A mulher sacrificada

Fotografia da página 13 do livro “Eva Luna” da Isabel Allende.

Coloco o despertador para tocar às 05:40, me levanto, escovo os dentes e corro para a cozinha para ajeitar o café dos outros. Estendo a toalha de mesa, faço café, posiciono as xícaras com seus pires em frente a cada cadeira, coloco os pães comprados ontem em cima da mesa junto ao leite e requeijão. Arrumo os talheres ao lado de cada xícara. Enquanto eu ajeito a mesa, eu como um pouco.

Todos acordam e vão para a mesa. Felizmente, dessa vez eu não tive que acordar ninguém. Corro para o banho e de lá ouço as crianças entoando o pai nosso junto com ele. Primeiro é o protetor solar e depois se inicia o ritual de passar maquiagem, faço isso porque me aconselharam na Firma a dar um jeito nessa cara de cansada. Agora todo dia só saio depois de construir minha pele saudável, meu rosto corado e minha beleza natural. Sem jamais passar um batom vermelho, claro.

Acabo de rebocar minha cara às 07:20 e calço um sapato desconfortável com um saltinho para me deixar elegante. Me disseram que o salto era necessário para passar um ar mais profissional e completaram, entre risadinhas, “salto é um sacrifício necessário pra ficar bonita, né?”. Tudo pronto, já é hora de sair de casa. Quando chego na porta, ele sempre diz “guarda as coisas na geladeira e deixe as xícaras na pia pra mim, tô atrasado”. Inspiro, expiro, penso em Dalai Lama, dou meia volta, vou para cozinha e guardo tudo.

Consigo chegar no trabalho na hora quase sempre. Por sorte, o ônibus acaba atrasando alguns minutinhos para passar e eu consigo pegá-lo. Antes da catraca, eu já sinto os calos da corrida que fiz para chegar no ponto. Sempre saio atrasada, porque sempre pedem algo a mais. Passo a manhã fazendo o meu trabalho e dando uma mãozinha para os colegas. Você sabe como é, né? Homem precisa de uma ajudinha sempre. Não conseguem pegar água, nem cafezinho e nem pedir o almoço sem chamar uma mulher. Quando me vejo, estou me desdobrando em duas para trazer o copo de água para o Fulano e entregar o serviço às quatro. Enquanto faço o meu, alguém me grita dizendo “preciso de um olhar feminino, vem cá, Marta” e eu me levanto para dizer que tá tudo ok, porque ai de mim se eu falar que faltou alguma coisa.

Volto para casa num ônibus lotado, ele me liga e diz “você pode passar na padaria, tô muito cansado”. Eu digo que sim, desligo e a chuva começa a cair. Mando uma mensagem no Whatsapp falando “Está caindo um toró, não dá mesmo para você passar na padaria?” e a resposta que vem diz “Marta, que saco, hein? Não dá pra te pedir nada que você arruma uma desculpa depois”. Leio, respiro fundo, abafo o grito e digito “ok, pode deixar comigo”.

Chego ensopada em casa com o saco de pão. Antes de entrar, retiro o calçado para evitar que eu tenha que passar pano. Abro a porta e encontro várias pegadas de sapato molhado em toda a sala. Não sei quem fez, mas sei que sou eu que vou limpar. Vou para o banho direto, foda-se o chão molhado, foda-se a louça da manhã que tenho que lavar, foda-se! Não vou ficar com a roupa encharcada assim! Não quero adoecer.

Saio do banho, lavo a louça, seco o chão molhado. Depois falo para as crianças que já é hora de fazer dever de casa e faço vários sanduíches, porque ninguém daqui gosta de jantar. Enquanto a gente come, eu alerto meus filhos que já passou da hora de tomar banho. Explico que é para irem logo, sem enrolação, e quando o primeiro entra no banheiro, eu finalmente deito para começar a leitura do meu livro da vez. A ficção é o meu refúgio. Tudo acontece quase sempre igual, só muda o livro. Hoje é dia de começar Eva Luna, da Isabel Allende, bebê!

