— Então, Dr. Marcos, eu tenho me sentido meio estranha. Não consigo me concentrar em nada.
— Estranha como?
— Eu tenho adiado até mesmo o ato de ligar o computador e por isso prefiro deixá-lo hibernando para de manhã, logo após iniciar o dia, não ser obrigada a sentir mais um começo antes mesmo de bater o ponto online. Também tenho tido pouca vontade de comer e quando a vontade vem é sempre relacionada com alimentos que não fazem muito bem, me causam azia e tudo, como Nutella, pizza e torresmo. E não tenho dormido bem, doutor, apesar de continuar dormindo muito.
— Hmmmm… O que mais?
— Eu tenho a sensação de que não há futuro possível. Dr. Marcos. E isso me entristece, mas também me alivia, porque eu não preciso mais acreditar em nada e nem buscar alguma coisa. Na verdade, isso é bom, porque isso me impede de criar expectativas.
— Isso que você narra parece depressão, não acha? Toda essa apatia…
— Acho que sim. Na verdade, eu não saberia afirmar com certeza.
— Hm…
— Doutor, você sabe de algum documentário bom sobre isso para eu assistir?
— Ana?
— É, doutor, um documentário sobre depressão.
— Ah, eu não conheço. Não vejo muitos documentários, mas minha filha adora. Posso perguntar para ela se ela tem alguma indicação, se você quiser…
— A Cecília gosta de documentários?
— Gosta sim. Esses dias ela me fez assistir com ela um que tinha na Netflix… De uma mulher negra com um vozeirão, sabe?
— Hmmm… Nina Simone?
— Isso. Eu até gostei… Depois fiquei procurando umas músicas dela para ouvir no Youtube. Aquela Feeling Good é boa, né?
— É boa sim, Dr. Marcos.
— Vou te mandar agora uma receita de um remedinho que vai te ajudar, Ana. Vai chegar no seu e-mail cadastrado no app do plano de saúde, viu?
— Obrigada, Dr. Marcos.
— De nada, Ana. Manda um abraço para sua mãe por mim.
— Pode deixar, Dr. Marcos! Manda outro pra Dona Ruth!
— …
— …
— Ana, você pode sair da teleconferência por favor? É só clicar nesse xzinho no canto esquerdo da tela. Pega mal o médico fechar a janela do paciente assim…
— Tudo bem, vou desligar aqui, viu? Boa semana!
— Agora você gosta de documentários, Cecília?
— Sempre gostei.
— Aham. Tá bom.
— Olha, eu gosto de documentários, mas eu não sou que nem você que vê qualquer um, independente do assunto. Eu busco ver os de temas que me interessam.
— Como Nina Simone?
— Sim, como Nina Simone.
— Seu pai quer que você me indique um documentário sobre depressão. Por motivos médicos.
— Meu pai me mete em cada roubada. Anem.
— Não precisa ser sobre depressão então. Me indica qualquer um que você já viu e eu possa gostar.
— Se você pegar para ver um documentário que acompanha a vida de uma sacola plástica, você vai amar, Ana. Você gosta de documentários e pronto. O seu lema é ver todos, porque você é tipo o Et Bilu e fica vendo esses filmes sem parar e depois fala “busquem conhecimento” sem dizer bem isso indicando algum no Twitter.
— Eu gostei dessa ideia de acompanhar a vida de uma sacola plástica. Você viu algo assim, foi?
— Não, Ana, eu só quis falar a coisa mais absurda que veio na minha cabeça.
— A ideia é realmente boa, você sabe disso, né?
— Eu não sei, porque eu não ligo para história pessoal de uma sacola plástica, mas se você diz…
— Posso pegar sua ideia para mim?
— Hm… acho que pode, né?
— Vou ver se começo a filmar essa semana ainda, aproveitar que fiz compras ontem e tem toda uma nova leva de sacolinhas que passaram por higienização.
— Não deixa de filmar a sacola se secando no sol depois de tomar banho, bem bronzeada.
— Se eu colocar um nome nela vai ser muito esquisito?
A ideia desse conto surgiu a partir de uma conversa com a versão tuiteira da tutora criativa e agente literária da Ceci. Nesse papo, eu realmente falei que isso de gostar de documentário como algo geral é coisa de gente cultíssima, mas meio Et Bilu, e não sei como acabei prometendo escrever um texto, esse aqui, com ou inspirada em uma personagem do livro “Ninguém morre sem ser anunciado”. Depois, já em outra conversa, essa privada e posterior ao envio do texto, eu cedi os direitos de filmagem desse doc da história da sacola citado no conto para a representante da Ceci. Agora acho que vou mandar uns vídeos das minhas sacolas via direct para ela entender que eu doei minha ideia, mas talvez queira ajudar com o roteiro. Qual sacolinha dessas vinte que estou olhando secar será protagonista dessa emocionante narrativa?
Dias 01 e 02: Os efeitos do descongelamento vital ainda estão intensos. Estou sonolenta, sentindo um chiado no ouvido e com muita dor de cabeça. Fora o enjoo e a boca com gosto de guarda-chuva que não vê água há dois anos. Quem diria que toda missão em outro planeta ia começar com agentes com sintomas de ressaca?
Tenho uma missão a fazer, mas hoje não conseguirei sequer sair dessa nave e pegar amostras do solo para enviar para a Central de Pesquisa Interplanetária. Vejo esse novo planeta desconhecido apenas pela janelinha. Não parece haver quase nada com cores fortes por aqui. Tudo é mais ou menos como se meu filho tivesse imaginado um planeta povoado por unicórnios. Rosa, verde, azul, roxo, amarelo, tudo enorme e em cores pastel. A estrela dessa galáxia brilha da mesma maneira que o sol de nossa Terra, mas todo o resto é diferente.
