesquisa e trabalho em cinema, queria te perguntar se você já trabalhou com roteiro. Se sim, como foi? Quais as principais diferenças entre criar um roteiro e criar um livro?

— Fiz roteiro na faculdade e agora faço esporadicamente, para alguns projetos pessoais. o roteiro, diferentemente do livro, é um documento efêmero, transitório. o objetivo dele é virar filme. por ser um documento que precisa ser facilmente assimilado por toda a equipe de produção, ele tem formato e estilo próprios. é dividido por unidades espaço-temporais (as cenas) e tem um jeito certo de escrever (frases no presente, a descrição das ações tem que se ater ao campo do visível, ou seja, o que está sendo visto pelo espectador, não tem descrição de estados mentais/emocionais das personagens, etc.), isso porque a história é do roteirista, mas o estilo quem dá é o diretor. já no livro o escritor tem o controle de tudo. outra grande diferença é que no roteiro a liberdade criativa fica um pouco restrita ao orçamento do filme, que, em geral, no brasil, é baixo. de repente você colocou uma cena de helicóptero no roteiro, a produção não conseguiu captar recursos pra alugar um helicóptero e te pede pra adaptar a cena, trocando o helicóptero por um carro ou uma moto. eu não se foi um bom exemplo, mas acho que deu pra entender?

— Deu pra entender, mas eu demorei quase duas semanas para processar. Eu tenho medo de falar de filme, porque tudo parece muito complexo e eu vejo poucos e nem como amadora posso comentar grandes coisas. Fora que eu acho que eu idealizava o roteiro. Eu acho bonito falar em cenas. Adoro captar cenas em textos literários, pegar uma no meio de uma poesia, falar em literatura cinematográfica. Me tira uma dúvida: o roteiro então pensa nas cenas do filme, mas isso é feito de uma maneira mais prática do que estética? A estética da coisa então fica mais nas mãos da direção e outros profissionais do cinema que eu não saberei nomear porque eu não sou muito esperta?

— que doidera esse papo. amo. literatura cinematográfica é algo que nunca tinha pensado, mas acho possível, do mesmo modo que vejo fotos de alguns animais que parecem misturas de duas espécies improváveis, e penso “pode ser montagem, pode ser verdade”. a questão toda é o que seria esse elemento “cinematográfico” do texto literário. a descrição de cenas por si só não seria, já que é própria da literatura, mas penso que determinados tipos de cenas e a forma como elas são descritas no texto possam incitar o leitor a imaginá-las como cenas de um filme. é algo que nunca tinha pensado. em ninguém morre sem ser anunciado eu tentei estruturar os capítulos como se fossem pequenas cenas de um filme, com grandes elipses espaço-temporais entre elas, que não são explicadas ou resolvidas. pensando agora, acho que foi um jeito que meu cérebro encontrou de conciliar essas duas linguagens, a cinematográfica, que é minha área de pesquisa, a e literária, que pratico no tempo livre. mas sobre a possibilidade de existir um estilo de escrita cinematográfico, é algo que nunca tinha pensado e agora não vou conseguir parar de pensar.

mas sobre o roteiro ser mais prático do que estético: é bem por aí mesmo. as preocupações maiores do roteiro são a história, a estrutura dessa história (enredo) e os diálogos. essa história só começa a ganhar “uma cara” quando o diretor e o diretor de fotografia cortam as cenas em planos (o que chamamos de decupar o roteiro), a direção de arte cria os cenários, figurinos, etc. e os atores estudam como vão interpretar os personagens.

— Um livro que me veio na cabeça quando falei isso foi o “Karen” da Ana Teresa Pereira. Posso estar enganada na minha avaliação de pessoa que vê pouquíssimos filmes, mas tem uma coisa de filme de suspense nesse livro que é diferente de simplesmente literatura de suspense. Não sei explicar. Falando nisso, o que você faz quando você não sabe explicar alguma coisa num texto? E como você sabe que chegou a hora de acabar um texto ou mesmo uma entrevista? Estou meio perdida aqui, mas me parece que sete páginas de entrevista faria qualquer editor me matar, né?

