“O acontecimento” segue acontecendo aqui e agora: o impacto da adaptação cinematográfica do livro de Annie Ernaux numa leitora brasileira

Cartazes do filme – Confira o trailer aqui.

As memórias do angustiante verão francês que Annie Ernaux viveu em 1963 e só foram escritas mais de trinta anos depois ganharam um novo formato ao serem transformadas em uma obra cinematográfica pelas mãos da diretora Audrey Diwan, da roteirista Marcia Romano e de toda uma equipe repleta de mulheres.

Quando Annie Ernaux escreve sobre o aborto clandestino que viveu tantos anos depois, tempo e memória se misturam ao fato, tornando seu livro também uma busca pelo registro daquilo que a autora viveu em segredo, como outras tantas, francesas ou não. Quando ela decide escrever essa história da forma que fez, crua e quase documental, ela coloca em evidência que a escrita da não-ficção que parte de si é também uma tentativa de adaptação: como fazer das lembranças palavras? É possível capturar os sentimentos dissolvidos nas cenas que conseguimos recordar tanto tempo depois? Qual é o papel de ler e reler o diário daquele ano nisso tudo? Como as palavras que escrevi quando tudo acontecia afetam quem sou hoje? Falar de si é falar de uma época? Escrever sobre a própria solidão é uma forma de se sentir acompanhada nela? E esquecer é também uma forma de morrer? Se sim, então escrever o que lembra é tentar viver além da própria experiência?

Se no livro a solidão, a angústia e o desamparo da personagem durante os três meses de 1963 chamam atenção, enquanto se misturam com o efeito do tempo e a ânsia da tentativa de tornar aquela vivência algo tangível pela escrita, o filme se propõe a tratar apenas do tempo da gravidez indesejada como fato incontornável, concentrando todo o desespero silencioso da personagem só naquilo, sem a reflexão temporal que envolve a recordação.

“O acontecimento” cinematográfico consegue então tornar a escrita memorialística de Annie Ernaux um recorte situacional que se aproxima ainda mais da construção dessa verdade pretendida na tentativa do relato, ainda que as cenas do filme tenham tido modificações pontuais no processo de adaptação e essas mudanças mostrem a presença de outras autoras, atrizes, cenários e a transformação daquilo que foi escrito como memória em ficção.

No filme, acompanhamos a história de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) como quem persegue uma personagem por ângulos intrusos. Nos transformamos em olhos vigilantes pela câmera curiosa, como se fôssemos parte do que torna o aborto buscado pela personagem um crime, uma vergonha, algo a ser acompanhado como fofoca por quem se delicia por saber que conseguiu escapar de estar nesse lugar, que pode ser “só” o de vagabunda que transa antes do casamento ou o de mãe solteira.

Conhecemos a intimidade dessa protagonista como parte do que torna a sua vivência um tabu e uma ilegalidade e isso, junto da atuação de Anamaria Vartolomei, ajuda a construir para o espectador uma agonia silente que mescla uma espera ansiosa por uma possível solução para aquilo que seria o fim de um futuro brilhante, enquanto esse mesmo futuro brilhante parece prestes a desmoronar pelo efeito dessa espera que não se realiza, e o medo dessa solução, se ou quando alcançada, se tornar o fim de qualquer futuro ou quase isso, com a morte, a mutilação ou a prisão.

O interdito é trabalhado também com a tensão sexual que insiste em se manifestar o tempo todo no universo da personagem, mesmo aquilo sendo visto como proibido. O estigma do exercício da sexualidade feminina paira sobre as jovens que falam o tempo todo de sexo, enquanto julgam as que ousam fazer, junto do medo da gravidez, que, além de ser uma manifestação da maternidade indesejada para aquele momento, representa também um atestado público de que aquela mulher não é mais virgem e pura, logo não merece mais respeito.

O universo da personagem é bem apresentado: temos ali as visitas aos pais trabalhadores no interior que precisam se manter como sempre foram para ninguém desconfiar de nada, as disputas internas entre os diversos grupos de jovens mulheres que dividem o dormitório e o espaço universitário, as fofocas durante as aulas, as festinhas regadas por Coca-Cola, a solidão mesmo quando acompanhada, a insônia de quem tem um problema a resolver e as mesmas três ou quatro roupas repetidas que evocam tanto a origem da protagonista, quanto o cotidiano como ele é.

O aborto clandestino se desenha nas duas linguagens como um desalento construído por uma disputa de riscos que pesa principalmente para aquelas sem os contatos e informações certas, essas que precisam apelar para métodos caseiros no escuro do quarto ou cirurgias em um cômodo de uma casa qualquer ou os dois. Sendo as consequências de uma gravidez indesejada ainda mais pesadas para uma mulher pobre buscando alguma ascensão social pelos estudos, como a personagem, ou uma operária ou atendente de supermercado. Só que até para as mais ricas, a clandestinidade recai de forma ameaçadora, porque mesmo com um contato do médico certo e seguro em mãos e a garantia de que não irá presa por escolher, ainda existe solidão, proibição de falar e praticar e estigma. Tudo isso cria um cenário perigoso que poderia não existir se a responsabilidade da gravidez não fosse imposta às mulheres somente, o aborto fosse legal, seguro e gratuito e uma informativa e acolhedora educação sexual fizesse parte do currículo das escolas.

