“Pequenas realidades”: o terror nas miniaturas

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Casas de boneca são presentes comuns para meninas. Brincando com uma, elas aprendem sobre disposições de cômodos, decoração e limpeza, emulando a vida que se espera que uma mulher tenha. Essas casinhas, dadas somente para meninas, reiteram a divisão sexual do trabalho e a ideia de que o espaço privado é o único território feminino por direito. Elas são um lembrete das funções que homens e mulheres devem ter. Por isso, para muitos esses lares em miniatura representam ingenuidade, pureza, futilidade e delicadeza.

A partir desse objeto considerado tão feminino, Tabitha King construiu uma narrativa única e sombria em seu primeiro livro “Pequenas Realidades”. Obra publicada pela 1ª vez em 1981 e que, antes dessa edição primorosa da Darkside com tradução de Regiane Winarski, recebeu no Brasil o título de “Miniaturas do terror”.

Usando elementos como tecnologia, habilidosa construção de personagens, múltiplas vozes, recortes de jornais e situações de tensão, Tabitha presenteia o leitor com uma obra que prende, incomoda e nos faz questionar sobre os limites da humanidade, nossa atração pelo controle de situações e pessoas e esse interesse coletivo e reiterado por reproduções do mundo real que vão muito além das casas de bonecas, sejam elas majestosas réplicas da Casa Branca ou não.

Na obra, as miniaturas domésticas não são parte do universo infantil como podemos imaginar em um primeiro momento, mas objetos de cobiça de colecionadores, curadores, fãs e pessoas comuns encantadas por uma versão adaptada desse nosso mundo nada palatável. Sendo assim, poder, dinheiro, sexo, narcisismo e jogos de manipulação circundam o que antes parecia apenas um mimo infantil.

De forma indireta, a narrativa apresenta reflexões sobre isolamento, padrão de beleza, controle, família e objetificação. “Pequenas realidades” vai muito além das miniaturas, ela trata sobre questões humanas e as disfunções que as acompanham. O terror dessa história está justamente no que parece poder existir fora das páginas do livro.

Tabitha King nos apresenta personagens ordinários e outros odiosos, todos cheios de nuances, e é justamente a relação deles uns com os outros que faz a história caminhar, enquanto nós, leitores, ficamos inquietos com o que promete vir, mas ainda não conhecemos. A autora explora nossa curiosidade, enquanto expõe e trabalha o psicológico de seus personagens de maneira minuciosa, mexendo com o leitor ao explorar o lado vil dos desejos e comportamentos humanos.

Casas de bonecas parecem completamente inofensivas e podem ser vistas até mesmo como desinteressantes, mas na escrita de Tabitha ganham um ar sinistro. Depois da leitura, nunca mais brincar de casinha parecerá tão simples e puro. Quanto poder pode morar na possibilidade de controlar o que consideramos apenas objetos?


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Bacurau: comunidade, rituais de morte e resistência

Obs: o texto contém alguns spoilers.

Cena do filme

Bacurau, filme de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é sobre muita coisa, inclusive sobre a morte, seus rituais e o impacto disso numa comunidade fictícia localizada no oeste pernambucano. Já nos primeiros minutos do filme, nos deparamos com um caminhão pipa que carrega água potável destruindo caixões de madeira caídos na estrada, um corpo e um caminhão que carrega caixões tombado e cercado de pessoas pegando a carga. A morte ronda Bacurau. Ela está próxima. Esse é o aviso e ele funciona. Tudo aquilo que se relaciona com a morte e seus símbolos é encarado pela nossa sociedade como um mau presságio, ainda que morrer seja parte indissociável da vida, e está ali nas primeiras cenas.

Na cidade, a morte já se faz presente. Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), 94 anos, está sendo velada em casa, com parentes, amigos e conhecidos ao redor. A morte está próxima, é triste, mas é encarada ali como um momento de despedida, homenagem e reforço de laços afetivos. Diferente do corpo anônimo na estrada, que é visto de maneira distante e triste simplesmente. Ainda que ambos sejam colocados como algo inevitável que faz parte da vida.

O ritual de morte de dona Carmelita é, apesar de tudo, tranquilo. Tirando a interferência de Domingas (Sônia Braga), outra idosa, que parece sentir muito aquela partida. Talvez a idade da falecida contribua para isso. Afinal, a velhice avança e a proximidade com a morte passa a ser lembrada o tempo todo pelas próprias pessoas e também por quem próximo. Talvez a personagem, com sua sabedoria, já tivesse preparado o terreno para aquilo. O bolo que Carmelita faz antes de morrer e Teresa (Bárbara Colen), sua neta, come com a irmã após o velório parece dizer isso. Ela deixa afeto para quem ainda ia chegar e não poderia ter a chance de se despedir dela em vida.

Quase toda a cidade participa da celebração/ritual de morte, nos mostrando que a falecida é uma espécie de matriarca e referência. Tem música cantada em coro junto com o violeiro da cidade que lidera o canto, tem caminhada, tem enterro e lenços brancos sendo balançados. Ali, todos, por mais diferentes que sejam, parecem dividir a saudade que sabem que vão ter. O luto é compartilhado.

Cena do filme

Comunidades não emergem do nada, elas são construídas a partir de laços, trocas, tempo e até mesmo conflitos. Dona Carmelita, junto com o museu de Bacurau, representa a união a partir desse compartilhamento e a história do grupo que forma aquela cidade e que começa a ser apresentado para o espectador a partir do velório. Há algo que une todos ali, a história de uma pessoa ou de uma população, e é isso que faz Bacurau existir. Rituais de morte, principalmente quando são vividos e preparados de forma coletiva, costumam ser uma forma de preservação da memória de alguém, de um contexto, de uma família e até de um povo e isso importa tanto para quem fica porque é uma forma de dar continuidade ao que foi partilhado.

