três poemas insólitos

Colagem digital feita por mim a partir de elementos disponíveis no Canva

cabelo trançado já foi pecado
trança em escamas é penteado
mulher peixe cavalo

***

como produzir sua própria criatura

providencie papel machê e imaginação
faça aulas de biscuit cerâmica bordado bruxaria
e se der tempo aprenda a lidar com lã, poções e amigurumis
consulte mary shelley
pense na ovelha dolly
não cometa os mesmos erros que albieri
veja filmes de ficção científica
leia histórias de horror
e algumas de amor também
modele essa massa amorfa
até que ela faça sentido
e após terminar
proteja sua criação

***

oh my god

o mercado financeiro é
uma partida de pingue-pongue profissional
uma ficção contada como biografia séria
de um homem branco qualquer
uma seita que promete a reabilitação
de pessoas jurídicas desesperadas
um jogo de espelhos
de um parque caindo aos pedaços
cuidado pra não ir para o lado errado
cair no conto do vigário
acreditar em compliance
e maquiagem contábil

há tantos caídos
na base da pirâmide
um mar de gente sem deus
a falência é o maior dos pecados

esses poemas fazem parte do meu livro “eu investigo qualquer coisa sem registro”, obra que foi selecionada para publicação no concurso Poesia InCrível de 2021. se você gostou desses poemas, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram para não perder a data do lançamento que vem aí.

Mulheres negras escrevem o mundo

No mesmo mês que “Poetas negras brasileiras: uma antologia” chegou em minha casa, o livro “A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios” da Gloria Anzaldúa veio parar em minhas nãos. A antologia foi lida primeiro, a partir do acaso que, com ajuda dos Correios, impôs a esses dois livros diferentes datas de chegada, mas Gloria Anzaldúa já estava ali comigo, acompanhando minha incursão nos vários universos poéticos catalogados por esse livro de poemas que, do miolo até a capa, reafirma a existência e a heterogeneidade da escrita feminina e negra e brasileira, essa escrita feita fora do que chamam de Norte do planeta por quem precisa colocar sua voz no mundo.

De Gloria Anzaldúa conheço pouco até então, apenas o texto Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, lido antes e depois da chegada desse pequeno tijolinho roxo editado pela A Bolha e traduzido pela poeta Tatiana Nascimento, e algumas outras citações esparsas, mas isso foi mais do que o suficiente para eu costurar essas duas leituras que agora me parecem tão complementares.

“Poetas negras brasileiras” tem como organizadora Jarid Arraes, escritora que desde a sua origem independente atua evidenciando as desigualdades do mercado editorial e do mundo da escrita em seu sentido mais amplo. Com esse livro, que une estreantes e também nomes consolidados, a editora do selo Ferina desconstrói estereótipos sobre a escrita feminina e negra e indica novos caminhos para quem escreve e quem lê, enquanto apresenta o livro e a palavra como ferramentas de expressão cultural e individual e também de luta e denúncia. Semelhança e diferença coexistem na obra como uma bandeira literária que aponta o óbvio ao leitor, ao crítico e à sociedade: a literatura não é feita só por homens brancos e a ideia de condição humana e universalidade não vem somente dessa perspectiva, ela vem das múltiplas possibilidades de encontro da alteridade com a identidade.

Gloria, em seu ensaio mais famoso, diz:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Para ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.”

E continua:

“O ato de escrever é um ato de fazer alma, uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu, aquele nós mulheres de cor pensamos ser “a outra” – a escura, a feminina.”

E depois, seguindo esse raciocínio, afirma:

“A escrita é uma ferramenta para adentrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver”.

Por mais diversos em temática, estilo e até estrutura que sejam os poemas das autoras negras brasileiras catalogados nessa antologia, todos eles me parecem ter sido escritos por essa força-motriz exposta pela Gloria nesses destaques. A escrita para grupos oprimidos é marcada pelo desejo de subjetivação perante o mundo que prega o individualismo homogêneo, enquanto nega a subjetividade de certos corpos, e é por isso que a publicação de obras como essa antologia importam tanto e tem dimensões políticas que mesclam o individual e o coletivo.