Ainda que o aborto por escolha da mulher seja legal na França desde 1975, tendo sido Annie Ernaux uma ativista por esse direito, no Brasil nunca foi e ainda não é. O que torna a aflição da personagem Anne e os riscos corridos por ela para fazer valer seu desejo pelo, ainda que inexistente legalmente na época, direito à escolha muito próximos da realidade das mulheres brasileiras hoje, com suas vítimas fatais aqui e agora, entre mutiladas, presas e sortudas aliviadas. O interdito presente nas obras segue no Brasil, não só pelo tabu, mas pela força da lei e das ameaças e práticas conservadoras que tentam tornar o aborto uma ilegalidade mesmo nos raros casos liberados pela nossa legislação: risco de vida para a gestante, gravidez fruto de estupro e gravidez de feto anencéfalo.

As cenas do filme “O acontecimento” parecem ainda mais gráficas e desoladoras para quem divide comigo a nacionalidade e o domicílio brasileiro e acompanha, além das histórias veladas de familiares, amigas e conhecidas, as notícias de meninas que sofreram pressão judicial, governamental e social para não usufruir do seu direito ao aborto legal previsto como exceção na lei penal.

Mesmo a filmagem fugindo do sangue, da agulha, dos instrumentos da enfermeira e focando no rosto e atuação da atriz, a gente sabe o que a clandestinidade causa direta e indiretamente e isso basta para nosso estômago revirar de tensão.

Poderia ser eu, poderia ser minha mãe, poderia ser uma amiga, poderia ser a vizinha do 103 ou a moça da bilheteria do cinema, mas foi Annie Ernaux em 1963 e muitas outras que não tiveram a sorte de sobreviver para contar ou nunca puderam elaborar o momento. Para quem tem um útero que se revira em cólica e sangue menstrual periodicamente, não precisa ser gore para ser quase um filme de terror, emular a realidade como ela é basta para nos lembrar que nosso corpo ainda está no controle do Estado e o que tudo isso significa.

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Você também pode se interessar em ler “O acontecimento também é a escrita: a proposta literária de Annie Ernaux encontra o aborto clandestino

“Shirley”: mulheres, loucura, machismo e escrita

Imagem de divulgação

Quando mulheres escrevem histórias de violência, horror, mortes, monstros e fantasmas, a sociedade se incomoda. Ninguém espera que a mente feminina seja capaz de criar algo que fuja dos estereótipos que nos são empurrados desde a infância. Ninguém espera que mulheres sejam capazes de falar do horror e do que perturba a humanidade, quando tudo que é visto como feminino precisa ser fofo, tranquilo, bondoso e materno.

Esse estranhamento torna as mulheres que criam ou consomem essas histórias objetos de curiosidade. Afinal, a sociedade patriarcal usa esses estereótipos e muitas outras coisas como ferramentas de controle, por isso estigmatiza certos comportamentos e tenta ensinar para as outras, a partir dessa estigmatização, como elas devem se comportar sob pena de serem as próximas loucas, estranhas, esquisitas e deslocadas.

Shirley Jackson, um dos grandes nomes do terror, nasceu no dia 14 de dezembro de 1916 e morreu aos 48 anos. Ela escreveu seis romances, dois livros de memórias e vários contos, se tornando referência para autores como Neil Gaiman, Stephen King e Donna Tartt. Ainda não li nada escrito por ela, infelizmente, mas sei que a autora é conhecida por suas histórias de terror, seus personagens atormentados e pela sua capacidade de criar e contar histórias sombrias com bastante verossimilhança. Uma excelente personagem, portanto.

Shirley, dirigido por Josephine Decker, roteirizado por Sarah Gubbins e baseado em um romance de Susan Scarf Merrell, explora a autora como personagem, brinca com o imaginário social sobre a mulher que escreve, especialmente temas como terror e mistério, e assim também expõe o terror doméstico e as consequências mentais dele. A obra então não pretende ser uma cinebiografia ou algo assim, ela somente usa uma pessoa que existiu como uma base e inspiração para se criar uma personagem, quase como a protagonista do filme faz com sua convidada.

A história do filme parece simplória e cotidiana: Shirley (Elisabeth Moss) e seu marido, professor e crítico literário, Stanley Hyman (Michael Stuhlbarg) recebem um casal de recém-casados, Fred (Logan Lerman) e Rose (Odessa Young), para uma temporada. O objetivo é que eles fiquem por lá até que consigam se estabelecer e encontrar um lugar para eles. Mas essa convivência entre os casais, que parece tão boba, dá bastante pano para manga.

Na cena inicial, Rose lê o último conto de sua futura anfitriã com admiração e tenta comentar sobre ele com Fred. Fred nem liga. Essa cena tão curta, que surge antes de termos qualquer outra informação a mais, é um indício do que está por vir e expõe o quanto o machismo é algo que afeta e afetará a vida dessas duas mulheres.