— tem horas que simplesmente jogo a toalha. coloco na boca do personagem ou do narrador “não sei explicar” e sigo em frente, torcendo para ser entendido como um recurso estilístico pós-moderno e metalinguístico que assume a impossibilidade de elaborar sobre certas coisas, temendo ser entendido como incapacidade da autora de elaborar sobre certas coisas.

sobre a hora de acabar um texto, meu método: vou escrevendo até sair uma frase da qual gosto muito. fico com a sensação de que dificilmente vai aparecer outra frase tão boa quanto. respeitando o princípio da precaução, decido parar. com entrevistas, já não sei. acho que começar uma entrevista é assumir o risco de ela durar indefinidamente. mas como isso não é bem uma entrevista, e mais uma conversa, acho que podemos interrompê-la bruscamente com um “deixa eu ir que tenho que fazer o almoço ainda” ou então “amiga, o moço do delivery tá me ligando, deve tá perdido, vou desligar aqui pra atend””.

— Ah, sim. Entendi. Eu gosto da estratégia de boas frases para terminar com tudo. Na vida a gente termina tudo com “hmmmmm”, “né” e “ééééé”, então é sempre bom ter alguma novidade.

Como é bom conversar com você, Paula! A gente tem que fazer isso mais vezes, né? E marcar alguma coisa depois que a pandemia passar! Até porque nem combinar um encontro mascarado numa praça quando as coisas começarem a melhorar de novo vai dar já no nosso caso envolve ter que viajar e tudo. Ai, ai, já comecei a imaginar um Diário de Bordo nosso. Se essa conversa já quase rendeu um livro, imagina um Diário de Bordo? Depois a gente conversa mais… Eu preciso ir… Tem panela de pressão no fogão e eu não quero me atrasar mais e correr o risco de explodir minha cozinha. É, eu sei, são 09:08 da manhã, parece uma desculpa, mas eu juro que não é.

— Eu gostei muito de conversar aqui pelo google docs porque foi muito diferente das conversas simultâneas que estamos tendo no instagram e no whatsapp e me entristece um pouco pensar que a partir de agora só estaremos conversando em dois canais de comunicação, não mais em três…vou abrir um outro docs com o título “diário de bordo” para a gente, já compartilho com você!


Paula Gomes também é Ceci, pelo menos no Medium. Eu sou só Thaís mesmo, pelo menos até onde posso revelar para vocês. Compre o “Ninguém morre sem ser anunciado” aqui. E, se você tiver com um bom humor daqueles, aproveite para adquirir o ebook do meu conto “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija”. Os dois ebooks estão disponíveis gratuitamente para todos que assinam o Kindle Unlimited.

Acordei pronta para fazer um sete de ouros acontecer

Acervo pessoal

No dia 21 de novembro de 2020, lancei meu site de autora junto ao meu apoia.se. Apesar de simples, ambos foram fruto de um esforço cuidadoso em assumir que a escrita, a leitura e a arte no geral me interessam como ferramentas de trabalho e que toda a minha produção tem valor. Enquanto pensava em cada detalhe do site e apanhava do WordPress vez ou outra ao tentar fazer as ideias se materializarem, eu colocava a minha vontade de me assumir como esse alguém criador para enfrentar a certeza de que eu nunca serei boa o suficiente para isso.