Ancestralidade e filiação, afetos e sexualidade, identidade, racismo, trajetória, dúvidas, amor romântico e a falta dele e até mesmo as angústias contemporâneas que se relacionam com as redes sociais são alguns dos assuntos trabalhados por algumas das mais de 70 poetas negras que fazem parte desse trabalho. Vale destacar que a curadoria de Jarid reuniu autoras de 18 anos a 70 anos e tentou abarcar todo o Brasil, com nomes oriundos inclusive de cidades do interior, mas infelizmente falhando em não conter representantes das regiões Sul e Norte do país*.

Com poemas de nomes como Conceição Evaristo, Bianca Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Duarte, Lubi Prates, Mika Andrade, Nina Rizzi, Tatiana Nascimento, Cecília Floresta e o da própria organizadora, a obra surge já mostrando que o enorme talento dessas poetas negras não é exceção. Entre as poetas que eu ainda não conhecia, destaco o que vi de Thamires P., Silvia Barros, Pétala Souza, Nicole de Antunes, Mayara Ísis, Marina Farias, Mariana Madelinn, Maria Vitória, Luna Vitrolira, Juliana Berlim, Jhen Fontinelli, Gessica Borges, Eliza Araújo, Débora Gil Pantaleão, Kiusam de Oliveira, Jovina Souza e Andrezza Xavier no livro. Há um mar de mulheres negras fazendo literatura em terra firme mesmo quando o mundo, na prática, ainda insiste em dizer que esse não é um lugar para elas.

*O livro foi construído a partir de uma chamada nas redes sociais e, apesar do esforço da organizadora em mudar isso, a ausência de autoras dessas regiões provavelmente veio da limitação desse formato.

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Metrópole

Se sua agenda parece impossível de ser cumprida, você não tem ideia de como é o planner da Metrópole

Nova York pelo desenho do artista holandês Stefan Bleekrode — Saiba mais sobre ele aqui.

Sempre chego nas aulas de yoga mais cedo às quartas-feiras. O trânsito descomplicado, a velocidade do ônibus, a hora que saio do trabalho, o elevador já me esperando no andar, e todo o resto confluem para que eu consiga um tempo para respirar, bem no meio da semana. Toda coincidência parece mágica, mas uma que envolve tantos fatores só pode ser coisa do demo ou dos deuses.

Fui criada em lar católico, então nem de brincadeira consigo nomear esses 20 minutos sagrados de adiantamento de hora do diabo, como meus amigos adoram fazer. Apesar disso, gosto de cometer várias heresias, como falar de astrologia, entoar mantras e dizer que descobri a deusa Metrópole quando a dádiva da quarta-feira surgiu em minha vida.

Toda vez que o ônibus chega na hora exata, a Metrópole mexeu os pauzinhos para isso. Quando o despertador não toca e mesmo assim você acorda na hora certa, pode ser seu relógio biológico ou ela fazendo seu trabalho. Sabe quando você faz um caminho, diferente ou não, bem no horário de pico e não há muito trânsito? Não foi o waze, app nenhum te dá essa sorte toda. Se caiu um toró assim que você chegou em casa, a Metrópole te queria seco. O acaso cotidiano é presente dela. Ela é a deusa dos pequenos e raros milagres diários das grandes cidades. Pena que é uma só.

Se sua agenda parece impossível de ser cumprida, você não tem ideia de como é o planner da Metrópole. Só a parte de Belo Horizonte consta 1,433 milhão de linhas, uma para cada pessoinha que mora aqui de acordo com o censo de 2010.