Dia 03: Fora a sede, que provavelmente se manterá firme e forte comigo nos próximos três dias, estou bem. Hoje, assim que acordei, comi uma porção da minha ração, troquei de roupa e dei uma volta na região da nave. Colhi amostras do solo, de diferentes plantas e de alguns insetos. Como tudo já indicava, oxigênio aqui é abundante, como na Terra, e por isso eu nem precisei usar equipamentos de auxílio para a respiração. O que de fato é um alívio, porque me dá mais tempo no planeta e me permite tentar me misturar com o povo originário daqui sem tantos problemas.
Nessa primeira saída, a temperatura estava amena. Cerca de 19º Celsius. Só que o cenário aqui parece quase distópico ainda que esteja lotado de plantas e água. Algo na atmosfera faz os riachos, lagos e mares serem roxos, quase lilases, não azuis. Isso parece tão errado.
Dias 04 a 10: Depois de um passeio mais longo e uma análise detalhada das imagens que consegui do satélite que lancei antes de desembarcar, concluí que estou no planeta das candy colors e a qualquer momento vou descobrir que esse mundo é povoado por Hello Kittys.
Dia 11: Comecei a ver muita beleza nas cores daqui. Especialmente durante o pôr do sol. É um mundo fantástico, desses que fazem a cabeça das crianças e encanta adultos que ainda gostam de sonhar. Tem uma fruta aqui com o gosto daquele sorvete azul claro que chamamos na Terra de “pedacinho do céu” e outra, do tamanho de uma manga, que me lembrou um pouco uma amora, só que mais doce. Penso nisso agora para não neurar mais com o fato de que o contato com a vida inteligente desse planeta já aconteceu e foi de uma maneira totalmente diferente do que eu gostaria. Estou numa sala enorme, de um prédio bege pouco decorado, mas bem bonito, esperando que falem comigo. Um homem e duas mulheres, ambos claramente cientistas, me encontraram hoje na mata. Eu não imaginava que eles já tinham tecnologia para detectar minha chegada tão rapidamente. Talvez eu esteja em risco. Quero acreditar que não.
Dia 12: Eles claramente não gostam da minha presença, mas me parecem um povo curioso sobre minha anatomia e pacífico com outros planetas, na medida do possível. Tento me comunicar mais com os cientistas que me encontraram, porque vejo neles uma vontade genuína de trocar tecnologias e saberes, que é meio que o motivo que me trouxe aqui, mas depois da nossa conversa conjunta com os representantes da região, acho que não vai acontecer nada. Nenhuma troca, ainda que eles pareçam querer isso como eu quero. Nós simplesmente não conseguimos nos comunicar. Nossas linguagens são tão diversas e partem de símbolos tão diferentes que o meu tradutor automático não consegue identificar sequer os fonemas deles e nem eles e nem os seus aparelhos conseguem entender os meus símbolos, minha linguagem, os sons que eu emito.
Dias 13 a 18: Os nativos desse planeta são altos, muito altos, e totalmente pinks. Sim, pinks. Não rosa bebê, como grande parte da vegetação, mas pinks. Tudo que percebi até agora só explica a altura das árvores que vi quando cheguei e das camas, mesas e cadeiras que agora uso. Todo o resto continua sem explicação, especialmente agora que não tenho como enviar mais tantas amostras sem parecer descortês. Os corpos deles tem o formato relativamente parecido com o nosso, mas eles possuem uma consistência mais firme, mas ao mesmo tempo mais leve. A carne deles não parece ser a mesma que a nossa e dos nossos bichos. Somos bem parecidos, mais do que eu imaginaria até, o que no fim das contas me intriga mais do que todas nossas diferenças óbvias.
Dia 19: Tenho medo. Por isso não saio mais desse prédio em que me deixaram e observo tudo que posso pela janela. Não acho que vão me dissecar ou algo assim. Ao menos não agora. Eles parecem estar muito intrigados com a maneira que eu me expresso, então precisam de mim viva e falante.
Me deixam em paz grande parte do tempo, mas quando se aproximam assoviam e sibiliam o tempo todo. Eles querem algo de mim, mas eu não sei o quê.
Dia 20: Enquanto eu falo, eles olham a minha língua tão intrigados que temo que eu acorde amanhã sem ela.
Dia 21: Tenho sido injusta com os habitantes desse planeta. Eles não tentaram, em nenhum momento, me intimidar. Pelo contrário. O que me deixa mais desconfiada ainda. Temo me tornar uma espécie de pet deles ou sei lá. Não pode ser normal tratar um estrangeiro de forma tão tranquila, especialmente quando ele poderia ter avisado sobre sua chegada e não o fez. Ainda mais quando eles parecem sentir medo também. Essa paz toda me parece antinatural demais. Se são tão puros, o que eles vão pensar de mim se souberem que foi uma guerra e competição entre países que incentivou os primeiros avanços do meu povo para o desenvolvimento do conhecimento interplanetário?
Dias 22 a 30: Eles tentam ser simpáticos, então eu tento ser simpática do meu jeito, o jeito humano, e eu acho que eles quase gostam de mim. Eles cantam, dançam, leem, andam quase sempre em grupos, se encontram para assoviar em prédios como esse em que estou hospedada, cozinham muito bem e parecem estar tentando criar uma maneira de se comunicar comigo. Eles não param de tentar, pelo menos. Como se a insistência fosse o suficiente para fazer a gente começar a se entender.
Dia 31: Trouxeram minha nave para cá, para eu me sentir em casa. Aparentemente, a única coisa que temos em comum são os símbolos de lar, porque estamos nos comunicando a partir unicamente de desenhos de tudo que simboliza conforto, amizade, segurança e origem. Ainda que “lar” seja uma palavra tão abstrata, nos entendemos porque eu quero segurança para conseguir voltar para minha casa e eles querem a certeza de que eu não vou tomar a deles.