Ao lançar meu site no mundo às 11 horas da manhã nesse sábado, mesmo sabendo que ele estava incompleto e falho, eu revelei ao mundo mais uma faceta do que faço, penso e espero de mim. Eu sempre achei que precisava estar pronta, prontíssima mesmo, para me apresentar como escritora ou qualquer outra coisa do tipo. A espera por esse momento nunca me fez bem. Com tanta expectativa envolvida, eu sequer tinha coragem de começar. Foi preciso muito esforço para compreender que tudo que envolve trabalho é diretamente relacionado com uma infinidade de processos que começam em mim, mas também refletem o mundo onde vivo. Os meus, inclusive, envolveram admitir o que realmente quero fazer da vida, ainda que o mundo desvalorize esse meu fazer e me cobre um estilo de vida a partir de um ideal capitalista e homogenizador.

Eu não sou boa em fazer dinheiro e, sinceramente, também acho que não sou boa em me apresentar profissionalmente para qualquer coisa, especialmente quando o que me interessa é justamente o que dificilmente é visto como trabalho. Apesar de ser uma fazedora, uma pessoa que bota a mão na massa e pensa, cria e realiza projetos, eu sigo tendo muita dificuldade de me ver assim. Esse site, esse apoia.se, o retorno da minha newsletter, a finalização do meu manuscrito de poesia ainda sem editora e o desenvolvimento do meu original de contos, tudo isso para mim ainda é um exercício de convencimento. Tenho tentado, tenho tentado muito, porque viver no mundo das ideias já não me é mais suficiente.

Estou aqui, fazendo, ainda que com medo, enquanto penso que cresci vendo o Coragem, o cão covarde, ou o próprio Scooby Doo agirem, mesmo assustados, seguindo uma lógica de sem querer querendo, que é o que eu fazia até então. Quando decido executar tudo isso, me planejo minimamente e me apresento, escolho a possibilidade de tentar construir um mundo que me caiba e isso é uma recusa da culpa por não ser quem esperavam que eu fosse. Chega de sem querer querendo. É hora de construir a minha casa e, ainda que alguns estejam meio capengas, eu já providenciei os principais móveis.

Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para o primeiro mês foi tarô e, durante esse período, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo. Para essa terceira semana, elas escolheram o naipe de ouros, que é diretamente relacionado à materialidade, trabalho e produtividade.

O sete de ouros é uma das cartas mais importantes do Truco, mas ela não é uma garantia de vitória. Você precisa saber quando usá-la, aliá-la a outras cartas e jogadas. Só assim você conquistará o seu tento e talvez a vitória. Por isso, a evoco nesse título para falar sobre dúvidas, colheita e coragem de tentar.

Você pode ler os meus outros textos participantes da blogagem aqui.

Minhas espadas se voltarão contra mim até que eu entenda

Stillness InMotion

Eu não sei se entendi bem o que evoca o naipe de espadas. A minha estratégia para lidar com isso então vai ser escrever sobre esse incômodo com o não saber, a trava que surge em mim toda vez que eu sei que eu não sei e tenho poucas ferramentas ou interesse ou tempo para resolver isso. A trava ganha força também a partir do meu desejo de ser muito boa em tudo que eu faço e ameaça nunca mais abrir quando a ansiedade em aprender logo, matar a curiosidade e entender mais aparece.

Ainda assim, a atração pelo desconhecido é o que mexe comigo. É uma delícia sentir o frio na barriga que o flerte com o não saber causa, ser seduzida pela curiosidade, viver a busca por algo novo mesmo sabendo que qualquer conhecimento será sempre incompleto. Vivo sempre um paradoxo: sou seduzida pela promessa do mistério, do inacabado, de uma investigação sempre pendente, mas me perco na urgência do entendimento e na possibilidade de ir sempre além.

Quando pego um texto em inglês para ler, por exemplo, ainda que eu conheça o idioma o suficiente para continuar com a leitura, eu simplesmente não consigo prosseguir por muito tempo. A cada frase, percebo que não compreendo o suficiente mesmo quando conheço todas as palavras. Não importa se o entendimento vem do contexto ou do verbete de fato, sempre sinto que algo muito grande me escapa. Na comunicação, qualquer que seja, algo sempre escapole, mas, quando envolve um outro idioma que não é o seu, a sensação é de perseguir palavras-fantasmas, sombras de uma cultura-país-falante, e, por isso, eu fujo, ainda que queira muito ficar. No fim das contas, eu só aceito perder o sentido em português.