Os falecimentos, no filme até então, se apresentam como parte da vida cotidiana. Acidentes acontecem, velhos morrem, mas nos detalhes se percebe que viver ali é resistir a um destino específico fruto de um abandono e de uma época. O Estado não se apresenta como deve, aquelas pessoas estão desamparadas. Restaram a elas apenas o apoio uma das outras. A morte, nesse tempo que a gente só sabe que é depois de agora, está explícita na tevê. Há execuções públicas no Vale do Anhangabaú. De fato, ela ronda Bacurau e também o país.

Em Bacurau, se luta contra a morte todos os dias. Seja pela falta de água potável, de remédios, de vacinas ou de comida. A morte morrida, essa causada pela falta ou pela natureza mesmo, também pode ser política, mas a morte matada que surge posteriormente deixa evidente o quanto aquele povo é considerado invisível. Quem nasce em Bacurau é gente, mas parece que só quem mora lá sabe disso.

Quando Teresa, frente ao caixão da avó, diz que dona Carmelita é a segunda morta que viu no dia, há um estranhamento que surge talvez do quanto aquilo parece cotidiano e ao mesmo tempo fora do lugar. Teresa vê, numa alucinação, o caixão da avó transbordar em água. A morte, por mais cotidiana que seja, parece estar mais presente do que deveria mesmo quando a gente ainda não conhece o que há de vir. A água transborda ali, mas a gente não sabe o que isso significa ou se é para significar algo. Seria a morte e o sangue dos que vão embora? Seria um símbolo para a vida e o afeto que cercam aquele corpo? Seriam lágrimas de quem sabe o que vai vir? Seria a água da represa voltando a jorrar?

Quando os corpos mortos por tiros começam a surgir, o mau presságio é confirmado. Numa cena, Pacote/Acácio (Thomás Aquino) encontra os cadáveres de dois de seus amigos, coloca-os dentro no carro sentados, ainda ensaguentados e sujos e, durante o trajeto, explode de raiva numa conversa sem respostas. Aquela perda não era esperada. Ele entende que ela poderia ser evitada, sente culpa por ter pedido a eles para irem até aquele lugar em que foram executados e a raiva, parte indissociável do luto, é a resposta dele para aquela dor.

A cidade chora seus mortos, ainda que em choque e se preparando para se proteger. Antes do encontro da cidade com os assassinos, os rituais de morte do menino, dos homens e da família acontecem junto a uma outra espécie de ritual, o de preparo para uma batalha. Enquanto um buraco, que a gente ainda não sabe para que serve ,é cavado, tem capoeira, tem reza, tem desespero, busca pela prostituição e também conexão e contato. A proximidade com a morte é o que guia ambos os rituais e cada um reage à sua maneira.

Bacurau quer viver em paz, mas sabe reagir para proteger os seus e manter a comunidade viva. As vestes sujas de sangue dos corpos mortos de sua população se tornam bandeiras de luta. A escola, cravejada de balas e lotada de gente escondida debaixo de carteiras, também reage. O museu também é um centro de resistência ao ataque. As engrenagens da cidade, com toda sua gente, inclusive aqueles que um dia já rejeitaram aquele povo e aquele lugar, se movimentam para impedir o massacre de seu povo.

Museu é lugar de história de gente que já morreu faz tempo e representa o passado. Escola é lugar de gente que acabou de chegar no mundo, local onde o futuro se desenha. Nenhum deles está protegido de quem quer ver sangue, como sabemos ao ler as notícias do Rio de Janeiro ou dos EUA, mas no filme esses lugares, considerados tão vulneráveis e que costumam ser alvos de tentativas de controle e descaso, se tornam focos de resistência por serem espaços em que se celebram e preservam a coletividade e a memória. Nesse sentido, faltou, na minha opinião, maior participação feminina na violência e menos hiperssexualização. Apesar de algumas personagens femininas serem parte ativa da resistência, usarem armas e se posicionarem, os protagonistas da ação — e, na prática, até do filme — são homens, ainda que Lunga (Silvero Pereira) não se encaixe bem nesse lugar masculino e a comunidade, substantivo feminino, seja o centro da história. As mulheres, que são colocadas pela obra como importantes mantenedoras da comunidade viva, ficam em segundo plano nessa hora, como se a elas coubesse o papel de serem lideradas ou buscarem sempre as vias do diálogo. Vide Teresa, essa que é filmada como protagonista, mas que o roteiro não a valoriza o suficiente, e Domingas.

As mortes em Bacurau servem como um lembrete de que o Brasil foi construído e ainda o é a partir da violência, mas essa violência foi perpetuada, permitida, ainda que não às claras, e alimentada por quem representa o Estado. E, no caso do Nordeste, como bem expõe o filme, incrementada por sudestinos e sulistas que se consideram superiores a quem vive nessa parte do Brasil, enquanto são tratados como menos gente por quem eles consideram próximos e parecidos com eles. Esse passado — e o nosso presente — repleto de um tipo sangue específico derramado precisa ser considerado sob o risco de vermos a resistência de quem quer simplesmente se manter vivo ser encarada como a real face da violência. Os bárbaros não são os que atacados buscam lutar pela vida e pela sua dignidade, ainda que alguns defendam que histórias como essas sejam contadas assim.

Cena do filme

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Cultura do estupro: o que a reação das pessoas ao Caso Neymar diz sobre nossa sociedade?

Neymar vestindo a camisa 10 da seleção brasileira em campo

Desde que a acusação de estupro contra Neymar saiu na mídia, muito se discute sobre o comportamento da possível vítima. Esse é o modus operandi da cultura do estupro. Especialmente quando o acusado usa o comportamento sexual da mulher como um meio de tentar provar sua inocência.