Metrópole não trabalha com um destino definido ao nascer. Seus estagiários observam as pessoas, notam as possibilidades de encontros e desencontros e fazem relatórios que são repassados para a chefia, ela. Com as informações reunidas, ela faz mágica com o que tem no dia e só. Todos os funcionários estão sobrecarregados. É por isso que parece que ela se esquece da gente às vezes e há dias tão melhores que outros.

Quando sento na sala de espera da yoga, penso na Metrópole, seus estagiários e em todo o caos que ela governa. Sempre me pergunto se a deusa do cotidiano tem alguma folga, alguma noite em que pode sentar com seus gatos e tomar vinho enquanto lê um livro. Provavelmente não, já que está aqui e também em Tóquio, em Buenos Aires, Londres e Lagos.

De repente, eu nem me lembro mais dela e vou ler revista de fofoca, escrever umas baboseiras no caderninho que anda comigo, comer a trufa que comprei na hora do almoço e imaginar a vida de alguém que vi passar pela porta.

Quando percebo, o tempo acabou mais uma vez. São só vinte minutinhos.


Esse texto foi originalmente publicado na newsletter “Crônicas da Vida Alheia”, projeto que eu tinha com a Ana Squilanti. Agora eu tenho uma newsletter só minha. Se interessou? Clique aqui e assine.


Este texto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Esse é um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre autoras e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras.

Tomate

Ilustração minha. Descrição: vários tomates feitos de canetinha soltos pela página.

Não sou suave, sou pesada e mais densa que a água.

Nas profundezas, eu habito. Aqui rio, canto, choro, vivo, amo e morro, enquanto mergulho num líquido que mais parece um molho.

Viajo no escuro, entre o medo e a coragem e sentindo gosto de tomate.


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A mulher sacrificada

Fotografia da página 13 do livro “Eva Luna” da Isabel Allende.

Coloco o despertador para tocar às 05:40, me levanto, escovo os dentes e corro para a cozinha para ajeitar o café dos outros. Estendo a toalha de mesa, faço café, posiciono as xícaras com seus pires em frente a cada cadeira, coloco os pães comprados ontem em cima da mesa junto ao leite e requeijão. Arrumo os talheres ao lado de cada xícara. Enquanto eu ajeito a mesa, eu como um pouco.

Todos acordam e vão para a mesa. Felizmente, dessa vez eu não tive que acordar ninguém. Corro para o banho e de lá ouço as crianças entoando o pai nosso junto com ele. Primeiro é o protetor solar e depois se inicia o ritual de passar maquiagem, faço isso porque me aconselharam na Firma a dar um jeito nessa cara de cansada. Agora todo dia só saio depois de construir minha pele saudável, meu rosto corado e minha beleza natural. Sem jamais passar um batom vermelho, claro.

Acabo de rebocar minha cara às 07:20 e calço um sapato desconfortável com um saltinho para me deixar elegante. Me disseram que o salto era necessário para passar um ar mais profissional e completaram, entre risadinhas, “salto é um sacrifício necessário pra ficar bonita, né?”. Tudo pronto, já é hora de sair de casa. Quando chego na porta, ele sempre diz “guarda as coisas na geladeira e deixe as xícaras na pia pra mim, tô atrasado”. Inspiro, expiro, penso em Dalai Lama, dou meia volta, vou para cozinha e guardo tudo.

Consigo chegar no trabalho na hora quase sempre. Por sorte, o ônibus acaba atrasando alguns minutinhos para passar e eu consigo pegá-lo. Antes da catraca, eu já sinto os calos da corrida que fiz para chegar no ponto. Sempre saio atrasada, porque sempre pedem algo a mais. Passo a manhã fazendo o meu trabalho e dando uma mãozinha para os colegas. Você sabe como é, né? Homem precisa de uma ajudinha sempre. Não conseguem pegar água, nem cafezinho e nem pedir o almoço sem chamar uma mulher. Quando me vejo, estou me desdobrando em duas para trazer o copo de água para o Fulano e entregar o serviço às quatro. Enquanto faço o meu, alguém me grita dizendo “preciso de um olhar feminino, vem cá, Marta” e eu me levanto para dizer que tá tudo ok, porque ai de mim se eu falar que faltou alguma coisa.