Ninguém sabe tudo. A gente está cansado de saber disso, mas o que a gente não sabe, mas quer muito um dia saber, também diz alguma coisa. Todas essas lacunas, junto com a nossa bagagem e capacidade de conectar o que está sendo aprendido com o que veio antes e vai vir depois, também. A gente não é só o que a gente já absorveu, conheceu, estudou, acha que entendeu, a gente é também tudo aquilo que a gente procura e também o que a gente teve coragem de imaginar ou mesmo abandonar, independente se ficou ou não o desejo de voltar nessa fantasia específica e não concretizada de completude.

Somos um emaranhado de pequenos saberes que nos ensinam a fazer mais e mais perguntas. E a gente adora se perder em todas as possibilidades que elas apresentam. Sei que busco muitas certezas ainda, que me perco nesse desejo, antecipo, travo e declaro guerras e mais guerras contra eu mesma, mas escrevendo tenho percebido que o que mexe com a gente, dá o clique, nos movimenta é sempre a imaginação. E a imaginação, querendo ou não, sempre está envolvida com as forças ocultas do não saber.

Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para esse mês de escrita e leitura foi tarô e, durante esse período, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo. Para essa segunda semana, elas escolheram o naipe de espadas, que é diretamente relacionado à racionalidade, lógica e pensamentos, mas também envolve os conflitos internos que podem surgir a partir desse plano mental.

Você pode ler o meu texto da primeira semana aqui.

Nina Rocha está em obras

Conheça o trabalho literário da autora assinando sua newsletter Nina Nina Não.

em belo horizonte
você pode tomar ônibus
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ipanema, filadélfia, pompéia e paraíso
milionários, funcionários, diamante
goiânia, jardim europa, providência
saudade, jardim felicidade
e até xodó

Nina Rocha

Nina Rocha nasceu em 1992 em Montes Claros, Minas Gerais, e é formada em Comunicação Social pela UFMG. Atualmente mora, borda, pedala e escreve em Belo Horizonte. Entre suas muitas atividades, uma nova foi incluída recentemente: agora ela também vive a espera da publicação de seu primeiro livro de poesias.

“Em obras” está em pré-venda pela Benfeitoria e será publicada pela editora Urutau. Com R$5180 reais já arrecadados até o momento, a publicação já é certa, sendo o objetivo atual aumentar a tiragem, espalhando assim a voz dessa escritora pelo mundo.

Nina estreia com uma obra caracterizada por poemas que preenchem o espaço público, misturando-o com o privado. A partir dessa ocupação das ruas, bairros e estabelecimentos de detalhes cotidianos pessoais, a autora fala de coisas comuns, muitas vezes com um toque de humor, e mexe conosco a partir dos detalhes.

Sua leitura nos dá vontade de ocupar todos os espaços que nos cercam de vida, incluindo aqui até mesmo nossa própria casa, enquanto nos faz pensar em amor, troca, decepções e expectativas. O espaço, a cidade, a casa e até mesmo a memória, tudo isso na obra de Nina serve como um lembrete do presente, esse tempo marcado pelo cotidiano e o banal, que diz tanto sobre quem somos, ao evidenciar esses detalhes tão esquecidos.

Na entrevista a seguir, a autora compartilha comigo — e agora também com vocês — um pouco sobre seu processo criativo, sua relação com a escrita e a criatividade no todo, suas referências e seus projetos:

T: Escrever um livro de poesia é bem diferente de simplesmente escrever, né? A gente precisa planejar algo mais, fazer um projeto, tentar fazer ideias diferentes funcionarem juntas, fazer toda uma montagem de imagens poéticas. Como foi esse processo para você?