A loucura, na obra, aparece como um estigma que atinge Shirley enquanto mulher solitária, muitas vezes em sofrimento, e escritora de terror, mas também como a palavra mais fácil de atribuir para qualquer mulher. Todas as mulheres, mesmo as donas de vidinhas invisíveis e insignificantes sob a ótica dos homens, podem ser doidas se seus maridos falarem que elas são e o filme usa essa ideia para falar sobre os relacionamentos amorosos em foco, enquanto também constrói uma crítica ao todo.

No fim, para os homens, donos do mundo, todas as vidas femininas são vidinhas que acontecem em segundo plano e nem possuem tanta importância assim. Mesmo Shirley sendo uma escritora tremenda, ela se sente dependente de Stanley e todo o jogo psicológico que ele faz, porque, apesar de tudo, acredita que precisa de uma validação masculina para existir como escritora — ou mesmo pessoa — para o mundo.

Isolamento, autoestima, bloqueio e processo criativo, parceria, solidão, casamento e maternidade, tudo isso são temas abordados nessa obra que, apesar de ter um caráter cotidiano e caseiro, consegue criar tensão a partir do incômodo. Algo muito ruim parece estar sempre prestes acontecer, como em uma boa obra de suspense, mas a gente logo descobre que algumas ruindades podem estar tão infiltradas no dia-a-dia comum das mulheres que podem passar despercebidas com grande facilidade.


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Retrato de Uma Jovem em Chamas: um exercício de observação

(Contém spoilers)

Cada cena do filme “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, obra dirigida por Céline Sciamma, poderia ser um quadro, um quadro pintado por Marianne, a protagonista dessa história focada em mulheres. Cada frame capta algo da imagem além dela própria, como se a história fosse contada também pelos mínimos detalhes que só um olhar atento e meticuloso é capaz de trazer para um retrato. O olhar que Marianne tem como seu. O olhar que Marianne volta para Héloïse, inicialmente por esse ser o seu trabalho e depois porque esse é o olhar da aproximação, dos laços que surgem entre os seres humanos, do desejo. O olhar que Héloïse retribui.

“Retrato de uma jovem em chamas” é uma história de amor, de amizade, de descoberta e de observação que acontece a partir da contratação de Marianne para pintar, secretamente, um retrato de Héloïse. Essa pintura precisa existir, porque será um presente para o homem que casará com a retratada que se recusa a posar. O casamento aqui é uma obrigação que a personagem deve aceitar, ela querendo ou não, porque cabe às filhas servirem como moeda nessa transação comercial.

O retrato de Héloïse é o motivo de Marianne estar ali, olhando, trocando, e inicialmente se colocando como uma dama de companhia para assim poder pintar, em segredo, quando elas não estão juntas. Esse quadro, além do motivo dessas mulheres se encontrarem, é também uma fonte de reflexão sobre o apagamento do desejo das mulheres e como o poder e as regras dos homens fala mais alto em relação a tudo que se relaciona a elas e suas vidas.

Apesar da ameaça de casamento que espera Héloïse, esse é um filme que expõe uma série de trocas, situações e eventos cotidianos que acontecem quando ninguém de fora está olhando. Sendo esse ninguém de fora homens ou mulheres que defendem os interesses deles.

Por um breve período de tempo, três mulheres jovens — Héloïse, a mulher a ser pintada, Marianne, a pintora, e Sophie, a criada — usufruem a liberdade de não estarem sendo observadas e vigiadas para aproveitar o momento, se divertir e também amparar. Durante esse espaço temporal, há a construção de uma intimidade que só é possível existir quando se cria uma relação de confiança pautada no instante, no desejo, na troca e no apoio sem dever ou pecado. Quando ninguém de fora está olhando, há espaço para relações genuínas surgirem. De fora daquela ilha, as engrenagens continuam a rodar, prontas para afetar essas mulheres e corrigi-las, mas no interior daquela casa, brevemente, elas parecem quase esquecer disso.

A observação é o centro do filme, tanto como um meio de criar empatia, vínculo e interesse, quanto como meio de controle. Todas as três personagens, Marianne talvez menos, estão acostumadas a serem vigiadas em algum nível. Ali, isoladas umas com as outras, confinadas numa ilha, sem a mãe de Héloïse ou qualquer outro representante da sociedade para ditar regras, elas encontram menos solidão do que em suas rotinas tão afetadas pelo olhar desses que só sabem vigiar.

A troca só é possível quando não se está vigiando alguém. O que torna esse filme também sobre o desejo de liberdade e a construção de afetos a partir dessa vivência. Todas elas querem uma vida em que podem ser livres e esses dias umas com as outras significa isso.