Volto para casa num ônibus lotado, ele me liga e diz “você pode passar na padaria, tô muito cansado”. Eu digo que sim, desligo e a chuva começa a cair. Mando uma mensagem no Whatsapp falando “Está caindo um toró, não dá mesmo para você passar na padaria?” e a resposta que vem diz “Marta, que saco, hein? Não dá pra te pedir nada que você arruma uma desculpa depois”. Leio, respiro fundo, abafo o grito e digito “ok, pode deixar comigo”.

Chego ensopada em casa com o saco de pão. Antes de entrar, retiro o calçado para evitar que eu tenha que passar pano. Abro a porta e encontro várias pegadas de sapato molhado em toda a sala. Não sei quem fez, mas sei que sou eu que vou limpar. Vou para o banho direto, foda-se o chão molhado, foda-se a louça da manhã que tenho que lavar, foda-se! Não vou ficar com a roupa encharcada assim! Não quero adoecer.

Saio do banho, lavo a louça, seco o chão molhado. Depois falo para as crianças que já é hora de fazer dever de casa e faço vários sanduíches, porque ninguém daqui gosta de jantar. Enquanto a gente come, eu alerto meus filhos que já passou da hora de tomar banho. Explico que é para irem logo, sem enrolação, e quando o primeiro entra no banheiro, eu finalmente deito para começar a leitura do meu livro da vez. A ficção é o meu refúgio. Tudo acontece quase sempre igual, só muda o livro. Hoje é dia de começar Eva Luna, da Isabel Allende, bebê!

“_Está é a Santíssima Virgem Maria — disseram-lhe.

_ Ela é Deus?

_Não, é a mãe de Deus.

_Sim, mas quem manda mais no céu, Deus ou a mãe dele?

_Cale-se, insensata! Cale-se e reze! Peça ao Senhor que a ilumine — aconselharam.”

Leio esse trecho, fico encarando a página do livro até meus olhos embaçarem e me perco em devaneios de como seria o mundo se ele fosse feito por uma Deusa. Imagino como seria se quem mandasse no céu, no inferno e na Terra fosse Ela. Nesse mundo eu não teria que interromper minha leitura para fazer um cafezinho novo para ele.

No mundo que eu vivo, a gata borralheira casou-se com o príncipe e só ficou livre de limpar o castelo porque outras mulheres passaram a fazer para ela. Ela não precisa mais usar uma vassoura, mas continuará tendo que dizer sim ao que o Sr. Príncipe pedir.

Submissão, obediência, servidão, sacrifício, punição. Me disseram que todo infortúnio que acomete as mulheres é culpa de Eva, que os nossos dias tem que ser feitos de sacrifícios para que, no futuro, a gente seja perdoada junto com ela. No íntimo, sei que jamais seremos absolvidas por eles.

Ouço vozes, vejo que estão me chamando. Fecho o livro até mesmo sem marcar e levanto correndo. Sou chamada de egoísta porque falei “estou lendo, você não pode fazer isso sozinho?”. Sinto medo. Sinto culpa. Sinto raiva. Vou direto para o filtro de barro, deixo a água cair no copo e bebo tudo bem devagar. Expiro, inspiro, expiro, inspiro e concluo que eu preciso parar de esperar o perdão de Eva, porque se ele vier um dia, será na morte. A redenção não vai vir sozinha.