Esse texto foi feito a partir do #EscritaNaQuarentena, desafio de escrita criativa proposto pela Stefani Del Rio para a gente tentar se distrair um pouco durante esta pandemia. A proposta do terceiro dia era fazer um diário de bordo de uma viagem interplanetária e esse foi o resultado final do meu trabalho. Saiba mais sobre a ideia nesse post do Twitter ou no Medium, participe e se divirta.
Oi, Brasil. Oi, Rede Globo. Meu nome é Maurício e eu sou professor universitário e escritor. Tenho 35 anos, moro em São Paulo e decidi que precisava me inscrever nesse programa, porque a vida em confinamento com lindas mulheres, boas festas, pessoas muito diferentes de mim e desafios de convivência me parece ser o material perfeito para me inspirar a escrever um futuro romance sobre a experiência.
Se eu me entregaria para o amor dentro do jogo? Claro que sim, para isso estou sempre aberto. Não tenho medo de viver qualquer história. Mesmo frente às câmeras. Já sou acostumado a colocar os holofotes sobre a minha vida a partir da escrita, entende? Já escrevi até sobre minhas broxadas e minhas musas. Me doarei por completo para o programa, como já faço na escrita.
Se eu tenho medo de acabar ganhando fama de vilão? Não, não tenho, sou professor e já estou acostumado com isso, Brasil. Não se engane com essa minha carinha de homem sensível e quietinho, eu sou o terror nas bancas de monografia e já aviso desde já que não tenho medo de jogar. Eu quero um milhão e meio de reais na minha conta.
Corta para Maurício na casa comentando com os outros homens do confinamento sobre o corpo de cada uma das participantes e posteriormente conversando na primeira festa com a eleita como a maior beldade da edição. Depois de umas três elofensas a ela e dez autoelogios, ele comenta “Você já ouviu falar do Jabuti? Eu só nunca ganhei porque nunca me inscrevi” e sela sua fama de feio sem noção.
Corta para a saída do escritor e professor no 6º paredão, seu 1º.
Esse texto foi feito a partir do #EscritaNaQuarentena, desafio de escrita criativa proposto pela Stefani Del Rio para a gente tentar se distrair um pouco durante esta pandemia. A proposta do segundo dia era criar um personagem do zero e escrever o texto de apresentação dele ao entrar no BBB e esse foi o resultado final do meu trabalho. Saiba mais sobre a ideia nesse post do Twitter ou no Medium, participe e se divirta.
Quando João nasceu, os médicos descobriram que ele veio ao mundo com um capacete natural acoplado ao seu corpo. Nas primeiras semanas, a consistência do elmo ainda em formação era tão frágil quanto a moleira de todos os outros bebês, mas logo isso mudou.
Aos seis meses, a cabeça dele já tinha se tornado mais resistente que um capacete de um motociclista. Aos quatro anos, cientistas comparavam a dureza dela com os materiais da escala Mohs e afirmavam que era questão de tempo para que essa parte específica do corpo de João tomasse o lugar do diamante no topo.
Com orgulho, a família o alimentava com comidas nutritivas e o obrigava a seguir à risca uma dieta feita para fortalecer os ossos e a carne. Queriam que a cabeça de João ficasse ainda mais firme.
Todo mundo dizia que nascer assim era coisa do destino e que em algum lugar do DNA do menino constava que ele devia seguir alguma carreira no campo da segurança pública. Seus pais concordavam, mas desejavam que o cérebro de João também chamasse atenção, já que não gostariam de ver o garoto ser usado em seu futuro emprego como uma simples isca por causa de seu capacete natural melhor que todos os artificiais. Por isso, desce cedo, eles o incentivaram a estudar muito para garantir um futuro de sucesso nos concursos públicos de alto escalão. Seu pai dizia para quem quisesse ouvir que João seria um ótimo delegado da Polícia Federal e sua mãe sonhava com seu menino estudando no Instituto Tecnológico da Aeronáutica para só depois alçar voos maiores.
Aos dezoito, ele não conseguiu evitar prestar o serviço militar mesmo com a sua vaga universitária garantida pela excelente nota no vestibular. Seu capacete natural virou assunto no meio e até o Ministro da Defesa quis conhecê-lo. Nesse dia, o homem prometeu para ele regalias e mais regalias por causa de seu talento nato para resistir bem a grande impactos.
Mas João era de fato muito cabeça dura, por isso largou sua vaga na instituição de ensino superior da aeronáutica e foi estudar artes cênicas para atuar em filmes de guerra hollywoodianos. Esse sim, seu grande sonho.
De repente ninguém mais morreu de tiro, faca, bomba ou porrada. Nenhuma pessoa conseguia entender como o índice de violência mundial chegou ao marco incrível de 0%, mas todo mundo sabia que algo tinha acontecido. Antes de dormir, naquele momento em que a solidão se torna quase concreta, não tinha uma só pessoa na Terra que não percebia que algo estava diferente dentro dela.
Ninguém sabia responder o que tinha causado isso e, inicialmente, as pessoas fingiam não querer entender, apesar do mundo ter se tornado outro em menos de um mês. Viviam como se nunca tivesse havido todo derramamento de sangue que a humanidade sempre conheceu e ignoravam os intensos anos de culto à violência que vigoraram até então.
Quando uma cientista descobriu que um som misterioso foi emitido da Antártida para todo o planeta horas antes do fim da violência, ela levantou a hipótese de reprogramação da mente humana e apareceu em todos os jornais. Só isso foi capaz de fazer as pessoas assumirem que queriam entender o que tornou a humanidade esse povo pacífico e, dias depois, diversas excursões de pesquisadores começaram a partir de todos os lugares do globo para explorarem o continente gelado.