N: Acho que especificamente nos textos que estão nesse livro, o processo foi de muitos cortes e reescritas. Alguns dos poemas nasceram de outros textos que eu havia escrito há muito tempo atrás, alguns com mais de dez anos. Foi interessante testar novos formatos para ver o que funcionava. Eu sempre me coloquei com alguém que escreve prosa, porque achava a poesia uma coisa muito elaborada e distante de mim. Mas com essas experimentações, fui conseguindo chegar numa linguagem em que finalmente me senti confortável com os versos. Foi um processo bem gostoso de experimentar e descobrir novas formas de contar com poucas palavras.

T: Quais são seus hábitos de escrita? Como funciona seu processo criativo? Você tem alguma rotina criativa? Como você concilia seu trabalho, que envolve escrita também, com a escrita de obras literárias?

N: Eu gosto muito de escrever em caderninhos e blocos, então sempre carrego um desses itens comigo. Às vezes anoto uma palavra ou uma frase que pensei e para depois desenvolver em um texto. Acontece muito disso demorar e eu não lembrar mais qual foi a origem dessa ideia, mas é interessante porque a proposta inicial transmuta e o texto vira uma outra coisa. Eu não tenho uma rotina frequente de criação. Tem épocas em que estou super produtiva, e outras em que passo semanas sem escrever, e acho que faz parte do processo também. Não acredito que a gente precise produzir material o tempo inteiro, mas a escrita para mim funciona muito através de estímulos, então mesmo quando não estou escrevendo, essas faíscas seguem acontecendo ao redor e alimentando as ideias de um texto que ainda não foi gestado. Acontece também de notar algo novo na rotina, escutar uma história, ler algo que traz um estalo que me motiva a produzir instantaneamente. O meu processo é bem devagar e tento escrever sem cobranças. Grande parte do meu trabalho já envolve a escrita e às vezes é difícil separar a escrita do ofício da escrita recreativa. Deixo as obrigações para horário comercial e evito que essas tarefas atravessem o prazer da escrita em todos outros horários.

T: Escrever muitas vezes é visto como um ato solitário. Para você também é assim? Se não, como as outras pessoas passaram a fazer parte do seu processo criativo?

N: Muita gente tem aquela ideia do escritor recluso, antissocial, trancado dentro de casa e que faz tudo sozinho. No meu caso é exatamente o oposto. Eu gosto muito de participar de oficinas de escrita, ler textos de amigos e pedir opinião de pessoas que confio sobre minhas produções. Nesse sentindo, minha escrita é de muitas mãos.

Acho que esse tipo de troca estimula muito a criação e podem ser um pontapé inicial para ótimas ideias.

T: Você borda, cozinha, cria e testa receitas, além de desenhar e escrever, né? Como essas atividades se conectam para você?

N: Às vezes eu me deparo com essa questão existencial: qual a relação entre todas as coisas que eu faço? Porque a princípio, são totalmente distintas e um talvez pouco aleatórias. Mas acho que tem pontos em comuns que perpassam todas elas, e uma delas é a criação. Muita gente ainda tem aquela ideia de criar como um ato quase divino, que tem que vir de um momento de inspiração. Parece que ficamos esperando uma musa descer dos céus e nos dar a permissão para criar. Isso acaba tirando nosso prazer de fazer as coisas por fazer, sem ter um propósito produtivo, e tira muito a graça da criatividade e coloca ela num pedestal, como se fosse algo exclusivo a grandes artistas. Tem tanta coisa na nossa rotina que envolve criar e ter ideias, desde refogar cebolas com um tempero diferente a escrever um conto ou bordar um pano de prato com uma frase inusitada.

T: No seu livro “Em obras”, há diversas referências, indiretas e diretas, a outras artes, como a música, e também aos seus hábitos. Qual é a importância desse cotidiano de atividades, hobbies e interesses para a sua criatividade? Como suas referências te afetam na hora de fazer arte? E, claro, quais são elas?