Mesmo que o jogador seja inocente na acusação de estupro, sua tentativa de defesa pública partiu de estereótipos de gênero, misoginia e de noções bem erradas do que é consentimento. Além de tudo, houve a propagação de imagens íntimas da mulher em questão, o que por si só configura crime e também pode ser visto como uma tentativa de intimidação bem característica do fenômeno chamado de pornografia de vingança. Toda a exposição do caso e da possível vítima feita pelo Neymar, seu pai, Datena e outros evidencia o poder e influência que o atleta tem e como a sociedade legitima que ele o use contra essa mulher como uma maneira de silenciá-la.

A partir desse caso e a reação da sociedade ao que é dito, exposto ou suposto, mesmo sem qualquer veredicto sobre Neymar, temos a chance de debater sobre o que é estupro e combater esses pensamentos que fazem tanta gente considerar que a manifestação prévia de uma certa disponibilidade sexual é necessariamente um impeditivo para que tenha havido abuso e como essa visão colabora com a ideia de que certas mulheres são consideradas estupráveis e outras não.

Para entender tudo isso é preciso se perguntar sobre o porquê das defesas de crime de estupro, profissionais ou feitas pelo próprio acusado, sempre apelarem para essa abordagem em que o foco recai na vítima que é cobrada a se provar idônea o tempo todo.

O estupro é abordado historicamente, inclusive pelo Direito, pela ótica masculina e patriarcal que vê as mulheres como manipuladoras e traiçoeiras quando se trata de sexo, sedução e afins. A ideia de que o valor feminino estava ligado à virgindade alimentava ainda mais essa visão, porque esse seria um motivo que faria mulheres que “cederam à tentação do sexo” mentirem e a possível vida sexual fora do casamento um sinal de que a mulher em questão já seria impura, logo pouco confiável e propensa a fraude. Isso, somado ao fato de que o corpo feminino é considerado propriedade e direito dos homens, sedimentou a prática de colocar a vítima como foco em caso de violência sexual. Isso é tão forte que há quem defenda, ainda hoje, que não existe estupro dentro de casamentos usando o argumento de que esse contrato social e jurídico envolve necessariamente obrigação de sexo.

Quando se coloca uma possível vítima de estupro no centro de um tribunal público em que se discute, principalmente, o comportamento sexual dessa mulher que acusa, a mensagem que se passa é a de que mulheres ativas sexualmente são corpos disponíveis, logo impossíveis de serem estupradas.

É preciso reiterar que o fato de dizer sim uma vez não é sinônimo de um sim eterno ou que esse sim atinge todas as práticas sexuais possíveis. Sexo é algo que parte de interesse, respeito e combinados mútuos. Sua palavra-chave é consentimento e ele pode ser retirado a qualquer momento e ainda assim precisa ser respeitado. Topar transar não é topar fazer tudo que o outro quer. Topar sexo agora não impede a pessoa de mudar de ideia 10 minutos depois.

A noção deturpada de consentimento faz com que mulheres se sintam confusas sobre terem ou não sofrido violência, principalmente em casos de date rape e estupro marital. O imaginário social do que é estupro ainda é o da vítima pega de surpresa e com extrema violência em um beco escuro de noite, o que torna difícil o reconhecimento do crime de primeira por quem vive situações que envolvem paquera, interesse e envolvimento ou por quem não se vê no papel de vítima ideal por já ter transado ou querido transar com o agressor.

Estamos todos acostumados demais com a desumanização das mulheres, o que dificulta que a gente olhe para possíveis vítimas femininas de homens, especialmente aqueles poderosos e públicos envolvidos em casos de date rape, com empatia. As estranhezas que podemos enxergar em um relato podem ser sintomas de estresse pós-tramático ou parte de um processo de distanciamento e negação, por exemplo. Quando se trata sobre estupro, podemos, mesmo sem querer, nos amparar em noções distorcidas pelo machismo e misoginia do que se é ou não violência sexual e de quem pode ou não ser vítima dela.

Esse texto não é sobre condenar ou absolver o Neymar socialmente, é, principalmente, sobre como nossa sociedade encara a violência sexual e o corpo das mulheres. Mesmo que esse caso acabe se tornando um exemplo raríssimo de falsa acusação, a reação da sociedade perante o tribunal sexual montado pelo Neymar diz muito sobre o mundo que vivemos e o que é e como se manifesta a cultura do estupro.


Obs: Esse texto surgiu a partir de dois tweets que fiz para o Ativismo de Sofá e foi publicado, originalmente, em minha página pessoal no Facebook. Se você gostou dessa leitura, deixe suas palmas, faça um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Facebook e Twitter.

O lugar da mulher para a ofensiva conservadora

No primeiro dia da legislatura dos deputados federais, Márcio Labre (PSL-RJ), um estreante, propôs um projeto de lei que dispõe sobre a proibição do comércio, propaganda, distribuição e implantação pela Rede Pública de Saúde de micropílulas, pílulas do dia seguinte, implantes anticoncepcionais e DIU com a justificativa de que tais produtos são abortivos*.

A atitude de Márcio Labre é parte de uma ofensiva conservadora que encontra no legislativo um terreno fértil para prosperar. Ele agora se soma a um grupo expressivo de deputados que usam a bandeira anti-aborto para promover seus ideais de mulher e religião com um projeto que consegue ser ainda mais agressivo que os famigerados Estatuto do Nascituro e a PEC 181/15, conhecida como “Cavalo de Troia das Mulheres”. O deputado, ao tentar proibir o acesso a contraceptivos, leva ao extremo a bandeira do controle do corpo das mulheres. A criminalização do aborto não é o suficiente, Márcio quer restringir ainda mais a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade com uma limitação absurda relacionada a qual método contraceptivo elas poderão escolher usar. Com o PL 216/2019, o parlamentar busca dificultar que mulheres detenham o poder de tentar evitar uma gravidez de forma ativa.