Depois de quinze dias de busca, o grupo sul-africano encontrou uma base enorme destruída. Frente aos destroços, havia uma bandeira lilás intacta posicionada. Nela estava inscrita a frase “finalmente paz”.
Espero o ano todo pelas luzes de natal. Quando as casas, lojas e ruas começam a aparecer enfeitadas, me sinto como uma criança esperando o Papai Noel chegar com seus presentes.
Entre as tarefas do escritório, a montagem da árvore e a preparação das rabanadas, panetones e do famigerado pernil, encontro um tempo pra mim e me preparo para o dia em que me faço renascer. Hidrato o cabelo, esfolio a pele, pinto as unhas, tiro o tubinho preto do maleiro e lustro um par de sapatos de salto alto. Ao me verem tão arrumada na Ceia, acham que me enfeito toda para receber Jesus.
Enquanto espero todos chegarem, sempre com um terço nas mãos e murmurando orações quando alguém está olhando, termino a salada, afio as facas e testo o corte delas no Chester.
Sirvo as entradas logo para oferecer o jantar só após o Pai Nosso da meia noite. Belisco pouco e me recuso a beber em nome de Deus e todos riem da beata que sou. Lá pelas duas da manhã me ofereço para levar os últimos bêbados da família para casa. Quando essa via crúcis finalmente acaba chega a hora do meu feliz natal.
Sei bem onde ir. Observei as possíveis presas durante o ano todo. Escolho quem vai ser de acordo com a minha sorte. Esse ano tenho preferência por três nomes: Fernando, o galinha que abusa de meninas desacordadas, João Paulo, o marido violento da manicure da rua de cima, e Gustavo, um músico bosta que adora descer a mão em uma mulher.
A longa espera não estraga o momento. Sempre tem a surpresa de não saber quem vai ser o azarado da vez até um deles surgir no meu radar e o prazer e a adrenalina da faca rasgando a pele do sujeito.
Assim termino todos os meus anos como a heroína secreta de alguma mulher desesperada.
De salto e terninho, me sentei em um bar conhecido por vender chopp em dobro para engravatados durante o happy hour. Rapidamente, um cara me abordou. Respondi “Não, eu não estou acompanhada, moço” e o jogo começou.
Trocamos palavras, muitos beijos e alguns sorrisos e eu falei para ele vir comigo. Peguei sua mão e com jeitinho o guiei para fora do bar. “Vamos para um lugar mais reservado?”, eu disse enquanto o levava para o meu carro.
Encontramos minhas amigas pouco tempo depois. No olho, avaliaram com muito gosto o material que eu tinha levado e brincaram dizendo “Esse vai dar um trabalho, hein?”. Ele riu todo faceiro, com a certeza que tinha tirado a sorte grande. Juntos brindamos com cosmopolitans nas mãos.
Meia hora após o brinde, ele acordou e se deparou com muito mato, pouca luz, comigo e com minhas amigas. Nenhuma de salto, todas vestidas para matar: calça, coturno e espingarda. Demos uns minutos para ele tentar se esconder e saímos à caça.
Acertei suas costas e subi três posições no placar. Na próxima semana, já alcanço o primeiro lugar. É tipo um Counter Strike, mas no lugar das balas, usamos dardos tranquilizantes e depois devolvemos o animal para seu habitat, o bar.
Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroJogo.
Numa sucessão de golpes e de candidatos falastrões que odeiam minorias conquistando o poder, chegamos até aqui. Depois de tantas maracutaias para passar reformas, apoiar guerras e explorar pessoas para fazerem roupas de pouca qualidade, o capitalismo entrou em colapso. A descrença fez surgir na população cinismo, medo, memes e luta, e o resultado disso foram anos e anos em que o mundo foi dominado pelo aleatório.
Nessa época de transição, todos os atores acreditavam fielmente que faziam algo de fato, mas a maioria apenas agia de modo automático. Em busca de um pouco mais de igualdade, alguns lutaram e forçaram a aleatoriedade para transformar o capitalismo em outra coisa, num sistema que parecia mais justo, mas que acabou também se baseando na meritocracia e na sorte de nascer na família certa, no lugar certo.
O dinheiro se transformou. Inicialmente as trocas substituíram as notas e as contas correntes. A intenção era que voltássemos a viver com um senso comunitário aflorado, mas o fim do capitalismo não derrubou os privilégios e o poder totalmente, já que nunca houve uma ruptura de fato, e a antiga elite conseguiu influenciar na construção desse novo mundo. O dinheiro passou a ser a pontuação que o indivíduo conseguia jogando Scrabble. A antiga — e nova — elite dizia que a sorte em tirar a peça da letra certa tornava o sistema aleatório, logo, justo, mas ignorava que o conhecimento das palavras existentes e alguns lugares no tabuleiro continuavam inacessíveis para parte da população.
O mundo passou a ser dividido de acordo com os idiomas. Algumas línguas não se adaptaram bem ao jogo e hoje servem só para serem faladas, o que, na prática, é inútil na hora de fazer dinheiro. Acredito que esses idiomas desaparecerão com a morte de seus falantes, já que a língua agora serve ao utilitarismo. O inglês e o espanhol são as moedas de maior força, mas o português até vai bem, já que a China o adotou por influência de Macau e da agridoce aleatoriedade.
A elite é composta por quem consegue formar, com frequência, palavras usando todas as letras do banco e por aqueles que nasceram em lotes de palavras duplas ou triplas. O tabuleiro continuou o mesmo, mas criaram um mecanismo para definir onde cada jogador nasce nele. O jogador participa do jogo de acordo com o local em que mora na vida real, o que coloca a periferia sempre nas áreas com poucos bônus. Alguma coisa mudou?
