éramos_duas.mp3

Ma-má? Mã-mã? Ma-mã-ma-mãe? Mamãe? Vem cá, mamãe. Mamãe, dorme comigo hoje? Por que, mamãe? É só um au-au, mamãe. Mamãe, eu quero. Não, mamãe. Desculpa, mamãe. Mamãe, o que é isso? Não é nada não, mamãe. Mamãe, me dá? Por que, mamãe? Mamãe, cê tá triste comigo? Me conta uma historinha, mamãe. Mamãe, eu não quero. Olha que bonito, mamãe! Mamãe, cê gostou? Vem brincar, manhêêêê! Mãe, cuidado com a bola! Eu juro que não fui eu, mãe. Eu prometo, mãe! Mãe, foi sem querer. Ah nem, mãe. Mãe, que saco! Toda hora isso, mãe. Mãe, posso dormir na casa da vovó hoje? Chuta pra mim, mãe! Que bicuda você deu, mãe! Por que não, mãe? Não quero brincar de boneca, mãe, não gosto mais. Foi mal, mãe. Vamos dormir mais tarde hoje, mãe? Mãe, deixa eu levar esse gatinho pra casa? Que que tem, mãe? Mãe, o que eu faço agora? Não vou calçar essa sandália hoje, mãe. Não gosto, mãe. E quem disse que eu ligo para isso, mãe? Não quero, mãe. Mãe, eu já falei que eu não quero! Mãe, nem vem que já não sou mais criança. Que delícia, mãe! Me ensina, mãe? Deixa eu ir, mãe. Mãe, por favor! Ai, mãe, cê não vem mesmo nadar com a gente? Mãe, por que você tem que fazer isso toda vez que eu vou sair? Como você era na escola, mãe? Cê ia bem em tudo, mãe? Mãe, me ajuda com esse zíper. Mãe, me empresta essa jaqueta? Boa noite, mãe. Só hoje, mãe. Mãe? Me deixa tentar, mãe. Eu sei, mãe. Mãe, que saco! Mãe, o que você tá fazendo aqui? Por que você fez isso, mãe? Mas eu não gosto, mãe. Eu não quero usar mais essas roupas feias suas, mãe. Ai, mãe. Tudo bem, mãe? Me dá uma carona, mãe? Obrigada, mãe. Mãe, que livro é esse que cê tá lendo agora? Mãe, me deixa em paz. Não quero falar com você agora, mãe. Eu quero ficar sozinha, mãe! Mãe, que gracinha! Te contei, mãe? O que está passando na TV, mãe? Esse programa é bom, mãe? Mãe, eu quero é isso pra mim. Ai, mãe, eu já não sei mais o que fazer. Me ajuda, mãe. Mãe, cê não vai acreditar… Você já fez isso mesmo, mãe? Jura? Mãe, agora tá pronto, pode olhar. Ficou bom, mãe? Não tem nada demais nisso, mãe. Não precisa ficar elogiando, mãe. Mãe, deixa de ser boba. Uai, mãe… Cê adorou, né mãe? Mania nova, mãe? Valeu, mãe. Que beleza, mãe! Mãe, mas cê já vai? Chegou cedo hoje, tava com saudade de mim, né mãe? Mãe, você viu isso? Vamos fazer alguma coisa diferente esse domingo, mãe? Mãe, cê ficou sabendo? Tava bom demais, mãe. Do que você tá falando, mãe? Não se faz de sonsa, mãe. Mãe, o que cê achou? Curtiu, mãe? Que vergonha, mãe. Dá licença, mãe. Gostou do presente, mãe? Vem tirar foto, mãe! Mãe, tudo vira neura na sua cabeça. Mãe? Credo, mãe, que mania que você tem de botar defeito nas minhas coisas. Bom apetite, mãe! Vai um baralhinho hoje, mãe? Mãe, eu já disse que não quero mais. Vou ter que repetir, mãe? Sério isso, mãe? Mãe, deixa eu ver. Vamos agora, mãe? Já tá na hora, né? Mãe, como foi lá? Deu pra entender bem, mãe. Que que foi, mãe? Nossa, mãe, me conta isso direito. E essas fotos antigas, hein, mãe? Olha essas roupas esquisitas que todo mundo usava, mãe! Esses cabelos, mãe! O que vamos fazer hoje, mãe? Ai, ai, mãe. Se anima aí, mãe! E o que você disse, mãe? É assim que se faz, mãe! Mãe, quer emprestado? Me mostra logo como ficou, mãe! Mãe, tô curiosa! Tá toda toda, hein, mãe? Mãe, como você não entendeu ainda que eu faço o que eu quiser? Mãe? Mãe, tô preocupada com você. Conversa comigo, mãe. Mãe, você não presta atenção no que eu falo mesmo, hein? Mãe, já marcou seu médico? O que o médico falou, mãe? Mãe, que saco, hein? Toma esses remédios direito, mãe. Mãe? Quer vir pra cá, mãe? Cê gostou, mãe? Mãe, cê mesma quem fez? Lá vem você de novo com esses trem, né mãe? Ai, mãe. Não sei, mãe. Se animar, eu te levo, mãe. Me conta isso direito, mãe. E cê acreditou, mãe? Ai, mãe, eu não aguento mais. Quem disse que ia ser fácil, né mãe? Quer um pouquinho, mãe? Mãe, vem dançar! Onde você aprendeu esses passos, mãe? Você não tem jeito mesmo, né mãe? Só mais um pedaço de bolo, viu mãe? Chegou chegando, hein mãe? Mãe? Tá pronta, mãe? Tô passando aí, mãe. A gente combinou, mãe. Cê esqueceu de novo, mãe? Mãe, mas cê desistiu de ir e nem me avisou? É isso mesmo, mãe? Mãe, o que você achou? Aceita, mãe? Tá tudo bem, mãe? Obrigada, mãe. Trouxe cruzadinha, mãe. Mãe, precisa de ajuda? Bem-vinda, mãe. Mãe, pode deixar que eu faço. Tá gostando, mãe? Mãe, você sabe que você não dá conta mais. Caramba, mãe! Vem cá, mãe. Mãe?

Colagem analógica de Thaís Campolina a partir de fotos de Bárbara Olsen

Esse conto, assim como essas colagens, fazem parte da coletânea “Casa nua – maternidade devassada”, obra que reúne trabalhos produzidos pelas participantes do Coletivo Escreviventes numa parceria com a Revista Tamarina. O e-book é composto por textos em prosa e verso de 49 escritoras brasileiras e trata sobre diferentes perspectivas de ser mãe e ser filha, levando em conta também a possibilidade de não ser mãe e os aspectos políticos e sociais desse ser e não ser. Baixe o PDF aqui.