A camisinha não é um dos itens listados por ele, mas seu uso costuma estar atrelado a uma cooperação masculina. Apesar da camisinha ser o contraceptivo mais indicado, já que também protege contra as doenças sexualmente transmissíveis, seu uso sofre resistência por parte de homens, principalmente dentro de relacionamentos, o que torna os contraceptivos como a pílula do dia seguinte e o DIU essenciais para que mulheres possam ter um controle maior sobre seus corpos e possíveis gravidezes. O anticoncepcional padrão também não foi listado pelo autor do projeto, porque ele não o considera “micro abortivo”, mas as restrições elencadas no PL já impactariam bastante os direitos sexuais e reprodutivos de quem possui útero e capacidade de engravidar. A escolha feminina de como se prevenir de uma gravidez seria muito afetada, principalmente das mulheres que não podem utilizar o anticoncepcional padrão por causa do risco de trombose e outras doenças.

A maioria dos projetos de lei e emendas constitucionais nesse viés buscam dificultar ou mesmo proibir o aborto nos casos legais (estupro, risco de morte e anencefalia). Com Labre não foi diferente. Além do projeto que tem vários contraceptivos como alvo, ele também propôs o PL 260/2019, que diz em seu primeiro artigo que:

“ É proibido o aborto de fetos humanos, pelas próprias gestantes ou por ação de terceiros, em qualquer hipótese, independentemente do estágio da gravidez ou do tempo de vida do nascituro, admitida somente, por única exceção, a possibilidade de abortar quando a continuação da gravidez trouxer comprovação e inequívoco risco de vida para a gestante.”

No primeiro dia de legislatura, o estreante do PSL deixou claro que a mulher, para ele, é um mero receptáculo ao se colocar contra o aborto em caso de gestação fruto de estupro e buscar a proibição da pílula do dia seguinte, medicamento não abortivo, que impacta diretamente na garantia legal de amparo médico e psicológico para vítimas de estupro. Entre outras coisas, a lei 12.845/13** prevê a pílula do dia seguinte como parte do atendimento de vítimas de violência sexual com o objetivo de evitar que haja gravidez e a pessoa tenha que passar pela decisão de abortar ou não.

Os projetos de lei do parlamentar, caso sejam aprovados, buscam impor a gravidez indesejada e fruto de estupro a todo custo. Nem mesmo a profilaxia de gravidez seria um direito. Com isso, o direito do estuprador de se reproduzir estará acima da integridade e vida da vítima. Márcio quer fazer de tudo para obrigar mulheres a gestarem, independente se foi estupro ou não.

O controle do corpo da mulher e a caça de seus direitos reprodutivos é parte essencial de qualquer projeto de governo que tenha como base a religião, os bons costumes, o conservadorismo e o autoritarismo. A ficção nos mostra isso: “O conto de Aia”, escrito por Margaret Atwood, por exemplo, é uma história sobre um regime autoritário que se baseia e se sustenta no controle dos corpos femininos.

Isso se dá não só porque alguns acreditam que fazem o bem com suas posturas “pró-nascimento” e misóginas, mas porque atacar as liberdades femininas é sempre um caminho mais fácil para quem quer manter e ampliar seu poder. O machismo do mundo de hoje ainda clama por qualquer coisa que busque controlar as mulheres. Políticos interessados em popularidade e polêmica usam essas pautas, principalmente as que tem mais apelo como o aborto, para se colocarem como paladinos da justiça e se afirmarem perante a sociedade. Com base nisso, podem, por exemplo, justificar inércias, omissões, corrupções e votos contra o povo com o argumento de que o foco precisa ser pautas como essas.

Restringir a autonomia das mulheres é bandeira vista como necessária por uma parcela de pessoas, especialmente homens cis, que se definem como capazes a partir dessa ideia de que a mulher existe para complementar os homens. Concepção que serve como base para toda a divisão sexual do trabalho.

Os apoiadores de homens como Márcio Labre encaram esse tipo de projeto político como a chance deles voltarem a terem empregos bacanas, conseguirem sustentar uma casa, serem detentores de um pátrio poder que atinge mulheres e filhos. Eles querem o controle estatal para garantir que eles a obediência e submissão de mulheres e crianças.

O controle da capacidade reprodutiva feminina, por mais que seja pintado apenas como uma pauta moral, está relacionado com economia, emprego, mão de obra e é uma bandeira que faz tanto sucesso porque promete manter certos privilégios. O desejo de domínio do capital reprodutivo se dá por causa da necessidade de haver reprodução e cuidado da prole para manter certas estruturas, inclusive econômicas. A reprodução é tratada como algo além do desejo individual da mulher, ela tem uma função numa sociedade como a nossa. A transmissão da propriedade, por exemplo, se relaciona com filhos e esposo.

Quem defende isso vê o passado como meta a ser buscada. A bancada da Bíblia — e também da Bala e do Boi — usam a frustração com o presente e definições culturais da função de homens, mulheres, brancos, negros, indígenas, terra e propriedade, para conquistar votos e poder. Eles contam com os ressentidos com o avanço de pautas feministas para encher os bolsos.

O projeto de lei do deputado conservador da vez é um elemento de uma ofensiva que busca determinar que cabe às mulheres a função primordial de parir, cuidar, satisfazer e aos homens todo o resto. Esse resto, como tarefa masculina, é melhor pago, tem status profissional, trabalho formal, enquanto o que a mulher faz é vocação, destino biológico, milagre, bondade, sacrifício ou mesmo redenção de uma vida de pecados próprios ou de Eva ou Lilith.

Com grande parte do Legislativo e do Executivo combinados em promover um projeto político de promoção de desigualdade entre homens e mulheres, pautas como a disparidades salarial, desemprego e dificuldade para retornar ao mercado de trabalho após ter filhos, falta de creches públicas, e, principalmente, a tripla jornada de trabalho seguirão sendo colocadas como pouco importantes, apesar de serem tão significativas. A maternidade precisa ser obrigatória e carregada de sacrifícios e perda de autonomia para esses que dizem defender tanto a família.