Um filme como esse mostra como o olhar masculino sempre foi uma prisão para as mulheres. Esse olhar dita quais comportamentos são os corretos e vigia e pune para garanti-los. Esse olhar é o patriarcado que tenta restringir a intimidade, a privacidade e a liberdade das mulheres. Só que as mulheres sempre encontram brechas para viver suas vidas e tentar ajudar as outras. Marianne mostra isso quando conta sobre como as regras dos homens tentam afastar as mulheres de serem pintoras completas a partir da proibição de que elas pintem nus e comenta que há como burlar isso e depois expõe seu quadro numa galeria usando o nome de seu pai. Sophie, ao precisar de um aborto, e encontrar amparo com Héloïse e Marianne e com toda uma comunidade de mulheres também serve como exemplo disso. Mesmo no meio de tantos rostos prontos para julgar, há como encontrar algo diferente. Há como desrespeitar as regras. Encontrar algum refúgio. Talvez isso seja o que chamam de sororidade.

A descoberta das personagens vai além da sexualidade, da troca e da amizade e perpassa toda essa questão de controle versus liberdade, de forma sutil, porque todas ali sabem que aquela situação não poderá durar para sempre, porque há uma promessa de casamento e Marianne está ali somente para garantir o quadro que simbolizará esse futuro. Há uma data de validade e as três devem aproveitar antes que o tempo delas vençam. Especialmente Héloïse e Marianne, que vivem um amor impossível por esse breve período que parece mínimo perto do resto de suas vidas, mas é mais do que o suficiente para marcá-las. É possível burlar as regras, mas ainda não dá para reescrevê-las e elas precisam aceitar o futuro que virá.

“Retrato de uma jovem em chamas” é uma declaração de amor ao exercício de observação livre de amarras e sem o objetivo de domínio e a tudo que pode surgir a partir disso. Por isso é tão bonito. Por isso cada cena parece uma obra de arte. Por isso narra o amor entre mulheres.


O Cinema, enquanto indústria, privilegia o olhar masculino que aprisiona as mulheres e limita que o trabalho delas, como o bordado de Sophie, seja valorizado. Como em diversos outros espaços, há um apagamento do trabalho feminino e um fenômeno que mescla invisibilização e desvalorização em relação aos feitos dos homens. Mesmo quando esses homens são acusados de terem violentado, sexualmente ou não, mulheres. A arte está acima de tudo, quando se trata de homens brancos. A arte é uma distração, um hobbie, uma prenda feminina. Ou um trabalho, quando seu pai te coloca como herdeira dele, mas um trabalho que jamais poderá ganhar tanto espaço quanto o de um homem, porque o mundo ainda só valoriza o que parece cercear as mulheres de alcançar sua plenitude.

“Retrato de uma jovem em chamas” é um dos melhores filmes que já vi e, apesar de ter sido bem aplaudido, foi encarado por alguns homens que se colocam como críticos como uma obra somente voltada para mulheres, como se apenas mulheres se interessassem por histórias contadas por nós. Como se a falta de personagens masculinos tornasse a obra imediatamente desinteressante. A película se destacou principalmente por causa da maneira que foi filmada, mas Céline Sciamma perdeu o prêmio César de melhor direção para Roman Polanski, diretor que tem uma condenação de estupro no currículo. Pelo menos Claire Mathon, diretora de fotografia da obra, levou merecidamente o César voltado para essa atividade.

Esse filme diz muito sozinho, mas também diz muita coisa quando analisado em seu contexto. A obra mostra o potencial, afetivo e artístico, que as mulheres possuem quando não estão sendo avaliadas o tempo todo por uma ótica masculina que busca submissão às regras feitas por eles. Potencial que ainda hoje segue ignorado quando privilegiam homens sempre, inclusive estupradores condenados, ou atribuem rótulos e nichos reducionistas ao que deveria ser visto como arte.


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Bacurau: comunidade, rituais de morte e resistência

Obs: o texto contém alguns spoilers.

Cena do filme

Bacurau, filme de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é sobre muita coisa, inclusive sobre a morte, seus rituais e o impacto disso numa comunidade fictícia localizada no oeste pernambucano. Já nos primeiros minutos do filme, nos deparamos com um caminhão pipa que carrega água potável destruindo caixões de madeira caídos na estrada, um corpo e um caminhão que carrega caixões tombado e cercado de pessoas pegando a carga. A morte ronda Bacurau. Ela está próxima. Esse é o aviso e ele funciona. Tudo aquilo que se relaciona com a morte e seus símbolos é encarado pela nossa sociedade como um mau presságio, ainda que morrer seja parte indissociável da vida, e está ali nas primeiras cenas.

Na cidade, a morte já se faz presente. Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), 94 anos, está sendo velada em casa, com parentes, amigos e conhecidos ao redor. A morte está próxima, é triste, mas é encarada ali como um momento de despedida, homenagem e reforço de laços afetivos. Diferente do corpo anônimo na estrada, que é visto de maneira distante e triste simplesmente. Ainda que ambos sejam colocados como algo inevitável que faz parte da vida.

O ritual de morte de dona Carmelita é, apesar de tudo, tranquilo. Tirando a interferência de Domingas (Sônia Braga), outra idosa, que parece sentir muito aquela partida. Talvez a idade da falecida contribua para isso. Afinal, a velhice avança e a proximidade com a morte passa a ser lembrada o tempo todo pelas próprias pessoas e também por quem próximo. Talvez a personagem, com sua sabedoria, já tivesse preparado o terreno para aquilo. O bolo que Carmelita faz antes de morrer e Teresa (Bárbara Colen), sua neta, come com a irmã após o velório parece dizer isso. Ela deixa afeto para quem ainda ia chegar e não poderia ter a chance de se despedir dela em vida.