Esse texto também foi publicado na Revista Mormaço.

Crateras de verão

Colagem digital – Thaís Campolina

Tudo começou com um “Você sabe o que aconteceu?” impaciente e sem interlocutor definido. “Aposto que é cratera”, comentou uma jovem negra de tranças coloridas. “Mas a cratera que abriu foi em outro lugar do Floresta, moça”, respondeu um homem grisalho, de pele rosa e terno. Uma voz feminina no meio do ônibus fez questão de opinar: “Uai, pode ter aparecido mais outra aqui também, não?”. “Não seria a primeira vez”, manifestou a loira ao lado do homem engravatado.

Um menino vestido de uniforme, em pé ao lado das cadeiras altas, começou a dizer: “Mas nem choveu essa tarde…” e a frase “Não tem mais aonde ir água, filho” surgiu no ar, como se tivesse sido dita pelo calor úmido que infernizava todos os passageiros do 8102.

Fora do ônibus, um homem que carregava uma bíblia toda gasta bradou: “É o fim do mundo se aproximando!”, enquanto, dentro do coletivo, um sujeito sem qualquer característica marcante reclamou: “Que cratera o quê? É buraco. Cratera tem é em Marte!”

Alguém sacou o celular e mostrou uma notícia sobre o engarrafamento e o seu motivo para todos os curiosos ao alcance de um braço. O asfalto se rompeu no fim da tarde, minutos antes de o ônibus chegar à Assis Chateaubriand, e especialistas culpavam a chuva da noite anterior pela nova cratera.

“Chove e fura buraco na cidade inteira! Tem mais jeito não”, concluiu alguém, enquanto outro dizia: “Assim não dá mais! O prefeito tem que meter uma ponte ligando essa rua aqui com a Jacuí e depois com a Cristiano Machado”. Em resposta, uma mulher comentou: “Chuva faz buraco em ponte também, hein?” e risadas abafadas surgiram.

“Nesse calorão, sem ar condicionado, todo mundo espremido dando volta pelo bairro. Assim não dá”, desabafou aos gritos um senhor próximo ao trocador. Perto dele, sentados nos assentos preferenciais, dois idosos resmungavam sobre o azar de terem perdido o ônibus anterior, aquele que passou minutos antes de a fenda se abrir.

Além deles, havia também uma mulher que não parava de escrever em um caderninho vermelho e um vasto grupo de silenciosos que ora observava a conversa coletiva, ora encarava a tela do celular.

O papo continuou até o ônibus se esvaziar e o blá-blá-blá desceu junto com cada um dos passageiros. Uns dividiram a conversa que tiveram em casa, outros não, mas todo mundo dormiu pensando que um dia vai chover tanto, mas tanto, que um buraco maior do que a própria cidade vai se abrir e Belo Horizonte vai deixar de existir. Uma única mulher, aquela que não parava de escrever, lembrou-se de Marte e suas crateras e se levantou da cama para escrever um conto sobre o fim da vida na Terra.

*“Crateras de verão” faz parte da publicação independente & coletiva nomeada Jurema, obra que reúne textos que surgiram numa oficina sobre cotidiano ministrada pela Carina Gonçalves no ateliê de escrita Estratégias Narrativas em março (ou maio, não lembro mais) de 2018. O livreto foi lançado em fevereiro de 2019 numa Feira Textura e conta também com trabalhos de Beth Andrade, Glau Nascimento, Isabelle Chagas, Olivia Gutierrez, Viviane Moreira e da professora já citada acima. “Jurema” ainda pode ser adquirida no site do Impressões de Minas.

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“O som do tapa” e o fio quase invisível que une as escritoras

Escrever é uma atividade considerada solitária. É preciso concentração, silêncio, tempo para colocar as palavras no papel, transformá-las em alguma coisa com sentido e depois trabalhar o texto, polir frases, reconstruir parágrafos. Só que escrever é muito mais do que isso. Quem escreve não escreve do nada, dialoga com o que veio antes e com o que está por vir. Um livro puxa o outro, que puxa mais um e esse faz nascer um blog, uma newsletter, um instagram literário, uma ideia, uma vontade de contar uma história ou duas, um desejo de compartilhar cada detalhe. Quem escreve está povoado de vozes e todo o processo de silêncio, concentração e tempo vem da necessidade de encontrar a maneira certa de construir cada texto.

O parágrafo acima é uma especulação, talvez até uma idealização. Foi construído amparado ao que eu acredito como escritora e o A que fecha essa palavra-identidade-desejo significa. Ao meu redor, vejo muitas mulheres que escrevem construindo um universo que as caiba. O apetite pelas letras de uma alimenta a coragem da outra de se colocar no mundo e assim vai. É uma tentativa de construção de potencial e oportunidade que surge a partir da troca, uma rede de aprimoramento que se cria do encontro da identidade com a alteridade e também um desafio de convivência.

Carla Guerson escreve desse lugar. Eu gosto de pensar que eu também. Por isso, em algum momento, a gente se esbarrou. Nesse nosso meio, encontros são desejados. A gente se constrói como escritora assim. A descoberta da Outra é a nossa chance de pescar algo novo no mar de histórias que nos cercam. Quem escreve precisa estar atento, uma boa história pode estar bem ao nosso lado e ai de nós se não tivermos com o olhar afiado o suficiente para captá-la. Quem escreve se coloca no mundo como uma antena parabólica. “O som do tapa” é o resultado dessa perspectiva de escrita e leitura do mundo.

A partir de 28 contos curtos, a autora constrói um livro coeso todo protagonizado por mulheres desabando, mulheres que se sentem deslocadas no mundo que vivem, destituídas da própria vida, fora daquilo que esperavam delas ou de si mesmas. Mesmo com experiências, idades, situações financeiras e sociais diferentes entre si, as vidas dessas personagens se entrelaçam no livro pelo que elas têm em comum: o impacto na subjetividade que o machismo e outras questões pessoais ou sociais que atingem algumas mulheres específicas podem trazer.