O Brasil caminha a passos largos para se tornar um país teocrático e essa trajetória conservadora é uma busca pela manutenção de um status quo e de um poder que tem sua expansão como algo naturalmente autoritário. A consequência do avanço de pautas como essa é ainda mais mortes de mulheres na clandestinidade. O projeto político que ganha cada vez mais voz no país negligencia a vida, a saúde, a autonomia e a subjetividade de mulheres. A maternidade não pode ser compulsória.

*Micropílulas, DIU, implantes anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte não são abortivas. Sendo a última vítima de ataques anticiência rotineiros, apesar desse medicamento apenas adiar a ovulação e evitar que o útero se prepare para receber um óvulo fecundado.

**Há várias pessoas no Congresso Nacional e fora dele que defendem que a pílula do dia seguinte é abortiva e querem impedir o uso dela. Magno Malta, Eduardo Cunha, Pastor Eurico, Pastor Marco Feliciano, Bolsonaro e outros defendem a revogação da lei 12.845/13, a lei que garante atendimento médico e psicológico para vítimas de estupro, com base nesse argumento. Ou seja, caso o PL 6055/13 passe, não há chance de veto.

*** Esse controle tanto falado em todo o texto é motivado pela busca pelo domínio do capital reprodutivo.


Observação: no final da tarde do dia 06/02, o deputado apresentou requerimento para retirada do PL sobre a proibição de diversos contraceptivos, mas disse que no futuro apresentará outro projeto, dessa vez mais fundamentado, com finalidade de informar que a minipílula, a pílula do dia seguinte, o DIU e os implantes anticoncepcionais são “micro abortivos”. Ou seja, essa retirada é apenas estratégica. O outro PL, também absurdo, segue sem retirada.


No dia 12/02/2019, o Senado desengavetou o projeto de emenda constitucional 29/2015. A PEC em questão busca acrescentar ao artigo 5º da Constituição que a vida é inviolável desde a concepção, assim como a PEC 181/15 que ganhou destaque ano passado queria fazer. Essa mudança constitucional, se for feita, pode amparar a criminalização do aborto em qualquer situação. Esse é mais um exemplo recente de como esses ataques são parte de um projeto político de poder que tem ganhado cada vez mais força no país.


Em junho de 2019, Projeto de Lei do vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) ganhou as manchetes brasileiras por propor a internação compulsória de mulheres com “propensão ao abortamento” e uma série de medidas, como obrigar a mulher a ouvir o coração do feto bater, para tentar impedir abortos nos casos legais. Esse PL é claramente inconstitucional, mas, ainda assim, merece ser criticado e exposto como a política de controle de corpos que é.


Em setembro de 2019, o Conselho Federal de Medicina, em uma nova resolução, definiu que gestantes não possuem o direito à recusa terapêutica: “A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.”

A resolução apresenta perigo por colocar os corpos das mulheres grávidas como tuteláveis e justificar isso usando o feto, como se a mulher que gera fosse uma mera incubadora, e assim abre precedente para violência obstétrica “justificada”. Saiba mais aqui.

Em agosto e setembro de 2020 um caso de aborto legal de criança gestante por estupro se tornou emblemático e foi manipulado e atacado pelo governo, com direito a posterior edição de portaria para restringir o direito ao aborto legal na prática. Mais sobre aqui.

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É preciso deixar a boa menina para trás

Canva

Quando estive em Galinhos, as águas estavam tomadas por pessoas praticando kitesurf. Do mar ou da areia, víamos homens e mulheres testarem os efeitos da gravidade, da ventania e da água em seus corpos.

Ao meu lado, também como espectadora, havia uma menina de uns sete anos completamente fascinada pelas manobras. Ela comentava cada uma delas com a mãe.

Após um tempo de observação marcado por comentários bem tagarelas, a mesma menina, com surpresa e muita empolgação na voz, observou que havia mulheres no meio do grupo esportista. Impressionada, ela perguntou sobre isso para sua mãe que respondeu que não há nada que impeça mulheres de praticarem kitesurf e completou dizendo: “Você poderá fazer, se quiser, quando crescer um pouco.”

Enquanto a cena se desenrolava ao meu lado, eu me perguntava: “Quem seria eu hoje se nessa mesma idade tivesse visto mulheres comuns fazerem coisas extraordinárias com seus corpos e ouvido do mundo que eu poderia fazer o mesmo?”

Apesar de eu ter pelo menos mais vinte anos que essa menina, reconhecer mulheres no meio do grupo no mar também me trouxe empolgação, satisfação e, confesso, certa surpresa.

Apesar de incômoda, essa surpresa foi inevitável, já que no passeio de buggy, feito alguns dias antes, todos os motoristas eram homens. E, dias depois, quando andei de quadriciclo, foram os homens que dirigiram as máquinas enquanto as mulheres se aventuravam apenas na garupa.

O passeio de quadriciclo tinha uma parada para troca de motorista e nesse momento algumas poucas mulheres assumiram o controle de seus respectivos veículos. Eu não fui uma delas.

Por mais simples que fosse, por algum motivo, eu não me senti capaz de guiar. Não sei dizer direito o porquê disso, talvez a minha altura tenha me feito questionar a minha capacidade, eu não sei, mas me lembro de ter tido a sensação de que eu ia falhar, me envergonhar, atrasar o grupo e, de quebra, queimar o filme das mulheres.

Eu tenho carteira de motorista há quase dez anos, mas não me senti capaz de participar desse passeio como motorista, assim como nunca me sinto pronta para dirigir em Belo Horizonte e adio constantemente qualquer tentativa.

Minha mãe sempre dirigiu, mas quando meu pai estava no mesmo carro, era ele que assumia o volante e isso é um padrão que eu reconheço em várias famílias. Amigas minhas, mesmo as da minha idade, ainda agem assim até mesmo com seus próprios carros. Muitas das minhas tias sequer dirigiram alguma vez na vida, enquanto seus maridos sempre o fizeram. Mesmo antes de terem seus veículos ou habilitação, eles pegavam emprestado de alguém e guiavam sem pensar muito naquilo que faziam.