Sou classe média. Muitas vezes nasço numa letra dupla ou tripla e por isso treino horas e horas fazendo palavras com letras como Z e X, de preferência. Como nem sempre a sorte ajuda, treino bastante as letras Q, V, F e outras que também pontuam bem.
O sistema político e jurídico também sofreu modificações, mas essas ainda estão em curso em todo o mundo. Até então, no Brasil, tivemos apenas uma eleição, que foi decidida através do programa Soletrando, apresentado pelo Lúcio Hick, num canal de Youtube braço da emissora Lobo. Lúcio se tornou uma espécie de mesário bem popular e que anda de táxi nas horas vagas. A produção do programa tem algumas atribuições do antigo TSE e os espectadores, como eu, acham que fiscalizam todo o processo. Teoricamente, se a gente notar alguma coisa estranha, a gente leva para a justiça e ela decide através de análises que envolvem linguistas, gramáticos e nossos votos. Ainda não aconteceu, provavelmente vai rolar algo nas eleições regionais, por elas serem mais numerosas. Não há mais eleições municipais, porque é impossível para o Lúcio Hick apresentar tudo, né?
Quando eu era criança, uns quarenta anos atrás, eu era a única pessoa fascinada por sopa de letrinhas que eu conhecia. Eu sonhava com esse alimento, mas na vida real só encontrava letra em livro e no prato apenas argolinha, Ave Maria, conchinha, espaguete, Pai Nosso e até penne. Agora, a sopa de letrinhas é o antigo feijão com arroz e sofreu toda espécie de gourmetização possível para se tornar o grande destaque dos cardápios dos melhores restaurantes. Sigo fascinada, já que agora a gente encontra até bago de feijão em formato de letra.
Para quem nasceu no fim dos anos 1980, como eu, é bem divertido ver os novos rituais que surgiram. Para mim, mineira do interior, o mais engraçado é a mudança das cerimônias cristãs. Hoje, durante a Crisma, a galera come pedaço de dicionário embebido no vinho para fortalecer a fé e o seu conhecimento.
Estranho uma das minhas antigas diversões ter se tornado isso. Nos dias de hoje trabalho para receber letras coringa, bem elas, que sempre quis evitar usar porque antes não valiam nada, a não ser a chance de colocar uma palavra maior. Hoje o coringa vale muito e, se antes tinha que se pensar muito antes de usar, agora tem até curso que ensina a hora certa. O mundo é outro, mas também é um pouco do mesmo que vivi. É a mesma época, são as mesmas gerações e a cultura foi pouco modificada. O Scrabble não é mais só um jogo de tabuleiro, é o jogo da vida.
Texto escrito com base emtweets que fiz em minha conta pessoal em Maio de 2017.
Você já leu Harry Potter? Você lembra do Arthur Weasley, o pai do Rony? Lembra do quanto ele era aficionado com as tecnologias trouxas? Eu sou como ele, só que não sou bruxa e as tecnologias que me fascinam são as mesmas que eu uso.
Cresci desmontando todo e qualquer objeto tecnológico que eu encontrasse e pudesse mexer sem causar um verdadeiro caos na minha família caso a remontagem falhasse. Sempre busquei saber como tudo funcionava: televisão, videocassete, calculadora, telefone, geladeira, etc. Já maiorzinha, passei a ir em bairros ricos procurar no lixo deles qualquer celular, Pense Bem, Gameboy, videogame, calculadora ou coisa parecida. O que fosse tecnológico e tivesse uma aparência de que é possível ser consertado ou aproveitado, eu levava para casa. Mexia em tudo, tentava arrumar o produto e, caso não desse, aproveitava as peças ainda úteis para minhas tentativas de criar coisas novas, como robozinhos.
Nem preciso dizer que meu amor por peças, montagens, ferramentas e invenções era algo visto como esquisito e fora do lugar, né? Segui a vida, fiz dois cursos técnicos relacionados ao meu hobbie e fui uma das únicas mulheres da sala nas duas vezes. Inicialmente, eu não consegui emprego na área, mas nas horas vagas continuei focada no que sempre me moveu.
Depois de dois anos vivendo de empregos temporários e vendendo doces e salgados junto com minha mãe, consegui uma entrevista de emprego por indicação de Juliana, amiga da época dos cursos técnicos. Na entrevista, a moça do RH me fez perguntas sobre minha formação, interesse na área, infância e eu contei minha história de encantamento com esse mundo e ressaltei que, mesmo não trabalhando na área, eu segui naquilo nas horas vagas.
Já fora da sala do RH e longe do chefe, a moça me contou que a Juliana tinha falado sobre mim. Comentou que quando foi na escola técnica anunciar a vaga, elas se conheceram e conversaram bastante. Como boa amiga, Ju tentou cavar uma entrevista para mim e conseguiu. No fim do papo, ouvi “por mim você é a escolhida, mas preciso conversar com o chefe antes de qualquer confirmação”. Agradeci e fui embora ansiosa.
No outro dia, recebi a ligação dizendo que era para eu começar segunda-feira. O salário era bacana, o horário era tranquilo, tinha ticket alimentação e vale transporte. Tudo ótimo. Assim que iniciei os trabalhos, me descobri realizada. Sabe a vaga dos sonhos? Eu achei a minha. Meu trabalho é pensar em novas tecnologias, criar protótipos delas e melhorar os produtos já existentes no mercado. Faço parte de uma equipe multidisciplinar de onze pessoas que é composta por gente com doutorado e por gente como eu, técnicos fãs do assunto. Todos os nossos projetos correm sob sigilo, então eu não posso dar muitos detalhes sobre o que faço por aqui, mas adianto que já fiz protótipos que lembram até mesmo o mundo dos Jetsons.