Em poucas páginas, Carla dá vida a um mundo de personagens complexas que mesclam questões individuais e atravessamentos sociais, sem jamais reduzi-las somente a seus sofrimentos, tornando cada uma dessas mulheres um alguém diferente, apesar do que o mundo quer de cada uma delas ser mais ou menos igual: a anulação de si. Mesmo abordando temas difíceis e necessários na maioria das histórias e por isso mexer com o leitor a partir do incômodo, há também contos um pouco mais leves, apesar de também críticos, como o incrível “As louças”.

Vale destacar que a autora explora muito do universo íntimo, tratando relações familiares e amorosas de uma maneira que surpreende, mas também é capaz de criar identificação e/ou empatia. “O som do tapa” mescla cotidiano, crítica ao machismo e muita vontade e habilidade de nos surpreender com finais fechados com chave de ouro. Carla Guerson estreia com contos bem escritos, bem conduzidos e de estrutura variada, histórias que se constroem baseadas em detalhes banais e privados que aproximam e afastam quem lê de cada personagem, de cada relação, porque o comum nos lembra o que mais existe com o disfarce de dia a dia, o que mais a gente finge não ver com a desculpa de que é tudo ordinário demais ou particular demais.

“O som do tapa” é um exercício de observação que denuncia o que muitos de nós não têm percebido ao redor de si ou, em muitos casos, até em si mesmas e escrever sobre isso é algo muito menos solitário do que pode parecer. Um livro puxa outro, que puxa mais um conto e esse conto servirá pra puxar mais uma língua e essa língua agora falante puxa outras línguas falantes e assim acontece a descoberta de que todas essas histórias também importam.

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Documentário médico

Morgan Vander Hart

— Então, Dr. Marcos, eu tenho me sentido meio estranha. Não consigo me concentrar em nada.

— Estranha como?

—  Eu tenho adiado até mesmo o ato de ligar o computador e por isso prefiro deixá-lo hibernando para de manhã, logo após iniciar o dia, não ser obrigada a sentir mais um começo antes mesmo de bater o ponto online. Também tenho tido pouca vontade de comer e quando a vontade vem é sempre relacionada com alimentos que não fazem muito bem, me causam azia e tudo, como Nutella, pizza e torresmo. E não tenho dormido bem, doutor, apesar de continuar dormindo muito.

— Hmmmm… O que mais?

— Eu tenho a sensação de que não há futuro possível. Dr. Marcos. E isso me entristece, mas também me alivia, porque eu não preciso mais acreditar em nada e nem buscar alguma coisa. Na verdade, isso é bom, porque isso me impede de criar expectativas.

— Isso que você narra parece depressão, não acha? Toda essa apatia…

— Acho que sim. Na verdade, eu não saberia afirmar com certeza.

— Hm…

— Doutor, você sabe de algum documentário bom sobre isso para eu assistir?

— Ana?

— É, doutor, um documentário sobre depressão.

— Ah, eu não conheço. Não vejo muitos documentários, mas minha filha adora. Posso perguntar para ela se ela tem alguma indicação, se você quiser…

— A Cecília gosta de documentários?

— Gosta sim. Esses dias ela me fez assistir com ela um que tinha na Netflix… De uma mulher negra com um vozeirão, sabe?

— Hmmm… Nina Simone?

— Isso. Eu até gostei… Depois fiquei procurando umas músicas dela para ouvir no Youtube. Aquela Feeling Good é boa, né?

— É boa sim, Dr. Marcos.

— Vou te mandar agora uma receita de um remedinho que vai te ajudar, Ana. Vai chegar no seu e-mail cadastrado no app do plano de saúde, viu?

— Obrigada, Dr. Marcos.

— De nada, Ana. Manda um abraço para sua mãe por mim.

— Pode deixar, Dr. Marcos! Manda outro pra Dona Ruth!

— …

— …

— Ana, você pode sair da teleconferência por favor? É só clicar nesse xzinho no canto esquerdo da tela. Pega mal o médico fechar a janela do paciente assim…

— Tudo bem, vou desligar aqui, viu? Boa semana!


— Agora você gosta de documentários, Cecília?

— Sempre gostei.

— Aham. Tá bom.

— Olha, eu gosto de documentários, mas eu não sou que nem você que vê qualquer um, independente do assunto. Eu busco ver os de temas que me interessam.

— Como Nina Simone?

— Sim, como Nina Simone.

— Seu pai quer que você me indique um documentário sobre depressão. Por motivos médicos.

— Meu pai me mete em cada roubada. Anem.

— Não precisa ser sobre depressão então. Me indica qualquer um que você já viu e eu possa gostar.

— Se você pegar para ver um documentário que acompanha a vida de uma sacola plástica, você vai amar, Ana. Você gosta de documentários e pronto. O seu lema é ver todos, porque você é tipo o Et Bilu e fica vendo esses filmes sem parar e depois fala “busquem conhecimento” sem dizer bem isso indicando algum no Twitter.

— Eu gostei dessa ideia de acompanhar a vida de uma sacola plástica. Você viu algo assim, foi?

— Não, Ana, eu só quis falar a coisa mais absurda que veio na minha cabeça.

— A ideia é realmente boa, você sabe disso, né?

— Eu não sei, porque eu não ligo para história pessoal de uma sacola plástica, mas se você diz…

— Posso pegar sua ideia para mim?

— Hm… acho que pode, né?

Vou ver se começo a filmar essa semana ainda, aproveitar que fiz compras ontem e tem toda uma nova leva de sacolinhas que passaram por higienização.

— Não deixa de filmar a sacola se secando no sol depois de tomar banho, bem bronzeada.

— Se eu colocar um nome nela vai ser muito esquisito?


A ideia desse conto surgiu a partir de uma conversa com a versão tuiteira da tutora criativa e agente literária da Ceci. Nesse papo, eu realmente falei que isso de gostar de documentário como algo geral é coisa de gente cultíssima, mas meio Et Bilu, e não sei como acabei prometendo escrever um texto, esse aqui, com ou inspirada em uma personagem do livro “Ninguém morre sem ser anunciado”. Depois, já em outra conversa, essa privada e posterior ao envio do texto, eu cedi os direitos de filmagem desse doc da história da sacola citado no conto para a representante da Ceci. Agora acho que vou mandar uns vídeos das minhas sacolas via direct para ela entender que eu doei minha ideia, mas talvez queira ajudar com o roteiro. Qual sacolinha dessas vinte que estou olhando secar será protagonista dessa emocionante narrativa?