“_Está é a Santíssima Virgem Maria — disseram-lhe.

_ Ela é Deus?

_Não, é a mãe de Deus.

_Sim, mas quem manda mais no céu, Deus ou a mãe dele?

_Cale-se, insensata! Cale-se e reze! Peça ao Senhor que a ilumine — aconselharam.”

Leio esse trecho, fico encarando a página do livro até meus olhos embaçarem e me perco em devaneios de como seria o mundo se ele fosse feito por uma Deusa. Imagino como seria se quem mandasse no céu, no inferno e na Terra fosse Ela. Nesse mundo eu não teria que interromper minha leitura para fazer um cafezinho novo para ele.

No mundo que eu vivo, a gata borralheira casou-se com o príncipe e só ficou livre de limpar o castelo porque outras mulheres passaram a fazer para ela. Ela não precisa mais usar uma vassoura, mas continuará tendo que dizer sim ao que o Sr. Príncipe pedir.

Submissão, obediência, servidão, sacrifício, punição. Me disseram que todo infortúnio que acomete as mulheres é culpa de Eva, que os nossos dias tem que ser feitos de sacrifícios para que, no futuro, a gente seja perdoada junto com ela. No íntimo, sei que jamais seremos absolvidas por eles.

Ouço vozes, vejo que estão me chamando. Fecho o livro até mesmo sem marcar e levanto correndo. Sou chamada de egoísta porque falei “estou lendo, você não pode fazer isso sozinho?”. Sinto medo. Sinto culpa. Sinto raiva. Vou direto para o filtro de barro, deixo a água cair no copo e bebo tudo bem devagar. Expiro, inspiro, expiro, inspiro e concluo que eu preciso parar de esperar o perdão de Eva, porque se ele vier um dia, será na morte. A redenção não vai vir sozinha.

Aproveito que sou acostumada a ser silenciosa demais por viver me escondendo e, enquanto ele vê TV, eu faço a mala e depois a escondo debaixo da cama. Sem que meus filhos percebam, já separo algumas mudas de roupa deles e as ajeito nas mochilas, enquanto os ajudo a guardar os brinquedos. Eles me pedem para contar uma história e eu sento entre as duas camas e conto sobre a feiticeira que envenenou aqueles que tentaram fazer maldade com ela e os filhos. Antes de dormir, minha filha me pergunta se a feiticeira era boa ou ruim e eu digo que um pouco dos dois, como quase todos nós. Explico que alguns são bem mais ruins que bons e que a feiticeira não é uma dessas pessoas, a maldade dela é só uma defesa contra quem é realmente muito ruim. Deixo as mochilas bem evidentes ao lado da cama deles, como se eles fossem levá-las para a escola. Vou para cama e deito ansiosa para a hora de acordar. Amanhã tudo vai começar a ser diferente.

Levanto e faço tudo sempre igual, minto que estou de folga e ofereço para levar os meninos para o colégio. Rindo, ele diz “Opa! Hoje a senhorita resolveu fazer alguma coisa?”. Minha vontade é espatifar o pires na cabeça dele. Inspiro, expiro, relaxo e espero ele sair de casa. Pego minha mala e as mochilas, enquanto os pequenos fazem muitas perguntas que eu opto por ignorar. Antes de sair, faço uma trouxinha com as comidas da dispensa, quebro a TV, pego toda a grana que ele guarda numa gaveta e escrevo com um batom vermelho no espelho do banheiro do nosso quarto: “Não ouse vir atrás da gente. Meus olhos seguirão todos os seus passos para o resto de sua vida. Se eu desconfiar que você está perto demais, te mato com a faca que levei da cozinha”. Tranco a porta, jogo a chave fora e sigo para a rodoviária. Hoje tudo começou a ser diferente e sei que só vou sentir falta do meu filtro de barro.


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Participei do concurso literário Leia Mulheres + Sweek Brasil com esse conto, ele não foi um dos vencedores, mas foi considerado um dos destaques entre 840 textos.

Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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