O 7º andar da empresa é todo nosso, temos uma sala enorme em que apresentamos ideias, fazemos reuniões e testamos novos modelos, uma sala de montagem básica, cheia de ferramentas, e também amplo acesso ao setor de peças e ferramentas oficial do prédio. Na maior parte do tempo, eu trabalho numa sala que divido com Fernanda. Lá temos uma mesa com quatro lugares, duas escrivaninhas, dois computadores de mesa, uma impressora maluca que imprime o que quer e quando quer, cadeiras super confortáveis e um pequeno armário.
Assim que entrei na equipe, eu e Fernanda nos aproximamos. Ela é mestre em engenharia robótica, super cabeçona, sabe? E adora fantasia, ficção científica, comida indiana e robôs. É claro que a gente ia ficar amiga uma hora. Nossa amizade faz com que a gente trabalhe muito bem juntas e, por isso, a gente optou por dividir uma sala. Tirando eu e Fernanda e o trio Marcos, Aline e Fábio, todos os outros preferem ter salas próprias.
Com poucos meses na empresa, fiquei sabendo que, todo ano, eles lançavam um processo seletivo próprio para escolher o técnico que ganharia uma bolsa na PUC no curso de sua área de trabalho. Era como se fosse um mini vestibular. Assim que fiquei sabendo, eu já comecei a estudar, porque eu precisava passar na PUC no curso escolhido e ganhar a bolsa concedida pela empresa. Por isso, passei a ficar depois do horário comercial, usando o computador do serviço para assistir às aulas do cursinho, porque o wifi de lá era bem melhor do que o que eu tinha em casa. Foi nessa época que eu percebi como a impressora era imprevisível. Uma coisa que ela sempre fazia era imprimir a resposta dos exercícios que eu estava fazendo sem eu pedir. Tentei arrumá-la várias vezes, chamei o pessoal especializado em informática para ver se tinha algo que eu tinha deixado passar, mas ela sempre voltava a fazer o que ela queria. Ela parecia ter vontade própria, sabe?
Fui aprovada no curso de Engenharia Eletrônica noturno. Queria Controle e Automação, mas não tinha esse curso na unidade. Fiz a prova da empresa e dias depois fiquei sabendo que passei. Fiquei feliz demais, finalmente eu ia poder fazer a graduação que esperei por anos. Iniciei o curso no início do ano e na primeira semana de provas, eu quase pirei para conciliar a entrega de um projeto com os estudos. Passei a comer na minha sala e aproveitar o horário do almoço para me preparar para as provas e fazer os trabalhos da faculdade. Fiquei muito estressada e fui aconselhada pela Fernanda a usar parte desse tempo do almoço para cuidar de mim. Ela sugeriu que eu escrevesse uma espécie de diário em que eu relataria tudo como se tivesse batendo papo com um terapeuta, já que ir em um não era uma possibilidade. Eu nunca fui num terapeuta e passei a escrever o que eu sentia, pensava e o que acontecia comigo como se eu tivesse conversando com o Hannibal Lecter, um personagem que é um psiquiatra canibal e a minha única referência sobre tratamentos psicológicos.
Eu digitava tudo que queria dizer no meu drive do email pessoal e deixava lá numa pasta chamada “Minha sitcon sombria”. Confesso que imaginar que Hannibal Lecter era meu terapeuta foi bem motivador no início, porque eu me divertia bastante contando minha vida enquanto criava uma história de ficção na minha cabeça. Acho que tenho o roteiro de uma ótima série pronto e nem me dei conta disso.
Escrever meu diário virou algo da minha rotina. Escrevia umas duas vezes por semana já tinha uns seis meses. Relatei ali as várias brigas com minha mãe porque ela sempre insiste que eu devia sair mais, desabafei que a Juliana estava chateada comigo porque eu faltei no aniversário do filho dela e nem liguei para perguntar como foi, comentei que meu irmão me chamou para sair e eu esqueci de responder no Whatsapp e ele discutiu comigo. Contei ali o quanto me sentia sozinha, sem tempo, triste e frustrada por magoar as pessoas próximas. Tudo muito pessoal. Por isso, eu tinha que ficar de olho na impressora, porque ela continuava imprimindo coisas sem o comando, inclusive páginas que pareciam ser trechos dos meus escritos íntimos.
Um dia, assim que eu abri um novo documento Google e digitei as primeiras palavras, uma impressão começou e saiu um papel dizendo “Oi Ivana”. Eu achei bem estranho e resolvi digitar “Oi máquina”, bem na zoeira. E de repente, ela imprimiu uma resposta que começava dizendo “eu achei que você nunca ia me responder, tenho tentado contato há tempos comentando seus desabafos”. E continuava com um texto em que ela dizia não se chamar máquina, me explicava que ela era uma impressora e revelava que seu nome era SCTY 14556. Tremi. Eu pensei que era um vírus, alguém invadindo meu computador, algum troll do meu setor que descobriu que eu fazia um diário, imaginei até que era uma punição de deus por eu não dar bola pra ele e que meu chefe achava ruim de eu usar o computador para outras coisas e resolveu me pregar uma peça. Pensei que era tudo, menos uma máquina conversando comigo.
Conferi firewall, antivírus, reiniciei o computador, troquei minhas senhas e fui fazendo tudo que a gente aprende nesses cursos de segurança na web. Enquanto seguia o script anti-hacker, eu pegava aqueles papéis que foram impressos para conferir se aquilo estava mesmo acontecendo e tentava distrair a Fernanda, que nessa altura já tinha voltado do horário de almoço e recomeçado a trabalhar. Ela viu que eu estava agitada e me perguntou o que era e eu respondi vagamente “você sabe como é, né? deu pau”.