Duas chaves e um apartamento

Eu decidi me mudar. Depois de dez anos morando em repúblicas com gente de todo jeito, eu aluguei um apartamento para mim. Finalmente eu ia poder seguir minha vida sem pensar no que a mãe da Tati ia fazer quando descobrisse que a moça que estava sempre comigo era a minha namorada e parar de brigar todo dia antes mesmo de tomar café porque só tem um banheiro com chuveiro e quatro mulheres que saem na mesma hora para trabalhar.

Estava feliz. Cheguei a me sentir uma adulta de verdade. Apesar de ter precisado pedir meu pai para ser meu fiador. Depois deixei de me sentir assim. Quando decidi que era hora de me mudar, o maior motivo foi a minha vontade de ter um lugar em que pudesse ficar à vontade com a Juliana. Estávamos juntas há três anos e toda vez que eu visitava apartamentos para escolher minha futura moradia, eu pensava nela comigo naquele espaço. Avaliava se a cozinha era boa para a gente cozinhar em dupla, como gostamos, e julgava se naquele lugar daria para adotar um cão vira-lata caramelo que na minha cabeça se chamaria Megan por causa da Megan Rapinoe. Antes de analisar se o preço do aluguel valia a pena, eu olhava no Google a distância entre o apartamento e os nossos trabalhos e quais ônibus a gente teria que pegar para irmos onde sempre vamos. Tudo foi pensado em nós, mas eu me mudaria em três semanas e ainda não tinha falado para Juliana que eu queria que ela se mudasse comigo e a felicidade de dar esse passo tinha virado uma angústia sem fim.

Me sentia ridícula por não conseguir convidá-la para morar junto. Nunca me dei bem com palavras faladas. Elas sempre saíam da minha boca entrecortadas e artificiais. Eu tentei várias vezes. Desistia quando eu notava que ia parecer discurso de agradecimento do Oscar. Tudo soava forçado. Nos ensaios, eu parecia um robô programado a fazer um discurso amoroso. Por isso, pensei em escrever uma carta. Desisti. Achei coisa de covarde. Eu sou covarde, mas há níveis de covardia que até hoje eu me recuso a atingir.

Decidi comprar um cupom no Groupon e convidá-la para jantarmos num restaurante chique. No caminho, conferi se estava com minha chave do novo apartamento e uma cópia. Ambas já com chaveiro, porque eu sempre penso em tudo, mesmo antes de falar qualquer coisa. Queria entregar a dela já com o símbolo da casa Stark posto. Ela adora “As crônicas de Gelo e Fogo”. A minha, no entanto, já estava com o emblema da casa Lufa-Lufa, porque eu morro de preguiça do George Martin e sou lufa-lufana com orgulho.

Tudo estava pronto, perfeito até. Tinha que ser no jantar. Não dava mais pra fugir. Eu precisava falar. Não queria montar a casa sem ela saber que é algo nosso, sabe? Seria injusto com ela e até comigo.


Entrada, prato principal e sobremesa. O cupom nos permitia escolher várias opções. Peixe não. Salada de entrada não. Se bem que tem palmito. No fim das contas, fui no prato que levava um creme de batata baroa. Estava delicioso ou eu me lembro assim porque essa noite terminou muito bem.

“Será que a gente devia pedir um vinho?”, eu disse enquanto pensava que aquilo com certeza daria um ar mais romântico ao jantar, mesmo que a gente deixasse a taça praticamente intocada ao lado do prato. A verdade era que a vontade era de chamar o garçom e dizer: “Desce uma subzero aí, parça!”. Compartilhei esse pensamento com ela. Ela riu bastante. Pedimos chopp artesanal no lugar. “Acho que dá para falar que conseguimos achar um meio termo entre o vinho chique que deixa a gente com a língua estranha e a subzero de sempre”, ela disse.

Enquanto a gente comia, ela contava coisas engraçadas que aconteceram no trabalho dela. Tinha surgido um cara chamado Segunda-feira por lá. Todo mundo da repartição achou que ele ia requerer mudança de nome, mas ele só queria ver como ia o processo dele contra um banco. Também tinha uma outra história, mas eu não sei mais sobre o que era. Eu estava lá, sem prestar atenção, nervosa e pensando que tinha que ser naquela hora, que eu tinha tudo ao meu favor, mas, só para variar, eu não conseguia falar.

“Petit Gateau ou Crème Brûlée?”, Juliana disse totalmente formal quando acabamos de comer o prato principal. “O que diabos é Crème Brûlée? Como fala isso? Será que eu peço?”, reagi. Pedimos o creminho, mesmo sem saber o que era. Um pouco de coragem ao pedir o prato podia me ajudar a agir e fazer o convite oficial e, para falar a verdade, eu até acho que isso me ajudou no final das contas.

Eu tinha que abrir o jogo antes do jantar acabar, mas pensar na palavra oficial me deixou ainda mais desconfortável. Não queria soar como um ofício institucional. As sobremesas deviam chegar em minutos. O tempo estava acabando e eu estava ainda mais ansiosa com tudo aquilo. Decidi ir ao banheiro para enrolar, fazer um xixizinho e jogar uma água na cara.

“Que limpo! Nem parece que alguém mija aqui!”, pensei ao passar por aquela porta de madeira enorme e me deparar com azulejos claros, um vasinho de planta, uma pia bem decorada e cheirinho de lavanda. Tinha papel higiênico na cabine, infelizmente um luxo na maioria dos bares que frequentávamos na época, e ainda era um daqueles super macios e cheio de camadas! Sei que isso vai soar decadente, mas esse papel era uma novidade e tanto para minhas partes! Nessa hora, segurando a risada, decidi que tinha que voltar para mesa logo e fazer o convite nem que fosse do jeito mais tosco possível só para depois falar com a Juliana sobre ela precisar conhecer o banheiro antes de ir embora. Infelizmente toda a coragem me escapou quando me olhei no espelho ao lavar as mãos e me deparei com o meu olhar inseguro de sempre. Ali iniciei um breve monólogo encorajador e, para vergonha minha, em voz alta. Não lembro bem o que falei comigo, mas acho que foi algo assim: “Vai, Letícia, pense em outra coisa. Pense no papel higiênico macio. Pense na ousadia de pedir o creminho francês. Pense na Juliana e no cachorro que vocês vão adotar juntas. Pense em como vai ser bom acordar sempre ao lado dela. Pense que só falta suas palavras para fazer isso tudo acontecer. Respira fundo. Joga uma água na cara. Deixe vir espontaneamente. Pare de falar consigo mesma se olhando no espelho. Vai que alguém entra aqui e te vê falando sozinha desse jeito. Vão achar que você está metida com coach, Letícia! Vai para mesa agora! Vai logo!”