Quase toda a cidade participa da celebração/ritual de morte, nos mostrando que a falecida é uma espécie de matriarca e referência. Tem música cantada em coro junto com o violeiro da cidade que lidera o canto, tem caminhada, tem enterro e lenços brancos sendo balançados. Ali, todos, por mais diferentes que sejam, parecem dividir a saudade que sabem que vão ter. O luto é compartilhado.

Cena do filme

Comunidades não emergem do nada, elas são construídas a partir de laços, trocas, tempo e até mesmo conflitos. Dona Carmelita, junto com o museu de Bacurau, representa a união a partir desse compartilhamento e a história do grupo que forma aquela cidade e que começa a ser apresentado para o espectador a partir do velório. Há algo que une todos ali, a história de uma pessoa ou de uma população, e é isso que faz Bacurau existir. Rituais de morte, principalmente quando são vividos e preparados de forma coletiva, costumam ser uma forma de preservação da memória de alguém, de um contexto, de uma família e até de um povo e isso importa tanto para quem fica porque é uma forma de dar continuidade ao que foi partilhado.

Os falecimentos, no filme até então, se apresentam como parte da vida cotidiana. Acidentes acontecem, velhos morrem, mas nos detalhes se percebe que viver ali é resistir a um destino específico fruto de um abandono e de uma época. O Estado não se apresenta como deve, aquelas pessoas estão desamparadas. Restaram a elas apenas o apoio uma das outras. A morte, nesse tempo que a gente só sabe que é depois de agora, está explícita na tevê. Há execuções públicas no Vale do Anhangabaú. De fato, ela ronda Bacurau e também o país.

Em Bacurau, se luta contra a morte todos os dias. Seja pela falta de água potável, de remédios, de vacinas ou de comida. A morte morrida, essa causada pela falta ou pela natureza mesmo, também pode ser política, mas a morte matada que surge posteriormente deixa evidente o quanto aquele povo é considerado invisível. Quem nasce em Bacurau é gente, mas parece que só quem mora lá sabe disso.

Quando Teresa, frente ao caixão da avó, diz que dona Carmelita é a segunda morta que viu no dia, há um estranhamento que surge talvez do quanto aquilo parece cotidiano e ao mesmo tempo fora do lugar. Teresa vê, numa alucinação, o caixão da avó transbordar em água. A morte, por mais cotidiana que seja, parece estar mais presente do que deveria mesmo quando a gente ainda não conhece o que há de vir. A água transborda ali, mas a gente não sabe o que isso significa ou se é para significar algo. Seria a morte e o sangue dos que vão embora? Seria um símbolo para a vida e o afeto que cercam aquele corpo? Seriam lágrimas de quem sabe o que vai vir? Seria a água da represa voltando a jorrar?

Quando os corpos mortos por tiros começam a surgir, o mau presságio é confirmado. Numa cena, Pacote/Acácio (Thomás Aquino) encontra os cadáveres de dois de seus amigos, coloca-os dentro no carro sentados, ainda ensaguentados e sujos e, durante o trajeto, explode de raiva numa conversa sem respostas. Aquela perda não era esperada. Ele entende que ela poderia ser evitada, sente culpa por ter pedido a eles para irem até aquele lugar em que foram executados e a raiva, parte indissociável do luto, é a resposta dele para aquela dor.

A cidade chora seus mortos, ainda que em choque e se preparando para se proteger. Antes do encontro da cidade com os assassinos, os rituais de morte do menino, dos homens e da família acontecem junto a uma outra espécie de ritual, o de preparo para uma batalha. Enquanto um buraco, que a gente ainda não sabe para que serve ,é cavado, tem capoeira, tem reza, tem desespero, busca pela prostituição e também conexão e contato. A proximidade com a morte é o que guia ambos os rituais e cada um reage à sua maneira.

Bacurau quer viver em paz, mas sabe reagir para proteger os seus e manter a comunidade viva. As vestes sujas de sangue dos corpos mortos de sua população se tornam bandeiras de luta. A escola, cravejada de balas e lotada de gente escondida debaixo de carteiras, também reage. O museu também é um centro de resistência ao ataque. As engrenagens da cidade, com toda sua gente, inclusive aqueles que um dia já rejeitaram aquele povo e aquele lugar, se movimentam para impedir o massacre de seu povo.