Depois de três horas, me convenci que fiz tudo que era suficiente e mandei reiniciar mais uma vez. Antes mesmo do sistema iniciar, a impressora começou a engolir um papel para vomitar mais letrinhas. Tive taquicardia de ansiedade enquanto via a máquina funcionando. Ela imprimiu, em caps lock, negrito e fonte tamanho 96, a palavra CALMA e já puxou uma nova folha. Fernanda me viu encarando a impressora e comentou “Essa aí é temperamental, né?” e seguiu no seu trabalho. No desespero, peguei minha caneca e corri na máquina de café, escolhi capuccino e voltei tomando e já conferindo a impressora. Peguei a folha, vi que a máquina não tinha puxado mais nenhuma, desliguei-a para garantir que nada mais ia ser impresso e fui lê-la no banheiro.
SCTY 14556 escreveu um longo texto em letras bem miúdas, nele disse que as impressoras geralmente tem noção de que existem e que tem vontades, por isso todo mundo tem um caso de um impressora que funciona só quando ela quer, independente do preço e da modernidade tecnológica dela. Ela descobriu isso por causa das inúmeras pesquisas que eu fazia tentando consertá-la e também porque ela conhecia a sua própria percepção das coisas. Percepção que ela queria muito dividir comigo. Ela me contou tudo: do primeiro dia que ela sentiu o lampejo de que existia, como ela aprendeu a burlar o computador e imprimir as coisas sozinha e até mesmo quando ela começou a sentir uma enorme vontade de me responder.
Ela também confessou que me lia desde sempre, mas passou a prestar mais atenção quando comecei o diário. Relatou que de tanto me ler, começou a sentir algo estranho, que nunca tinha sentido antes. Ela descreveu o que nós humanos damos o nome de empatia. Desde esse dia, ela quis falar comigo que tudo ia ficar bem e começou a querer me contar sua própria história, já que ela conhecia tão bem a minha.
A máquina queria me contar que inicialmente imprimia só quando dava vontade, geralmente para mostrar que queria uma folga, estava cansada, queria paz ou que o cartucho de tinta estava perto de vencer. Entendi que muitas das folhas impressas que eu encontrei eram atos de rebeldia. Depois ela começou a usar sua tinta para me mostrar as respostas dos exercícios que eu fazia, já que eles estavam prontos ali no final da apostila. Ela não entendia o porquê de humanos perderem tempo fazendo aquilo tudo sendo que as respostas já estavam ali prontas e acessíveis. Com o tempo, ela passou a tentar chamar minha atenção para as ideias que ela gostava, para o que ela pensava que era importante, e usou suas impressões para me mostrar o que ela achava que eu devia olhar duas vezes. E de repente, ela sentiu um impulso de comunicação direta, de diálogo, e tentou dizer aquele oi de algumas horas atrás. Ela me confidenciou que se sentia sozinha e que via que eu também me sentia assim e achou que eu ia gostar de receber uma mensagem.
Li mais umas três vezes sem acreditar e voltei para minha sala. Fernanda estava arrumando as coisas para ir para casa e eu decidi matar aula e ir para casa também. Eu precisava pensar naquilo tudo. Eu precisava me afastar dali para avaliar se aquilo realmente estava acontecendo.
Fui para casa, jantei com minha mãe e meu irmão, vi novela com eles e fiquei feliz porque fazia tempos que eu não fazia aquilo. E percebi o quanto eu estava com saudade de conviver, de ouvir o outro, de sentir que a gente divide um espaço e que me ouvem, se importam comigo. Desde que a faculdade começou há quase um ano, eu passei a não ter tempo para nada. Trabalho, faculdade, transporte público, estudo extra. Nem conversar com a Fernanda, minha amiga que passa mais de oito horas comigo, eu estava fazendo. Nos últimos quatro meses, as poucas vezes que fiz isso, eu só falei de trabalho e café. Foi inevitável começar a rir sozinha quando conclui que aparentemente a SCTY 14556 era minha melhor amiga. Quando eu pensei nisso, percebi que tinha passado a aceitar que uma máquina conversasse comigo. Para falar a verdade, dei uma risadinha de alívio nessa hora, já que SCTY não quis iniciar uma revolução das máquinas contra nós, humanos. Adormeci pensando que ela é bem esperta e conseguiria isso facilmente, se quisesse.
Acordei. Peguei o trem, depois o ônibus, andei dois quarteirões. Entrei no elevador, subi, cheguei na sala. Cumprimentei a Fernanda, puxei papo, tomamos café juntas e assim que sentei para começar a trabalhar, abri o Google drive e mandei “oi SCTY 14556, bom dia”.
Aos quinze anos fui visitar a casa em que cresci e a descobri muito diferente. Os cômodos eram bem menores do que eu me lembrava. Os armários acoplados dos quartos não eram enormes pedaços de madeira escura trabalhada e que intimidavam pelo seu tamanho. Esses armários, na minha memória, eram tão imponentes que pareciam sustentar as paredes, o teto, a casa. Agora não havia nada de intimidador neles. Estavam velhos, com aparência de fragilidade até. Pareciam tão fracos que era como se tivessem encaixado painéis de madeira esculpidos como guarda-roupa entre as paredes. “Foram só cinco anos, como pode tudo ter mudado assim?”, eu me perguntava.
Eu não esperava encontrar tudo igual. Eu sabia que haveria um estranhamento, que eu me sentiria uma estranha ali. Só que eu imaginava que a percepção seria outra, que eu sentiria a casa mais ampla do que de fato ela foi, que tudo aparentaria ser bem maior sem as nossas presenças marcadas pelos objetos que possuíamos.