Lembro de ter voltado para a mesa morrendo de vergonha pensando que alguém podia ter tentado ir ao banheiro e se deparado comigo falando sozinha e decidido dar a meia volta porque era melhor ficar apertada do que lidar com uma possível doida, mas sei que logo me esqueci disso, porque assim que sentei de novo na cadeira, a Ju me perguntou sobre uma oficina literária que eu estava fazendo.

As aulas de escrita criativa foram divertidas, falei, e disparei a contar todos os detalhes: os exercícios feitos em aula, os deveres de casa, o medo do meu trabalho ser visto como ridículo, o incentivo que ouvi dos colegas e blablabla. No meio disso, me lembrei que a professora me aconselhou a criar cenas na hora de escrever e a parar de achar que preciso colocar todos os pingos nos is, deixar tudo explicadíssimo. Segundo ela, há formas mais fáceis de mostrar o que queremos. Criar cenas, por exemplo. Ao falar isso em voz alta, eu finalmente soube o que fazer e coloquei a minha chave na minha frente. Me levantei e posicionei a dela bem ao lado do pratinho de Crème Brûlée que ela saboreava. Parei ali, ao lado dela, olhei para aqueles olhos brilhantes e sorri. Ela me olhou de volta com uma expressão de alegria e surpresa. A risada dela é sempre deliciosa.

Só precisei falar “Vamos?”, logo depois de nos beijarmos, para ela dizer sim e o garçom que viu toda a cena começar a aplaudir e assim puxar as palmas das mesas ao nosso redor.


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Observação: Quando tentam censurar e intimidar quem publica, vende, lê e escreve literatura com presença de LGBTs, a gente vê o quanto é necessário escrever, publicar, ler e vender mais e mais livros com essa temática e/ou esses personagens.

Conservadores fanáticos surfam no medo das pessoas pelo que elas não conhecem para buscar votos ou apoio e é por isso que é tão importante espalhar essas histórias. Quanto mais elas forem lidas e conhecidas, menos terror vai dar para fazer com base nisso. É com o contato com histórias de amor, sexo e descoberta que envolvam casais de mulheres ou de homens que a sociedade vai, enfim, entender que não há o que temer.

A questão por trás dessas atitudes autoritárias não é “proteger as criancinhas” e nem uma mera questão de classificação indicativa ou qualquer outra desculpa. A intenção deles é cercear o direito das pessoas conhecerem narrativas que fujam da heteronormatividade e dos papéis tradicionais de homens e mulheres, ainda que elas sejam adequadas para crianças, e a gente não pode se esquecer disso. Para eles, mesmo as ingênuas mãos dadas podem ser vistas como um conteúdo perigoso, pornográfico, promíscuo, se forem um carinho entre pessoas do mesmo sexo. O problema deles não é só com o erótico e o sexual em si. Vai muito além. É homofobia, bifobia e lesbofobia.

Direito adquirido

46 pessoas idosas atearam fogo em si mesmas com intenção de morrer em frente aos prédios públicos mais famosos de suas cidades somente nesse ano, dizem os jornais e as correntes nas redes sociais. A mídia só começou a divulgar depois que os números atingiram a terceira dezena. Antes disso acreditava-se que o melhor era omitir o que acontecia para não inspirar novos casos. Enquanto isso, a boataria circulava nas redes sociais desde a primeira ocorrência.

Tem quem acredite que esses atos são uma espécie de terrorismo, outros já acham que eles estão mais próximos de uma performance que conta com suicídios públicos e tem a finalidade de denunciar as condições físicas, psicológicas e financeiras de uma parcela da população, mas nenhum especialista sério teve coragem de cravar como verdade qualquer hipótese levantada para tentar explicar a natureza desses episódios cada vez mais frequentes. A maioria só diz que todos que esses eventos são um fenômeno multifatorial que envolve tudo o que conhecemos e também algo novo ainda invisível ao julgamento científico. Ou mesmo aos nossos olhos. Sejam eles estudados ou não.


O primeiro caso coletivo aconteceu hoje, apesar das proibições de manifestações políticas estarem vigentes desde muito antes da primeira vítima-algoz-suicida-terrorista surgir. Quatro mulheres e dois homens, todos com mais de setenta e cinco anos, como eu, se posicionaram em frente ao Ministério da Justiça e, completamente calados e sem cartazes, se queimaram. A polícia tentou impedir com a ajuda de bombeiros, mas não funcionou. Eles mal tinham começado a queimar quando foram apagados, mas ainda assim estavam mortos. Como todos os outros. Nenhum deles nunca sobrevivia.


540 idosos mortos nesses atos até então. Só com um número expressivo desses para o governo começar a olhar para os velhos. Agora, junto ao trabalho, eles recomendam o cárcere privado.


Eu não vou trabalhar até morrer. Consegui juntar documentos o suficiente para comprovar idade, tempo de contribuição e tudo mais e na próxima terça farei meu pedido oficial perante a Previdência Social. Tive sorte de ter trabalhado por muito tempo num lugar que repassava as contribuições dos empregados de fato. A maioria da minha geração não conseguiu nem isso.

A galera, no geral, tinha app como único chefe e se achava empreendedor por ter que arcar com todos os riscos e custos enquanto dividia seu pouco lucro com uns acionistas do Vale do Silício. Tudo na base do desespero. A autoenganação existia sim, não dá para ignorar, mas hoje vejo que era só uma forma da gente não ser obrigado a pensar na injustiça de tudo aquilo o tempo todo. Na verdade, ninguém conseguia ficar muito tempo empregado em qualquer lugar que assinava carteira e trabalhar com transporte de gente ou delivery era o que tinha. Mesmo quem tinha salário, quando precisava de uma grana extra, entrava nessas. Eu mesmo fiz muita corrida de bike alugada pela cidade.

Quem tinha emprego trabalhava como terceirizado nessas empresas rainhas em assédio moral e previsibilidade. Antes de você conseguir ser efetivado ou poder tirar férias ou algo do tipo, eles te despediam só para te contratarem de novo alguns meses depois e essa lógica se repetia até eles declararem falência e não pagarem ninguém. Três meses depois, se a gente tivesse sorte, arrumávamos um emprego numa pessoa jurídica irmã gêmea da antiga. Esse era o jogo e a pior surpresa a gente só veio descobrir uns 30 anos depois quando tentávamos nos aposentar e a Previdência nos avisava que não ia dar, porque não tinha contribuição paga em nosso nome durante aquele período todo. Perdi 2 anos de trabalho dessa forma, mas teve gente que perdeu 5, 10, 15 ou até mais.