Museu é lugar de história de gente que já morreu faz tempo e representa o passado. Escola é lugar de gente que acabou de chegar no mundo, local onde o futuro se desenha. Nenhum deles está protegido de quem quer ver sangue, como sabemos ao ler as notícias do Rio de Janeiro ou dos EUA, mas no filme esses lugares, considerados tão vulneráveis e que costumam ser alvos de tentativas de controle e descaso, se tornam focos de resistência por serem espaços em que se celebram e preservam a coletividade e a memória. Nesse sentido, faltou, na minha opinião, maior participação feminina na violência e menos hiperssexualização. Apesar de algumas personagens femininas serem parte ativa da resistência, usarem armas e se posicionarem, os protagonistas da ação — e, na prática, até do filme — são homens, ainda que Lunga (Silvero Pereira) não se encaixe bem nesse lugar masculino e a comunidade, substantivo feminino, seja o centro da história. As mulheres, que são colocadas pela obra como importantes mantenedoras da comunidade viva, ficam em segundo plano nessa hora, como se a elas coubesse o papel de serem lideradas ou buscarem sempre as vias do diálogo. Vide Teresa, essa que é filmada como protagonista, mas que o roteiro não a valoriza o suficiente, e Domingas.

As mortes em Bacurau servem como um lembrete de que o Brasil foi construído e ainda o é a partir da violência, mas essa violência foi perpetuada, permitida, ainda que não às claras, e alimentada por quem representa o Estado. E, no caso do Nordeste, como bem expõe o filme, incrementada por sudestinos e sulistas que se consideram superiores a quem vive nessa parte do Brasil, enquanto são tratados como menos gente por quem eles consideram próximos e parecidos com eles. Esse passado — e o nosso presente — repleto de um tipo sangue específico derramado precisa ser considerado sob o risco de vermos a resistência de quem quer simplesmente se manter vivo ser encarada como a real face da violência. Os bárbaros não são os que atacados buscam lutar pela vida e pela sua dignidade, ainda que alguns defendam que histórias como essas sejam contadas assim.

Cena do filme

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“Temporada”: cotidiano, cidade e a descoberta da autonomia

Cena do filme

O filme brasileiro “Temporada”, dirigido e roteirizado por André Novais Oliveira, foi o grande premiado do Festival de Cinema de Brasília de 2018 e chegou ao mundo do streaming pela Netflix agora em abril de 2019. A obra é sobre o cotidiano nas cidades e aborda a realidade de uma maneira tocante e simples sem ignorar o peso de opressões.

Em mais uma excelente atuação, Grace Passô dá vida à personagem Juliana, uma mulher que se muda para Contagem (Região Metropolitana de Belo Horizonte) para assumir um cargo concursado de agente de combate à endemias. A partir dessa mudança, Juliana vê sua vida se transformar junto com seu novo cotidiano.

Do que é feita uma cidade?

O novo emprego da protagonista envolve circular a pé em um lugar totalmente novo, entrar na casa das pessoas, buscar focos de proliferação de mosquitos, escorpiões, abelhas e afins. Essa rotina nos apresenta a cidade como ela é: cheia de personagens diversos, óticas variadas, paisagens e também uma dose de simpatia, troca e diálogo.

A relação dela com seus colegas de trabalho se constrói a partir desse espaço dominado pelo cotidiano repleto de histórias, cafés na casa dos moradores visitados, humor e dificuldades financeiras.

Ela, pela sua função de cuidar da cidade e sua população, adentra espaços de intimidade, mexe nas tralhas das pessoas, lida com o conflito entre o público e o privado. Os colegas já experientes nesse trabalho, inicialmente, a guiam nisso e desde logo ensinam que esse cuidado que ela é obrigada a dar como profissional muitas vezes é retribuído voluntariamente.

A cidade em “Temporada” é abordada de uma maneira tocante por mostrar a construção das relações entre os agentes de combate à endemias e a população atendida. As fronteiras do público e do privado, ao serem diluídas, mostram, com delicadeza, a importância do banal na vida de cada um.

Autonomia, solidão e descoberta

Juliana é uma mulher casada, mas se muda para Contagem sozinha. Estar só em um lugar novo faz com que ela reflita sobre quem é, o que quer e o que teme. Ela, nesse contexto, entra em um processo de descoberta que envolve autonomia e identidade. Assim, a protagonista se permite reinventar a partir das novas experiências.

Há uma dualidade na trajetória de Juliana. Seu desenvolvimento como personagem perpassa tanto a solidão quanto a construção de novas relações. Ela percebe a importância de construir amizades, do apoio mútuo e da troca de companhia, mesmo que descompromissada, e descobre novas possibilidades diante disso.

Juliana, mulher negra (contém spoilers)

“Temporada” é, a primeira vista, sobre cotidiano, mas por meio dele trata também de questões como machismo, racismo e espaço urbano.

O abandono marital sofrido pela protagonista é uma amostra da realidade de muitas mulheres brasileiras, especialmente as negras. Sua solidão, que antes tinha um tempo certo para acabar, ganha um ar de permanência. Ela precisa se adaptar ao novo emprego, ao novo lar e agora também carrega essa mágoa, mas também uma possibilidade de recomeçar.

Toda essa situação junto a dificuldade de processá-la verbalmente faz a personagem buscar descobrir-se. Isso desemboca, quase sem querer, em um corte de cabelo significativo. Em uma ida ao centro de Belo Horizonte com um dos seus novos amigos, ela abandona as madeixas artificialmente lisas e assume o cabelo crespo. Mudança que serve para coroar essa trajetória de aceitação dessa nova Juliana e da nova vida que se desenha.