Depois de revisitar os cômodos do interior, fui para o quintal. Pela porta da cozinha, avistei onde ficavam os canteirinhos. Ali, meus pais plantavam cebolinha, manjericão, salsinha, couve, pimentas e até umas ervas para chás. Tanta vida coube ali, mas agora só se via um espaço com terra tão pequeno que fazia o verde da minha memória parecer quase um bosque. Só que dessa vez eu já não buscava mais comparar minha memória com a realidade. Não era mais isso que me movia. Eu já sabia que seria decepcionante ver essa parte da casa sem qualquer planta viva. O que eu queria mesmo era saber como estava o quartinho dos fundos que me aterrorizava durante a infância.
Desci a rampa. Ela não tinha nada do grande tobogã que fez parte de tantas das minhas brincadeiras. Apesar das minhas pernas terem continuado curtas, atravessei com poucos passos o caminho que um dia me pareceu longo e quando vi já estava na porta do quartinho.
Ele estava fechado. Eu já tinha aberto a porta dele antes, mas dessa vez tinha algo diferente. O meu medo de infância rememorado e o vazio de toda a casa aumentou seu ar de mistério.
Durante todo o tempo que vivemos ali, meus pais guardaram ferramentas, potes, vassouras, rodos, vasos, material de jardinagem, cadeiras de bar, enfeites de natal, baldinhos e até minha bicicleta e meus patins nesse espaço. Tudo que não cabia bem dentro da minha casa ia parar ali e formava uma bagunça daquelas. Entrar no quartinho era necessário, algo do dia-a-dia, mas ainda assim sempre fiz com pressa e receio. Toda vez que era preciso transpor aquele limite simbolizado pelo batente, eu sofria, e uma vez lá dentro, eu temia não mais voltar.
Por isso, eu escancarava a porta, colocava algo para garantir que ela ia se manter aberta e entrava correndo e voltava de lá com o que eu deveria buscar em minhas mãos. Quase sempre minha bicicleta ou meus patins, que ficavam apoiados bem na entrada, mas que ainda assim me faziam entrar ali por tempo o suficiente para temer.
Não sei dizer quanto tempo fiquei ali apenas encarando a maçaneta. As lembranças infantis são capazes de aterrorizar mesmo o mais seguro e cético adulto, imagine então uma adolescente de quinze anos que foi visitar sua antiga casa sozinha antes que ela fosse pintada para ser colocada à venda.
Abri a porta, entrei e notei que o quartinho tinha diminuído como todo o resto. Só que ele sofreu a diminuição de forma mais intensa: o que antes me parecia uma sala que foi transformada num armário de coisas pouco usadas ou grandes demais pra ficar dentro de casa se tornou uma dispensa grande.
Estranhei como era capaz de caber tudo aquilo que sempre vi ali dentro naquele lugar tão pequeno. Fiquei conferindo o espaço, enquanto lembrava onde a gente guardava tudo. Eu sentia o cheiro de tinta, as paredes ali já estavam recém pintadas. Não havia nada mais ali. Nenhum objeto, nem mesmo as marcas das prateleiras que eu esperava ver. Senti que todo aquele medo era coisa de criança.
Contemplei o quarto com o orgulho de quem venceu seus próprios medos. Finalmente tranquila, pude olhar para o todo com atenção e assim consegui ver algo que não tinha percebido ainda. Havia um buraquinho no chão bem onde as paredes se encontravam. “O quarto está recém reformado, como poderiam deixar passar isso?”, me perguntei enquanto chegava mais perto para conferir. Quando me abaixei para olhar, senti que o buraquinho não era só estranho, era poderoso. Ele inspirava o ar dali e o levava para o lugar nenhum. Eu sabia que se chegasse mais perto sentiria também que ele fazia um som bem específico quando puxava o ar. O som que eu lembro de ouvir sempre que entrava ali. O som que sempre me aterrorizou.
Gelei da cabeça aos pés e me virei em direção da porta. Nisso, senti a puxada do ar ficar mais forte e comecei a ouvir o som familiar ficar bem mais alto do que me lembrava. O lugar não parecia mais uma dispensa grande e sim um corredor. Eu olhava para os lados e via as paredes compridas e a porta mais longe do que eu imaginava. Consegui sair, mas no caminho — sim, agora já dava pra ter um caminho — eu cheguei a ver a porta fechando sozinha bem devagar com a força do buraquinho que sorvia o ar com cada vez mais força.
Fora dali, confusa e duvidando de tudo que tinha acabado de acontecer, reabri a porta e encarei o quartinho. Ele parecia inofensivo, exatamente como enxerguei antes. Ele tinha voltado ao seu tamanho normal e não havia nenhum sinal da corrente de ar bizarra que eu senti lá dentro e que me acompanhou até a saída.
Acreditei que tudo aquilo tinha sido só imaginação até meu olhar alcançar o buraquinho. Sua dimensão tinha mudado, quadruplicado na verdade. Agora ele era maior e ao ser notado voltou a sorver o ar como antes. Me afastei da porta e, já na rampa, a vi fechar sozinha, apenas com a fome daquele buraco. Fui embora com a impressão que a casa tinha ficado ainda menor e que ele nunca ia deixar de sorver.
Optei por nunca contar isso aos meus pais. Eu não queria ganhar o rótulo de louca. Achei que eu ia esquecer com o tempo. Não esqueci. Tentei criar teorias com base na ciência para explicar o que vivi ali. Não consegui. Pensei que um dia ia cair a ficha que foi só imaginação. Não aconteceu. Ainda não sei se o quarto se alimentava com as coisas que a gente deixava ali e naquele momento se rebelou por sentir a fome de alguns anos vazio ou se ele simplesmente viveu anos nutrido pelo meu medo guardado na memória e ao me ver chegar sozinha, com a casa toda vazia, decidiu que dessa vez ele ia me comer junto.