No grupo do passeio, o padrão era o mesmo. As mulheres eram todas acompanhantes. Nenhuma era motorista principal e isso me fez pensar bastante em como mulheres experimentam o mundo e não descobrem ou não reconhecem suas potencialidades por terem sido condicionadas a uma passividade que se baseia no apagamento de seus próprios desejos e curiosidades.

Nessas situações, eu sempre questiono: “Bastaria uma para que outras se sentissem encorajadas a tentar?” e a resposta costuma ser “Não sei” ou mesmo “Provavelmente não”, porque a gente sempre ouve que as boas motoristas, as muito inteligentes, as aventureiras e afins são exceções e percebemos que um erro nosso é sempre tratado como prova inequívoca da falta de capacidade de nosso gênero. Além disso, é preciso entender que algumas mulheres, senão a maioria, são desencorajadas pelos próprios companheiros a assumirem atividades como essas.

Em sete dias de viagem, eu tive três experiências que me fizeram pensar nas questões de gênero que permeiam a vida das mulheres mesmo quando elas saem de seu lugar de sempre e buscam viver coisas diferentes.

No quadriciclo e no kitesurf, as observações partiram da minha inatividade e na percepção do impacto psicológico da visão social das atividades femininas e masculinas em mim e nas mulheres ao meu redor. Já na terceira experiência, o meu local é o de uma mulher que participa da atividade aventureira como protagonista.

Eu simplesmente fui sem nem pensar duas vezes numa tirolesa e foi ótimo, mas isso acabou se tornando uma questão quando eu fui assistir ao vídeo feito no momento e me deparei com vozes masculinas berrando para mim “pode gritar, mulher”.

Não senti nenhuma vontade de gritar, sequer frio na barriga. A sensação foi de tranquilidade e prazer. Com os olhos bem abertos e míopes, vivi a experiência como se pairasse no ar entre água, vento e duna. Nem ouvi o berreiro masculino que depois descobri que existiu.

Quando meu namorado foi, logo depois, ninguém esperou que ele gritasse, quis dar permissão para ele fazer isso ou assumiu que ele estava morrendo de medo.

Todo mundo deveria poder gritar, se está com medo ou sente prazer nisso, mas a experiência feminina parece ter que aparentar ser de pânico ou ser assim de fato.

O medo e a insegurança são colocados como femininos e, de tanto ouvir isso, a gente se convence de que essa é a ordem natural das coisas mesmo quando o assunto não é estupro, violência doméstica e afins. Nos querem assustadas em todas as esferas. Até mesmo na hora de vender um passeio de aventura durante uma viagem. Mesmo isso sendo economicamente meio burro.

Quando eu, mais uma vez, não consegui viver a experiência
— tola, talvez, como agora eu vou saber? — de dirigir um Quadriciclo, eu me senti uma impostora. Por mais que eu fale que lugar de mulher é onde ela quiser, eu ainda sinto o peso do que vi e ainda vejo ao meu redor.

As mulheres ainda são vistas como passageiras. Não podem guiar suas próprias vidas. São acessórios que seguem o principal, o homem. Eles sabem de si e de suas companheiras e a gente foi ensinada a acreditar que essa é a ordem natural das coisas e que aceitar isso é ser uma boa garota.

A boa garota não se suja de areia quando curte uma praia, hidrata seus cabelos para que eles não fiquem quebradiços e faz questão de evitar molhar os fios quando entra na água. Ela não anda só de biquíni pelo calçadão. Sempre está de bolsa e canga. Ela sorri, fala pouco, baixo, se desculpa toda hora e não sabe ser assertiva. Ela está com a depilação em dia e as unhas bem cortadas e feitas. Ela aceita passiva seu lugar no mundo e acompanha seu homem bem bonita. Ela não existe, é apenas um ideal que nos ensinaram a buscar.

Ainda na sexta série, me lembro de anotar nas minhas agendas frases que diziam que as más garotas são as que saem do lugar, se divertem, são livres e sabem viver. Desde então quis ser uma dessas, mas muitas vezes tive medo das consequências desse desejo. Até porque, por ser pequena, branca e “frágil”, eu nunca me senti apta a caber nesse outro estereótipo que vez ou outra se apresentava de forma tão atraente, apesar de tudo.

A má garota é também a que precisa ser corrigida. É a que ouve que precisa fechar as pernas ao sentar e a que é xingada de respondona ao questionar. Se ela se machuca porque saiu correndo para fazer algo com os meninos, ela ouve que deveria ter ficado quietinha em casa.

Fui ensinada a ser uma boa garota, como todas nós fomos em algum nível, e achei que tinha rompido com isso. Descobri que não, apesar do meu esforço em desconstruir isso desde a adolescência.

Eu ainda sou uma dessas que, mesmo durante uma viagem maravilhosa, se incomoda com o que os outros vão pensar de suas unhas dos pés que estão grandes demais porque cresceram estranhamente nos últimos dias. Eu ainda sou uma dessas que tem uns devaneios de aventuras que ficam sempre no plano das ideias, porque, afinal, o mundo lá fora é perigoso demais para uma mulher. Eu ainda sou uma dessas que não consegue abandonar essa persona que sequer chega a tentar porque sabe que todo erro seu contará contra si e contra outras. Eu ainda sou uma dessas, que fala que não consegue sem nem ao mesmo tentar.