“Temporada” é sobre uma nova fase

Os diálogos naturais, com suas gírias e silêncios, junto das cenas quase poéticas com recortes das casas e da cidade constroem uma obra marcada pela sutileza e pela vontade de seguir a vida apesar dos pesares.

O dia a dia, muitas vezes encarado como um espaço temporal onde não aparenta ocorrer nada importante, é quando a vida acontece. A plasticidade dos destinos e de quem somos se desenrola, a maioria das vezes, na banalidade da vida real.


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Confira o trailer:

Kingmakers: as esposas por trás de grandes homens

Cena do filme “A esposa”

“Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher” é um ditado popular que evidencia os papéis de gênero esperados pela sociedade, especialmente dentro do casamento.

O lugar do homem dentro da relação é o de protagonista, seus objetivos e sonhos estão sempre em primeiro plano, enquanto a mulher trabalha nos bastidores para que o homem atinja suas metas. O lugar da mulher nessa dinâmica é o de complemento do homem. Os sonhos e objetivos dela são deixados de lado e não são vistos como importantes.

A ideologia machista afirma que homens e mulheres se complementam e usa esse argumento para perpetuar a divisão sexual do trabalho e a submissão feminina. A capacidade reprodutiva feminina é colocada como um destino biológico que serve como justificativa para que o que eles chamam de complementação seja apenas subserviência a um único projeto de vida, o masculino. Esse caminho é colocado como natural porque em nossa cultura os homens são vistos como os detentores das ferramentas, talentos e habilidades necessárias para buscar um sucesso que não seja o de cuidado da casa e dos filhos.

“A esposa” é um filme impactante porque foca na mulher que foi colocada nesse lugar e expõe as ações que um dia a levaram a acreditar que esse era o melhor caminho possível e o seu arrependimento posterior.

Joan (Glenn Close), apesar de lidar com uma frustração crescente relacionada com o sacrifício que fez, se incomoda com o rótulo de vítima, porque entende que foi levada a optar por esse caminho devido a todo o contexto de exclusão, discriminação e oportunidades diferentes relacionadas com homens, mulheres e a visão de como um relacionamento deve ser.

A visão do mercado editorial sobre a escrita feminina, as expectativas pré-existentes do que é um relacionamento de sucesso, o destino feminino padrão, a energia e o enfrentamento necessários para lidar com escolhas que fugissem do que era esperado e a manipulação de Joe são alguns dos pontos que a fizeram sacrificar seus sonhos em função de trabalhar pelos dele. Por Joan ser capaz de racionalizar alguns desses fatores contextuais, ela acredita que escolheu esse destino, que o que ela fez foi uma negociação a partir do que era possível ser alcançado por ela.

Cena de um flashback do filme com Joan e Jon jovens

Naturalização do machismo, violência psicológica e “escolhas”

“Quem é Joan e o que ela quer, pensa e sente?” é uma pergunta que ocorre desde a cena do telefonema que informa que Joe Castleman (Jonathan Pryce), seu marido, é o mais novo ganhador do Nobel de Literatura e ainda deixa dúvidas na última cena do filme.

Flashbacks ajudam a construir a imagem de Joan, de Joe e do mundo que os cercava desde jovens. Por meio desse recurso, a gente descobre que Joan escrevia, que Joe foi seu professor e que ela ouviu de uma mulher escritora que a carreira literária era um desafio praticamente impossível para mulheres.

Da dinâmica familiar, que inclui até mesmo os filhos do casal, até a organização do Prêmio Nobel que conta com uma funcionária responsável por cuidar das esposas dos laureados, o lugar da mulher é o de acessório. A exposição de cenas relacionadas a esses dois fatores argumentam contra a imagem de não vítima que Joan se apega e nos dão pistas essenciais para entender quem Joan foi, quem ela se tornou e o processo que está vivendo.

Ser laureado com o Prêmio Nobel é um dos maiores reconhecimentos que existem. Escritores, personalidades políticas e cientistas sabem que esse é o topo máximo de diversas carreiras. Ser declarado vencedor pela Academia Sueca é ser colocado em um pedestal de qualidade e relevância. Só que esse pedestal da intelectualidade mundial parece ser algo que só pode ser alcançado por homens brancos, como o filme mostra ao exibir detalhes da organização do evento e a gente entende muito bem por conhecer as estatísticas que apontam que as mulheres são uma minoria entre os premiados.

Fica evidente que qualquer mulher que surgir como ganhadora do Nobel será uma exceção, para muitos, uma intrusa. O lugar delas é o de esposas, de kingmakers, as que se sacrificam na vida privada para que a parte masculina do casal brilhe no espaço público.

A cerimônia do Nobel, foco do filme, se passa em 1992, com Joan e Joe já idosos, mas as espectadoras de hoje, mesmo com décadas separando suas vidas dos eventos do filme, percebem — e, de certo modo, ainda sentem — as engrenagens sociais que fizeram Joan tomar as decisões que tomou durante a vida.