Aproveito que sou acostumada a ser silenciosa demais por viver me escondendo e, enquanto ele vê TV, eu faço a mala e depois a escondo debaixo da cama. Sem que meus filhos percebam, já separo algumas mudas de roupa deles e as ajeito nas mochilas, enquanto os ajudo a guardar os brinquedos. Eles me pedem para contar uma história e eu sento entre as duas camas e conto sobre a feiticeira que envenenou aqueles que tentaram fazer maldade com ela e os filhos. Antes de dormir, minha filha me pergunta se a feiticeira era boa ou ruim e eu digo que um pouco dos dois, como quase todos nós. Explico que alguns são bem mais ruins que bons e que a feiticeira não é uma dessas pessoas, a maldade dela é só uma defesa contra quem é realmente muito ruim. Deixo as mochilas bem evidentes ao lado da cama deles, como se eles fossem levá-las para a escola. Vou para cama e deito ansiosa para a hora de acordar. Amanhã tudo vai começar a ser diferente.

Levanto e faço tudo sempre igual, minto que estou de folga e ofereço para levar os meninos para o colégio. Rindo, ele diz “Opa! Hoje a senhorita resolveu fazer alguma coisa?”. Minha vontade é espatifar o pires na cabeça dele. Inspiro, expiro, relaxo e espero ele sair de casa. Pego minha mala e as mochilas, enquanto os pequenos fazem muitas perguntas que eu opto por ignorar. Antes de sair, faço uma trouxinha com as comidas da dispensa, quebro a TV, pego toda a grana que ele guarda numa gaveta e escrevo com um batom vermelho no espelho do banheiro do nosso quarto: “Não ouse vir atrás da gente. Meus olhos seguirão todos os seus passos para o resto de sua vida. Se eu desconfiar que você está perto demais, te mato com a faca que levei da cozinha”. Tranco a porta, jogo a chave fora e sigo para a rodoviária. Hoje tudo começou a ser diferente e sei que só vou sentir falta do meu filtro de barro.


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Participei do concurso literário Leia Mulheres + Sweek Brasil com esse conto, ele não foi um dos vencedores, mas foi considerado um dos destaques entre 840 textos.

Eu sou um monstro

Foto meramente ilustrativa, pois não sou fofo e sou bem mais abstrato. Imagem encontrada aqui.

Sou nômade, vivo de favores e vou me ajeitando onde me deixam entrar. Finjo que vou ficar pouco tempo, que aparecerei só às vezes e que quase não vou incomodar. As pessoas não gostam de mim, mas me deixam entrar e se habituam com a minha presença por achar que faz parte. E eu entro, me ajeito e vou ganhando espaço, mesmo sendo insuportavelmente chato.

Eu gosto de zoar. Amarrar perna de sapo, criar apelidos cruéis e assustar quem não estiver atento. Esses são hábitos que tenho desde que nasci. Recentemente decidi adotar o rótulo de zoador e tenho aperfeiçoado meus dons para atingir em cheio os participantes da tal vida adulta.

Esse novo rótulo veio a calhar, viu? Agora quando eventualmente me confrontam, digo “quem tem limite é município” e as pessoas caem, como bobas, porque nunca querem ser estraga-prazeres. Elas temem cortar o barato de alguém e ganhar a fama de politicamente corretas. E eu aproveito disso sendo aquele cara que vive falando como são chatas essas pessoas que vivem patrulhando o humor, repito como um papagaio como é tudo inofensivo, digo que bullying forma caráter e outras baboseiras como “vocês são os verdadeiros fascistas” e assim consigo me manter por mais tempo na minha morada da vez.

Antigamente, tudo que eu fazia era mais direto, sabe? Os resultados apareciam rapidamente, não tinha tanto jogo e assim a comida ficava escassa num pulo e minhas mudanças tinham que acontecer com mais frequência. Pois agora, eu sou um novo monstro. Me adaptei aos tempos modernos e me alimento moderadamente em três em três horas, tudo muito saudável, com cara de indicação de nutricionista.

Antes minha comida era o medo, o pavor, a culpa. Agora é um prato diversificado e cada vez mais colorido: ansiedade, culpa, medo, tristeza, pavor, depressão, raiva, dores crônicas, compulsões variadas, insônia, paranoia, estresse e tudo mais que há de ruim.