N: Toda a importância! Eu acredito muito que o que a gente produz é um resultado do que a gente tem como referência e consome com o que a gente vivencia e percebe ao nosso redor. São os estímulos que impulsionam a criar e produzir. Essas referências acabam se tornando parte do que fazemos e do que somos, e algumas das minhas na literatura são Ana Cristina César, Angélica Freitas, Patti Smith, Drummond, Ana Martins Marques, Lydia Davis, Elvira Vigna e Wisława Szymborska.

T: E a publicação do livro? Como você tem lidado com a pré-venda e com a decisão de botar esse trabalho no mundo?

N: É um processo que dá um frio na barriga mas também traz muita empolgação. Quando finalizei o livro, ainda não tínhamos a pandemia, e a publicação em meio a todo esse caos me trouxe várias dúvidas. Mas vi a Angélica Freitas comentando em uma entrevista que deixar de fazer as nossas coisas é uma forma de desistir, e acho que concordo com isso. Fiquei pensando muito sobre o propósito de publicar um livro em 2020, mas cheguei à conclusão que conseguir fazer qualquer coisa em 2020 já é um marco.

T: Quais são seus próximos planos literários?

N: Quero montar um livro com alguns contos. Uma boa parte já escrita, mas vou a passos de formiguinha, num processo lento, sem muita pressa para publicar.

Edit posterior: Em Obras pode ser comprado no site da Editora Urutau. 

Você pode conhecer um pouco do interior do livro, incluindo alguns poemas, a partir desse meu post no Instagram.


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Trailer de um filme estranho, meio ruim e talvez otimista demais sobre a vida após algum apocalipse

Alex Litvin

O que acontece quando começamos a tensionar o significado das palavras? O que a gente perde quando somos forçados pelas circunstâncias a usar as palavras e expressões que conhecemos de outra forma? O que essas mudanças significam? O que elas causam nas pessoas e na sociedade? O que acontece quando elas surgem a partir das consequências do que a humanidade já viveu, mas quase ninguém mais se lembra?

O que a humanidade conhecia como três da tarde não é mais três da tarde como sempre foi. Não tem luz do sol, não tem trabalho formal, não tem horas e mais horas que separa esse momento da hora de se recolher. As três horas da tarde parecem mais próximas agora das dez da noite de antes.

Família não é mais somente o grupo de pessoas que tem vínculo sanguíneo, de sobrenome e talvez de afeto. Família agora tem um significado mais próximo do que antes se entendia como comunidade. A sobrevivência humana passou a depender de redes de solidariedade e esses laços que surgiram da troca e do diálogo fizeram com que a ideia de parente ganhasse outros sentidos.

O mundo que se desenha agora, muitos anos após o que alguns chamaram de fim do mundo, é outro. Ele veio após os nomes democracia, povo e perseguição serem deturpados. Ele veio após fugas, guerras, desespero, dor e fins ganharem novas acepções. O que existe agora é um desejo urgente de sobrevivência e uma noção de que a humanidade é composta por seres sociais e que as pessoas precisam estar sempre cercadas de outras.

“Talvez tenhamos ficado muito tempo ensimesmados”, continua a protagonista branca, idosa e de cabelos lisos chamada Sônia, como a atriz famosa que a interpreta, para um grupo que não conheceu nada daquilo que ela viveu e agora a ouve com curiosidade e respeito.

Tem quem acredite que esse novo mundo se cria quando, às três horas da tarde, as pessoas se sentam juntas para conversar e compartilhar histórias antigas e novas. Alguma coisa acontece quando as pessoas se juntam. Alguma coisa acontece quando essa gente coloca no papel o que uma comunidade lembra, sonha, ri e conversa.


Esse texto é resultado do dia 8 do Desafio de Escrita para a Quarentena proposto pela Stefani Del Rio. A proposta era que se escrevesse uma espécie de sinopse para um filme fictício de distopia e/ou pós apocalíptico.

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