Nenhuma surpresa que essas pessoas agora idosas e acabadas se incendeiem em atos públicos.


Quando finalmente vi a placa, mal posicionada e quase apagada pelo tempo, indicando a entrada do prédio, a lembrança de quando havia um tanto de gente querendo estudar para trabalhar como técnico ou analista do INSS me veio. Sentavam a bunda na cadeira e estudavam, estudavam e estudavam buscando o tão sonhando cargo público que logo passou a não valer mais nada. Eu mesmo tentei umas vezes, cheguei até a ser aprovado, mas nunca me chamaram. Deu ruim antes. Agora não tem mais quase ninguém aqui, nem como funcionário, nem como usuário. Não sei se aposentaram, se morreram, se queimaram, se adoeceram ou se simplesmente não há mais muito o que fazer.

Nem na época de ouro os prédios da Previdência Social eram bonitos. Nenhum palacete antigo todo reformado abrigou qualquer serviço da Seguridade Social na história, ao menos não aqui na minha cidade. Agora eles são ainda mais feios e nem ficam mais no centro.

Mesmo com o endereço em mãos e usando o Google Maps, foi difícil de encontrar. A portinha para o hall era bem pequena, quase invisível entre duas enormes lojas com nome estrangeiro. O saguão parecia imenso, como se alguém secretamente esperasse que um dia esse lugar voltaria a ser cheio, mas devia caber só umas quinze pessoas. O vazio faz tudo aparentar ser tão amplo.

Com meu envelope pardo e meu comprovante de agendamento em mãos, sentei numa das cadeiras, apertei um botão e esperei alguém aparecer. Quem apareceu não parecia saber mais como aposentar alguém.

Mostrei meus documentos: RG, CPF, Comprovante de Residência, PIS/PASEP, 48 carnês de recolhimento do INSS como contribuinte individual ou segurado facultativo, 17 holerites de pagamentos de salários do meu emprego atual e também meu Certificado de Reservista. Falei sobre o que eles comprovavam com veemência, mostrei conhecer os meus direitos e esperei acontecer alguma coisa. O homem na minha frente simplesmente se retirou sem falar qualquer coisa do procedimento e disse que ia chamar alguém. Antes de sumir por uma porta, ele enviou uma mensagem de voz para um de seus contatos pelo aplicativo de comunicação da moda da vez dizendo que tinha com ele ali um homem que se dizia aposentável. Ele falava como se eu só pudesse estar senil.

Durante a espera, eu passei os olhos ao redor de novo: poeira, cadeiras antigas demais, ar-condicionado extremamente barulhento e uma janela quebrada bem perto da entrada. Queria tentar entender melhor o meu desconforto com esse lugar. Não havia túmulos, mas ainda assim aquele vazio com seus computadores me lembrava um cemitério. Não havia macas, mas era inevitável pensar que entrei pela porta da frente em um hospital de pacientes terminais. Havia, na verdade, tantos indícios de abandono ali quanto no rosto de cada um dos idosos que ganharam manchetes no último ano.

Depois de pelo menos uns vinte minutos, o homem que me atendeu voltou sozinho. Ou ao menos foi isso que pensei. Ele sentou novamente bem na minha frente e deixou que o computador identificasse seu rosto, senha e digitais e perguntou novamente meu nome, minha data de nascimento e todos os meus números de identificação.

Enquanto dava minha resposta, vi uma cadeira estofada se arrastar e parar ao lado dele e ouvi uma voz feminina vir do vazio acima dela. Ela começou a me fazer perguntas, dar recomendações e explicar todo o processo. Eu ouvia bem o que ela dizia e a respondia quando era necessário. A dona da voz parecia realmente disposta a me ajudar, mas aos meus olhos a cadeira seguia vazia, apesar de vez ou outra eu ouvir o barulho de movimento de suas rodinhas.

Eu não era o único a ouvir o nada. A voz guiava o homem sobre protocolos, documentos e indicava até mesmo os códigos a serem utilizados para o meu caso. Ele obedecia e às vezes reclamava sobre como aquele software era antiquado. Eles, humano e nada, trabalhavam juntos, discutiam algumas coisas sobre meu pedido entre eles e vez ou outra comentavam sobre as últimas notícias do sistema ou do mundo comigo.

Eu suava frio, me sentia tonto e me preocupava mais com a possibilidade de ser um dos milhares inaposentáveis da minha geração do que com qualquer outra coisa. Era como se eu estivesse, enfim, pronto para morrer ou morrendo de fato, independente da resposta. Só que uma das mortes parecia ser bem mais dolorosa.

Foi um alívio ouvir que tudo indicava que eu tinha sim o direito de me aposentar e que, apesar de tudo, eu ia conseguir receber 64% do valor integral que me era devido. A Voz me avisou que a Carta de Concessão chegaria em mais ou menos um mês e me desejou boa sorte, boa vida.

Nessa hora, quando nós três nos levantávamos, eu vi um ser translúcido que parecia muito velho, muito mais velho que um dia eu seria, escorregar pela cadeira e ressurgir aos poucos enquanto flutuava em direção da porta. Ela comentava com o homem sobre eu provavelmente ser o último a conseguir me aposentar no país. Ela, morta, ainda estava trabalhando.

Por que?


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Urgência

Canva

Quero saber quantas horas são, mas a bateria do celular acabou faz tempo e eu não uso relógio de pulso há quase uma década. Com o ponto cheio desse jeito, já deve ter passado das seis, imagino.

Ao sentir aquele aperto no intestino, a preocupação com a hora desaparece instantaneamente e retorna com maior intensidade após a conclusão de que o banheiro mais próximo está a uma viagem de ônibus de quarenta minutos de distância.

A barriga se remexe toda, faz uns ruídos constrangedores, os olhos se arregalam, viram e a boca só faz careta. A mensagem do corpo afeta também o rosto: essa cara de cu é apenas um reflexo involuntário de um organismo rebelde. Não é ódio, desprezo, arrogância, é só meu intestino grosso avisando que está trabalhando.

O ônibus chega. O cobrador dá um grito e pede para todo mundo se ajuntar. Alguém pergunta: “Mais?”. Rio sozinha pensando que ninguém ali nem imagina que uma bomba de bosta prestes a explodir embarcou junto com eles para essa aventura cotidiana que é ir para casa numa sexta-feira.