Posso adotar muitas faces no mundo atual. Além do zoador, uma das minhas preferidas é a do cara que fica falando para todos que pra ser valorizado tem que vestir a camisa da empresa mesmo, que tem que se esforçar, dar o sangue, suar a tal da camisa da empresa até dar pizza debaixo dos braços. Adoro essa persona monstra! E juro que nem é porque o papo envolve suor e sangue, que, por sinal, caem muito bem brócolis e insônia! Esse personagem julga, julga e julga e faz aquele tipo de comentário que cria uma culpa deliciosa em todos ao redor! A moça que prefere tirar férias do que receber o proporcional ouve minha ladainha, começa a pensar nela e acaba dizendo foda-se para o seu corpo e mente que pedem descanso, trocando a folga pelo dinheiro e por uma suposta valorização profissional que nunca vai vir. Se eu tiver sorte, em alguns anos ou meses, ela vai ter um ataque de nervos que vai servir de sobremesa a semana inteira!

Gosto do jogo moderno. Vejo o definhar das minhas vítimas por anos, me alimento e me reproduzo. Fiquei menor, é verdade, e minhas crias, também. Mas isso é até bom, porque desse tamanho é mais fácil chegar de fininho e fixar morada ou, em alguns casos, me esconder por anos, fazendo refeições mínimas, até criar um espaço propício para crescer e constituir família. Nesse modus operandi, as pessoas demoram a perceber que somos tão nocivos e mesmo depois de anos, quando a gente já cresceu tanto que é um elefante enorme parado na sala de estar, eles fingem que não estão nos vendo.

Confesso que tem hora que sinto falta da juventude. Quem nunca, né? Os apetites vorazes, a inconsequência, a vontade de comer o mundo inteiro numa só mordida. Ai, ai, que saudade desses tempos em que a falta de mastigação não causava azia… Mas era outra época. Época em que éramos muitos, nômades, e dominávamos a igreja, o Estado e manipulávamos vilarejos falando sobre bruxas, pecado, bem e mal.

Desde esse tempo, me alertavam que quando chega a velhice a nostalgia aparece, principalmente quando somos imortais. Eu sei que aquela dinâmica toda de se empanturrar de uma vez e andar dias em busca de um novo cardápio não é boa pra mim e nem para os outros da minha idade. Deixo isso para alguns dos meus filhos, sobrinhos, netos e bisnetos, ainda jovens e com espírito aventureiro. Eles, inspirados em nossas histórias, resolveram voltar a alimentar a caça às bruxas e estão juntos aproveitando que o Estado Laico ainda é uma lenda.

Me perguntam algumas vezes se eu estou cansado, se penso em me aposentar e nossa, como esses caras não entenderam nada sobre ser monstro! A gente não se cansa! A gente se diverte! O trabalho é pouco, pouquíssimo. A gente não precisa de muita coisa para fazer os humanos fazerem o trabalho sujo. A gente tenta alguns e já é o suficiente. É como se fosse uma terceirização! Pauta que a gente apoiou bastante no Congresso, por sinal.

Não precisamos de muito esforço, porque os humanos se deixam levar. A gente investe na raiva, na mágoa, na culpa e no medo deles, sentimentos que eles adoram ignorar, e pronto, a refeição do dia está servida! Com o capitalismo, a globalização, as redes sociais e a internet com seus trolls e mensagens que espalham ódio e pânico facilmente, tudo ficou ainda mais fácil. Eles não olham a própria história e não entendem que nunca somos completamente exterminados, porque somos imortais e sobrevivemos — como sementes, larvas de aedes aegypyi ou bactérias e vírus congelados no permafost — a espera da oportunidade certa para poder prosperar. Esperamos dentro de cada um de vocês. Somos seus hóspedes folgados.