Virginia Woolf escreveu sobre a necessidade da mulher matar o anjo do lar para que possa viver de forma saudável. O anjo do lar é a neutralização da mulher enquanto indivíduo, um fantasma que nos assombra com finalidade de nos lembrar que devemos ser boas garotas e servir aos homens. Ele nos impede de descobrir nossas potencialidades porque coloca o desenvolvimento pessoal e as experiências da vida das mulheres como secundários. Esse anjo maldito assume que o que podemos fazer melhor é apoiar um homem, através de cuidados, serviços domésticos, amor e afins, porque ele sim tem potencial para fazer alguma coisa realmente significativa. Esse anjo vive dentro de nós e é fruto dessa educação que busca formar boas garotas.

Que antes das próximas férias, eu consiga fazer minha boa garota interior ir para o inferno junto desse anjo pervertido. Já passou da hora de eu e todas nós entendermos que podemos ser protagonistas de nossas próprias vidas. Entre eu e a minha melhor versão, ainda há um anjo do lar vivo e uma garotinha que quer obedecer os adultos em suas tolices só pra ganhar sorrisos.


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“Falsa acusação”: a história de Marie é um exemplo do que é a cultura do estupro

Acervo pessoal — ilustrações feitas por mim — Adquira seu exemplar aqui.

Em 2011, durante um fórum sobre segurança e prevenção de crimes na Universidade de York, Toronto, um policial disse que as mulheres deviam evitar se vestir como vadias para não serem vítimas de estupro. A fala causou incômodo e foi contestada publicamente através de um ato em repúdio que contou com a participação de 3 mil pessoas.

O caso, graças ao protesto, ganhou o mundo. Mulheres de cidades dos Estados Unidos, Holanda, Portugal, Argentina, Índia, Coréia do Sul, Israel, Colômbia, Chile, México e Brasil também foram às ruas para questionar a forma que os crimes sexuais são tratados pela polícia, pelo judiciário e pela sociedade.

Essa movimentação toda ganhou o nome de “SlutWalk” (“Marcha das Vadias” no Brasil) e se incorporou ao calendário de luta de diversos lugares. O nome e alguns slogans do movimento receberam críticas — bem válidas, por sinal — de muitas feministas, mas é inegável que essa pauta ter tido esse efeito viral diz muito sobre o mundo que vivemos e o quanto a cultura do estupro precisa ser discutida e combatida mundialmente.

Também em 2011, Marie recebeu a notícia de que seu estuprador tinha sido preso após dois anos, sete meses e uma semana desde sua denúncia. Denúncia que foi considerada falsa e fez ela ser processada pelo Estado.

Marie confundiu detalhes de seu relato. Marie reagiu ao estupro de forma diferente do que algumas pessoas esperavam. Marie foi intimidada pela polícia que deveria apoiá-la e interrogada com um método usado para obter confissões de criminosos e acabou voltando atrás sobre a acusação que tinha feito. Ela disse que mentiu, mas dias depois tentou confirmar a denúncia novamente. Não a ouviram e ela foi denunciada por falsa comunicação de crime. Todas as provas do caso dela foram descartadas por isso.

“Falsa acusação — uma história verdadeira” nasceu a partir de um artigo vencedor do Prêmio Pulitzer de jornalismo investigativo e é um livro que aborda a cultura do estupro a partir da história de Marie e de outras vítimas de Marc O’Leary.

O trabalho feito pelos jornalistas T. Christian Miller e Ken Armstrong se divide em duas frentes: contar a história de Marie abordando o descaso que ela sofreu e os impactos disso em sua vida e expor como esse estuprador serial foi pego através de um trabalho investigativo e cooperativo liderado por duas detetives: Stacy Galbraith e Edna Hendershot.

Durante toda a obra, os autores apresentam dados, falas de especialistas e informações históricas sobre a abordagem do crime de estupro nos Estados Unidos.

Nossa sociedade, assim como a estadunidense, foi construída pautada no que homens falam sobre mulheres e, por muito tempo, o que eles disseram nos pintou como falsas, traiçoeiras, manipuladoras. Para eles, mentir sobre um estupro era o que vadias faziam após ceder à tentação do sexo. Séculos se passaram desde o primeiro homem a falar isso publicamente enquanto jurista nos EUA, mas a dúvida sobre quem é e o que quer a vítima de um estupro ainda prevalece quando a denúncia é feita.

Os jornalistas também relacionam a luta das mulheres com algumas conquistas básicas obtidas, enquanto expõem o quanto ainda é preciso mudar institucionalmente e culturalmente para que os números de subnotificação, processos e condenações se modifiquem.

Os mitos sobre estupro e sobre como mulheres agem e são na vida cotidiana ainda impactam em como elas são tratadas em todas as esferas de um processo legal e precisam cair por terra. Expor casos como o de Marie faz parte dessa luta, porque o silêncio que cerca a violência sexual torna as vítimas meras sombras e isso as coloca como um alvo fácil de desumanização.

“Tem algo estranho nesse caso” anda junto com o silenciamento histórico que acompanha as sobreviventes de estupro. Uma conversa franca sobre violência sexual é necessária para combater a manutenção desse imaginário popular sobre a vítima e o estuprador e a quebra do silêncio é parte desse processo de construção de uma nova visão sobre consentimento, violência, vítima e agressor.

A desumanização também está em assumir que todas as vítimas agirão de uma forma específica e duvidar de todas que não respondam ao que se espera conforme o senso comum. As estranhezas que podemos enxergar num relato fazem parte, muitas vezes, de como o cérebro reage ao trauma: o choque causado pela violência afeta a memória e isso dificulta que a narração do acontecido seja linear, por exemplo. As reações de distanciamento do fato podem ser apenas a forma que a pessoa encontrou para lidar com o que passou.

Marie foi estuprada por um desconhecido que invadiu sua casa, mas a maioria dos estupros são cometidos por conhecidos da vítima. Em casos em que a denúncia recai em ex-namorados, colegas e afins, a credibilidade de quem denuncia é ainda mais baixa. Isso nos faz pensar em como o problema é ainda maior do que o exposto em “Falsa acusação”.