O balanço do coletivo piora tudo. Respiro fundo, rezo, conto cabritinhos. Sim, cabritinhos. Nessas horas todas as nossas manifestações mentais são sugestivas.

Desço do ônibus já com as chaves nas mãos. Acelero os passos. Subo as escadas do prédio no gás e corro para o banheiro.

Coitado dos vizinhos, o desespero foi tanto que deixei até a porta do apartamento aberta.


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Mãe de planta

Imagem de uma matéria da Hypeness sobre a casa da norte-americana Summer Rayne Oakes

Meu apartamento, seis meses atrás, era como qualquer outro. Cama, armários, geladeira, fogão, micro-ondas, um computador, uma tevê, mesa para quatro, filtro de barro, escrivaninha, uma estante, um sofá e acho que só. Isso me incomodava. Eu sentia que morar em um lugar sem identidade dizia algo muito grave sobre mim. Temia que alguém me visitasse e percebesse que eu era uma dessas pessoas que não sabia muito bem quem era e as fofocas sobre minha residência sem personalidade me tornassem uma espécie de pária no mundo dos autênticos.

Minha casa mostrava muito sobre mim. Essa é a verdade. Por isso, me aborrecia tanto entrar pela sua porta e me deparar com aquele vazio que significava que eu era um ser ainda em formação e, pior, nem sabia fingir ser algo diferente. Nessas horas, me esquecia que a questão não era só não saber para onde estava indo ou quem de fato eu era ou queria ser, mas, principalmente, a realidade da minha conta bancária e a possibilidade de amanhã eu ter que estar em outro lugar. Não havia grana o suficiente para encomendar móveis ou decorar meu apartamento com produtos da Tokstok. Comportamentos decorativos que, por algum motivo, são vistos como um sinal inegável de autenticidade em nossos tempos.

Aflita e depois de ver um milhão fotos no Pinterest de casas incríveis cheias de plantinhas, vasinhos, estantes e poucos móveis, decidi adicionar mais vida ao espaço branco que chamava de lar e acabei comprando uma samambaia. Depois vieram os vasinhos de cactos. E, a partir disso, foi questão de tempo para meu pequeno apartamento se transformar numa selva particular.

Minha casa se tornou um refúgio da cidade grande para mim e point com carinha de moderno e sustentável para amigos e conhecidos. De um dia para o outro, a casa sem identidade se transformou em um local de encontro entre aqueles que sentiam seu lado jardineiro, antes adormecido, pulsar.

Cuidava de cada vasinho com o amor que nunca fui capaz de dedicar a mim. Me esforçava para aprender o segredo das plantas e punha a mão na massa sem os nojinhos que me acompanharam durante toda a minha vida de garota urbana nascida e criada numa das maiores cidades do país.

Era tudo muito bonito, tranquilo, relaxante. Uma jornada de descoberta que eu estava adorando viver. Cheguei a arrumar um minhocário, aprendi produzir adubo com lixo orgânico e até decoração de vasinhos de barro com tinta colorida, eu passei a fazer. As plantas ficavam cada dia mais exuberantes e, num ataque de orgulho, me declarei mãe de planta para quem quisesse ouvir.

Apesar de ter postado esse anúncio no Instagram, no Facebook e no Twitter, foi em casa que senti que fui de fato ouvida. Um som agudo, muito agudo, e manhoso me acordou no outro dia antes mesmo de amanhecer. Era domingo e eu odiei com todas as forças a criança birrenta que algum vizinho arrumou até chegar na sala e perceber que minha Orquídea Dendrobium era quem emitia aquele som horrível. Quando dei por mim, ninava seu vasinho feito de barro cantando bem baixinho uma música sobre sementinhas.

Os gritos logo cessaram, mas ela seguia choramingando e eu não sabia o que fazer. Demorou, mas acabei me lembrando que no dia anterior tinha arrancado umas folhas velhas de seu tronquinho e decidi apreciar o local. As marcas dos cortes pareciam ter inflamado durante a noite. Quando passei o dedo para testar, ela voltou aos berros iniciais e eu corri para o Santo Google que me aconselhou a passar canela em pó nos cortes. Cicatrizante natural, sabe? Cuidada, ela se acalmou e voltou a se concentrar na fotossíntese.

Depois de ver o sol amanhecer com uma planta desesperada no colo, meu pijama estava todo sujo de suor, terra, canela e fluidos que eu não sabia de onde tinham saído. Cocô, xixi, seiva ou lágrima de orquídea? Aparentemente tudo isso e mais um pouco. Era impossível não pensar no quanto eu precisava de uma chuveirada.

Limpa novamente e conformada que ao menos essa novidade biológica sobre orquídeas não fedia muito e indicava que provavelmente eu não ia precisar mais me dedicar tanto ao minhocário, fui preparar meu café da manhã.

Chegando na cozinha, percebi que todas as plantas da casa tinham abandonado a passividade esperada delas e se moviam, conversavam e me encaravam. A orquídea foi a primeira a despertar desse sono vegetal, mas agora eu tinha que lidar com mais trinta seres vivos desesperados por diferentes tipos de atenção e cuidado.

Pinterest

Os Cactos, como bons adolescentes rebeldes, me ofendiam e gritavam como me odiavam quando eu chegava perto. As Samambaias queriam brincar comigo e tentavam me fazer tropeçar com rasteiras dadas pelos seus galhos delicados e riam descontroladamente toda vez que tentavam. A Palmeira-Ráfia me enchia o saco querendo que eu acariciasse suas folhas e a chamasse pelo seu nome científico. A Palmeira-Leque me pedia água o tempo todo. Toda hora vinha com um borrifa mais um pouquinho” e reclamava da Begônia que não parava de cantar. O Manjericão? Ai, ai, o Manjericão… Esse só sabia reclamar de ser comestível e pedir esterco de qualidade. Esse desgraçadinho só sossegou quando eu contei que o tal do esterco de qualidade é feito com bosta de um tanto de bicho que rumina pedacinhos de grama, plantinha, florzinha e até ervinha. Só depois de chocado com o ciclo da vida e o destino de seus parentes, ele se calou. Nem comento sobre a Comigo-Ninguém-Pode. Essa me testou de todas as maneiras possíveis e impossíveis provando que esse nominho dela diz muito sobre a realidade de seu temperamento. Uma hora cheguei a me pegar com uma tesoura de jardim pensando em dar um fim naquela chata! Só os Lírios ficaram na deles, não por bom comportamento, deixo claro, eles queriam me atingir me dando um gelo daqueles por puro ciúme.