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Declaração de amor ao ato de dormir

Cão dormindo com cobertas

Não tem como negar a importância de uma boa noite de sono. É uma questão biológica. Sem ela não somos funcionais. Dormir mal pode acarretar problemas de saúde futuros e dores de cabeça na manhã seguinte. Mas o ato de dormir é muito mais que uma necessidade fisiológica, jamais uma perda de tempo.

Dormir. A gente percebe o tempo de acordo com esse verbo: é sempre hoje quando a gente ainda não dormiu. O amanhã é pós-sono. Meia-noite só importa na festividade do ano novo, porque, se você ainda não dormiu, pode ser meia-noite e um ou três e quinze da manhã nos outros dias que continua hoje.

Dormir cria missões: a do início e a do fim do dia. Seu dia é programado de acordo com a hora que você acorda e a que você deita. E é nesse meio tempo que cabe a maioria dos verbos. Sonhar, descansar, respirar são alguns dos poucos verbos que fazem segundo turno e estão ali de plantão, mesmo quando Morpheu faz o seu trabalho.

Dormir não é um verbo sem história. Nossos demais atos também constroem um novo jeito de fazer as coisas, mesmo as tão básicas e óbvias quanto dormir. A eletricidade, essa coisa de gente humana, criou o pisca pisca das luzes das cidades e a luz da casa, da tela do celular, do computador, da televisão mudaram o ato de dormir. Em outros tempos, dormir se relacionava diretamente com o escuro. Não só o do quarto, mas de tudo. Acordávamos com o raiar do sol e dormíamos quando ele se punha. Fogo, velas e lamparinas eram a única possibilidade de luz no meio do breu, além do brilho das estrelas e da lua.

Éramos bem parecidos com galos e galinhas. O canto do galo vem junto com o nascer do sol e ele se empoleira para dormir quando ele se põe. Na cidade grande, ouvi mais de uma vez um galo cantar noite e dia. Dependendo de onde o galo mora, o sono dele também mudou.

Dormir nos proporciona resiliência. Você deita, dorme e deixa pra trás o dia ruim pra dar lugar a uma nova manhã de possibilidades. Se não há insônia e estamos saudáveis, acordar no outro dia tem um quê de renovação.

Dormir também tem algo de cura. Outros verbos, como o remediar, vão chamar o dormir de charlatão se ele vier com esse papo, mas a verdade é que, para muitos, o sono bom sara pequenas dores, como a dor de cabeça e a tristeza passageira, e ajuda a cura do resfriadinho vir mais rápido.

Dormir também pode ser um lazer. Dormir sem colocar o despertador para tocar é um ato de liberdade, de permissão ao ócio, de descanso e curtição. Dormir de tarde, após o almoço, é um exemplo. O ritual do sono diurno envolve comer e se preparar para digestão deitado, enquanto faz alguma atividade que permita você deixar o corpo mole e a mente se desligar aos poucos. Quando você vê, você acorda com o corpo todo preguiçoso e continua descansando um tempo. Descansando do ato de dormir. Você sabe que preguiça passa se alongar, mas sabe que ainda não é a hora. O jeito é pegar uma cruzadinha pra fazer, jogar algo no celular, ligar a tevê e esperar a hora certa para levantar e se esticar de novo.

Deitar e esperar o sono tomar conta do corpo e da mente é um momento em que o corpo relaxa e a mente voa. As melhores ideias surgem nesse espaço de tempo e preguiça. É sempre difícil decidir se vale a pena deixar a mente voar livremente com suas boas ideias e correr o risco de acordar sem lembrar nenhum dos caminhos percorridos na noite anterior ou se o melhor a fazer é interromper o processo do vôo livre e despertar do sono que bate à porta anotando tudo.

Esse texto surgiu em um desses momentos pré sono. Interrompi o momento para anotar a ideia no bloco de notas do celular. Só que meu sono é pesado demais e antes mesmo de começar a escrever, mas antes de ser completamente vencida pela moleza, eu anotei no bloco de notas do meu celular apenas a frase: “carta de amor ao ato de dormir”.


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