A história contada no livro funciona como um alerta sobre o quanto a cultura do estupro está impregnada em nossa sociedade e como ela colabora para a revitimização das pessoas, especialmente mulheres, que sofreram violência sexual. Uma mensagem nada inovadora, ao menos no meio feminista, mas que precisa ser reiterada enquanto for necessário.

Seis anos separam a Marcha das Vadias do #MeToo e as discussões sobre culpabilização da vítima, consentimento e misoginia institucional seguem buscando uma transformação que virá a partir da informação, do debate e da contestação do machismo e da misoginia.

Que a gente quebre o silêncio e conteste o tratamento que nos é dado ao denunciar casos concretos ou falarmos sobre o assunto. Que a raiva que sentimos ao conhecer casos como o de Marie nos mova para a mudança.


Tradutora da obra: Daniela Belmiro.


Observação: A história do livro foi adaptada em formato de série pela Netflix. Unbelievable é o nome da obra audiovisual em questão.


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Casa limpa

A casa cheira a desinfetante. O cheiro é tão forte e a sala está tão organizada que nem dá para imaginar que ontem Flávio ainda engordurava as paredes, os azulejos e os demais móveis com suas mãos sujas de frango assado e cerveja, enquanto eu cozinhava e servia seus amigos.

O segredo para um chão tão limpo envolve mais que hábito e uma lista de produtos e marcas, abrange também ter uma motivação que torne aquilo uma tarefa que você faça com prazer. Tornar esse espaço um novo lar é o que me incentiva agora.

Daqui uns dias as coisas estarão fora do lugar e a casa vai aparentar ser habitada de novo, dessa vez só por mim, esposa desesperada pela volta do amado, e todo mundo, inclusive eu, vai descobrir que Flávio foi encontrado morto dentro de seu carro no extremo oposto da cidade após 30 horas de busca.

Vão me trazer a notícia em casa e eu vou pedir para sentar, fazer a policial me trazer um copo de água com açúcar e, aos prantos, contar mais uma vez que me sinto culpada, porque ele saiu bêbado atrás dos amigos após uma breve discussão comigo.

Arrasada, vou dizer que eu não consigo imaginar alguém que quisesse matá-lo. “Ele ficava meio valentão quando bebia, deve ter caçado briga com quem não devia”, eu direi, enquanto deixo as marcas do meu pescoço falarem por si mesmas.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroSegredo. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Sweek, Wattpad, Tinyletter e Instagram.


Até que a morte nos separe

Canva ❤

“Até que a morte nos separe” foi a frase que finalizou os votos do meu casamento. Eu queria tirar esse trecho, por achá-lo mórbido, mas Renan fez questão de mantê-lo. “O que Deus uniu só acaba quando Ele quiser”, disse o homem que um dia amei com a anuência de um padre.

A morte veio nos separar anos depois. Renan morreu após comer camarões salteados na manteiga. Esse prato foi o que dividimos quando nos conhecemos. Nessa época, eu ainda podia me esbaldar. Em camarão ou em qualquer outra coisa. Depois, passei a ter uma alergia severa desse alimento e uma vida restrita a dois quartos, um banheiro e uma cozinha.

Renan me obrigava a preparar essa iguaria e isso era só mais uma das coisas que ele me forçava a fazer. O camarão salteado na manteiga não era um prato que ele consumia por romantismo e nostalgia, era somente parte de mais uma de suas ameaças. Enquanto comia, ele dizia: “Se eu quiser, te faço engolir esse pedaço, vadia”, e eu pensava que, um dia, ele terminaria sua refeição me vendo estrebuchar na sala de jantar até morrer.

Quando ele caiu morto, logo após o almoço, sorri pela primeira vez em anos. Não achei que esse dia chegaria. Pelo menos, não dessa forma. A morte sempre cercou nosso casamento e tudo indicava que eu iria primeiro e pelas mãos do meu então marido. Mas, entre nós, fui eu que sobrevivi. O que Deus uniu, eu separei com vidro triturado.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroDia. Posteriormente, ele foi eleito um dos finalistas no concurso SweekStars2018.


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Hortifrúti

“Trinta ovos graúdos por dez reais” disse uma voz grave, rouca e mecânica. Me interessei, mas não parei por saber que teria que voltar para casa se comprasse algo e assim a caminhada acabaria ficando para outro dia.

Não dei nem três passos e ouvi “Temos batata, cebola, alho e manjericão”. “É, dá pra evitar uma ida ao supermercado”, pensei e fui procurar o carro de som. Não havia nenhum. “Maracujá baratinho”, a voz dizia enquanto eu andava pelo quarteirão sem achar qualquer estabelecimento aberto. Fui, então, atrás de alguma barraquinha, ambulante, ou qualquer coisa do tipo e não encontrei nem feirinha e nem vestígio de um homem com um megafone.

A voz agora anunciava batata baroa, ovos de codorna e tomatinhos por um preço nunca antes visto, mas eu já não queria mais saber. Segui o meu caminho, mas mesmo depois de três quarteirões, eu ainda ouvia o anúncio das promoções. E, de novo, não havia nada que indicasse de onde vinha o som ou onde estava a comida.

Tem quem comece a ouvir zumbidos um dia e passe a escutar esses sons o resto da vida. “Será esse o meu caso?”, cogitei enquanto refletia se os preço dos ovos nesses anúncios mentais continuaria o mesmo ou se modificaria por causa da inflação.

Corri para fugir desse pesadelo e, ao chegar na porta de casa, finalmente deixei de ouvir que as bananas pratas estavam no ponto.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroPorta. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Wattpad, Tinyletter e Instagram.


Porvir

é lei
dizem os papéis
está tudo certo
diz o juiz

não é justo
eu digo
pensando no meu filho

é ilegal
a permanência
é clandestina
a entrada
serei processada

estrangeira,
palavra que me acompanha
deportada,
sentença que me foi dada


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