Lá pelas dez, Rafael me enviou um áudio no Whatsapp me convidando para conhecer a casa que ele agora dividia com o namorado. O programa? Tomar um brunch caseiro e maravilhoso com tomatinho confit feito por eles. Mensagem que me deixou com água na boca, mas que só li porque minutos antes eu tinha tomado a iniciativa bem controversa de me trancar no banheiro e deixar o pau quebrar lá fora. Quando pensava onde eu ia arrumar uma babá para as plantas, a Palmeira-Ráfia, aproveitando de seu tamanho, olhou pela fechadura da porta e viu que eu estava só mexendo no celular sentada na privada e começou a gritar para as outras que a mamãe não gostava mais delas e todas passaram a chorar como a Orquídea chorou às cinco e pouco da manhã. Pelo menos já era um pouco mais tarde, o que diminuía drasticamente a chance de alguém reclamar da barulhada do meu apartamento para a síndica.

Um golpe baixo esse da Palmeira-Ráfia. Sair do banheiro foi difícil, eu sentia culpa, queria chorar, mas não podia dar esse gostinho para nenhuma daquelas coisinhas insuportáveis que eram piores que ervas daninhas, mas precisavam de cuidados. Elas me encararam com arrogância e mágoa e andar pelo corredor até a sala me lembrou os piores tempos de escola.

Fui obrigada a voltar a atender as necessidades de cada uma delas. Toda hora, uma coisa diferente. Era adubo, era corte, era passar canela em pó nos tronquinhos igual eu fiz com a Orquídea e causou ciúme no resto da trupe. Era troca de vaso, decoração das floreiras, carinho e muito ouvido aberto para conhecer as picuinhas delas. Elas também me acariciavam, me falavam palavras bonitas e faziam coisas engraçadinhas, o que piorava a culpa que eu sentia por não amá-las como eu achava que amava antes desse dia começar e elas se tornarem minhas filhas.

Exaustão se tornou meu nome, sobrenome e arroba no Twitter. Fui dormir quase uma da manhã e o sono era tanto que nem consegui mandar uma mensagem para minha mãe perguntando algumas coisinhas sobre jardim e família.

Acordei cinco horas depois com o despertador berrando e com o pensamento fixo no desafio do dia: como eu iria passar dez horas fora de casa e deixar sozinhas trinta e uma plantas de todas as idades?

O silêncio dos outros cômodos me respondeu. Nunca precisei saber o que fazer nessa situação, porque elas tinham voltado ao estado vegetativo habitual.

Quando vi a sala com sua paz de sempre restaurada, ri pensando na esquisitice do pesadelo da vez até notar o quanto o chão, o sofá e a mesinha estavam cheios de terra, pedaços de folhas, caules, seiva, canela em pó e tudo mais.

De fato já era segunda-feira.


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Menino capacete

Soldadinhos de brinquedo

Quando João nasceu, os médicos descobriram que ele veio ao mundo com um capacete natural acoplado ao seu corpo. Nas primeiras semanas, a consistência do elmo ainda em formação era tão frágil quanto a moleira de todos os outros bebês, mas logo isso mudou.

Aos seis meses, a cabeça dele já tinha se tornado mais resistente que um capacete de um motociclista. Aos quatro anos, cientistas comparavam a dureza dela com os materiais da escala Mohs e afirmavam que era questão de tempo para que essa parte específica do corpo de João tomasse o lugar do diamante no topo.

Com orgulho, a família o alimentava com comidas nutritivas e o obrigava a seguir à risca uma dieta feita para fortalecer os ossos e a carne. Queriam que a cabeça de João ficasse ainda mais firme.

Todo mundo dizia que nascer assim era coisa do destino e que em algum lugar do DNA do menino constava que ele devia seguir alguma carreira no campo da segurança pública. Seus pais concordavam, mas desejavam que o cérebro de João também chamasse atenção, já que não gostariam de ver o garoto ser usado em seu futuro emprego como uma simples isca por causa de seu capacete natural melhor que todos os artificiais. Por isso, desce cedo, eles o incentivaram a estudar muito para garantir um futuro de sucesso nos concursos públicos de alto escalão. Seu pai dizia para quem quisesse ouvir que João seria um ótimo delegado da Polícia Federal e sua mãe sonhava com seu menino estudando no Instituto Tecnológico da Aeronáutica para só depois alçar voos maiores.

Aos dezoito, ele não conseguiu evitar prestar o serviço militar mesmo com a sua vaga universitária garantida pela excelente nota no vestibular. Seu capacete natural virou assunto no meio e até o Ministro da Defesa quis conhecê-lo. Nesse dia, o homem prometeu para ele regalias e mais regalias por causa de seu talento nato para resistir bem a grande impactos.

Mas João era de fato muito cabeça dura, por isso largou sua vaga na instituição de ensino superior da aeronáutica e foi estudar artes cênicas para atuar em filmes de guerra hollywoodianos. Esse sim, seu grande sonho.


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Antártida

De repente ninguém mais morreu de tiro, faca, bomba ou porrada. Nenhuma pessoa conseguia entender como o índice de violência mundial chegou ao marco incrível de 0%, mas todo mundo sabia que algo tinha acontecido. Antes de dormir, naquele momento em que a solidão se torna quase concreta, não tinha uma só pessoa na Terra que não percebia que algo estava diferente dentro dela.

Ninguém sabia responder o que tinha causado isso e, inicialmente, as pessoas fingiam não querer entender, apesar do mundo ter se tornado outro em menos de um mês. Viviam como se nunca tivesse havido todo derramamento de sangue que a humanidade sempre conheceu e ignoravam os intensos anos de culto à violência que vigoraram até então.

Quando uma cientista descobriu que um som misterioso foi emitido da Antártida para todo o planeta horas antes do fim da violência, ela levantou a hipótese de reprogramação da mente humana e apareceu em todos os jornais. Só isso foi capaz de fazer as pessoas assumirem que queriam entender o que tornou a humanidade esse povo pacífico e, dias depois, diversas excursões de pesquisadores começaram a partir de todos os lugares do globo para explorarem o continente gelado.

Depois de quinze dias de busca, o grupo sul-africano encontrou uma base enorme destruída. Frente aos destroços, havia uma bandeira lilás intacta posicionada. Nela estava inscrita a frase “finalmente paz”.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroTerra. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, TwitterWattpad, Tinyletter e Instagram.