O que torna “A esposa” um filme importante é o fato de que a história nos permite refletir sobre acontecimentos que vemos como naturais e não o são e como isso impacta nosso cotidiano sem prêmio Nobel por perto.

O que causa estranhamento em nossa sociedade é a mulher que quebra com as expectativas de comportamento ligadas ao seu gênero e lidar com isso pode ser bem difícil. Sabemos que elas podem ser punidas, inclusive por meio da violência física e sexual, até por dizerem não a um colega e, por isso, mesmo sem querer, mulheres muitas vezes se guiam pelo que é dito adequado. O que pode ser uma fonte enorme de frustração, mas é encarado como uma alternativa aceitável por parecer garantir alguma segurança. Nesse contexto não dá para dizer que há de fato uma escolha livre.

A naturalização da violência psicológica e do machismo são fatores que fazem com que alguns espectadores e até mesmo a personagem tenham dificuldade de entender que o relacionamento exposto no filme é abusivo. Como não há presença de violência física e o casal parece viver momentos de cumplicidade, muita gente entende que Joe e Joan vivem apenas um relacionamento com momentos ruins e ignora todo o resto. Esse resto inclui manipulação, a ideia de que o sacrifício feminino como mãe e esposa é algo a ser esperado por parte das mulheres e a concepção de que apoiar um marido é deixá-lo ser protagonista da vida do casal e aceitar suas traições dentro do relacionamento. Visões de mundo tão comuns que para muitos é preciso olhar duas vezes para que se perceba que poderia ser diferente.

Imagem de divulgação do filme — Joan um pouco atrás de Joe diz muito sobre a realidade das mulheres.

Indústria cinematográfica, machismo e o lugar da mulher

Essa visão de homens como protagonistas e mulheres como coadjuvantes é tão perniciosa que se apresentou até mesmo na feitura do filme. Glenn Close afirmou para a Agência NPR que a obra, adaptação de um livro de Meg Wolitzer, demorou mais de um década para ser feita porque atores de prestígio do meio se recusavam a aceitar o papel de Joe. Eles não queriam estrelar um filme chamado “A esposa” por não serem o destaque principal da obra e não receberem a maior remuneração.

O machismo da indústria cinematográfica não é bem uma novidade. Filmes dirigidos por mulheres raramente são premiados, bem distribuídos ou patrocinados. Os papéis voltados para mulheres privilegiam mulheres jovens, brancas e dentro do padrão de beleza, enquanto homens mais velhos são colocados para contracenar com mulheres cada vez mais jovens e, por essa razão, as atrizes perdem espaço na carreira bem mais cedo que eles. Além disso, análises dos premiados pela Academia do Oscar como Melhor Filme dos últimos anos apontam que personagens femininos nesses filmes tem um tempo de fala bem inferior ao de personagens masculinos. Todas essas questões se relacionam com a visão de que o espaço público, o sucesso, as carreiras importantes, são de protagonismo deles. Para as mulheres, o destino é ser coadjuvante, fazer casal, enfeitar e se dedicar aos cuidados de sua família.

Nos roteiros e bastidores dos filmes e também na vida real, a lógica vigente ainda é a que empurrou Joan para o sacrifício de sua subjetividade. Perceber isso é um passo para que essa realidade mude e esse debate, junto com a atuação impecável de Glenn Close, torna “A esposa” um filme necessário.

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Cafarnaum: o universo brutal da miséria

Imagem de divulgação

Dirigido por Nadine Labaki, “Cafarnaum” conta a história de Zain, um menino de cerca de 12 anos que vive em Beirute em situação de pobreza e negligência e faz de tudo um pouco para conseguir sobreviver.

Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes e considerado um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro junto com “Roma” e “Guerra Fria”, a obra aborda miséria e alteridade e também discute questões como maternidade, família, ausência do Estado, justiça, tráfico humano, imigração e até mesmo gênero.

Com “Cafarnaum”, a diretora Nadine Labaki, de origem libanesa, se torna a primeira mulher árabe a concorrer a estatueta na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, como diretora de uma obra com fotografia com ares documentais e atores não profissionais. Além da direção, Nadine faz uma ponta como uma personagem de pequena participação e é uma das pessoas que assinam o roteiro.

O menino quase homem

Quando Sahar (Haita ‘Cedra’ Izzam), irmã de Zain (Zain Al Rafeea), é vendida para se casar em troca de algumas galinhas — fato que o menino já sabia ser provável e por isso fez de tudo para esconder a menarca da irmã dos pais -, ele foge e passa a viver sozinho nas ruas da cidade. Mas mesmo antes de fugir de casa, o garoto, ainda tão novo, se vê obrigado a assumir diversas responsabilidades que se relacionam com a sua própria sobrevivência e dos seus. O cuidado com o futuro da irmã é uma amostra disso e a sua preocupação com o bem-estar do outro continua também na segunda parte do filme, apesar de seus pequenos delitos.

Zain assume esse papel, mas ainda é uma criança, brinca com armas de madeira na rua com um bando de meninos, quer ver desenho na televisão que não tem e ao fugir escolhe descer do ônibus em frente a um parque de diversão decadente. Essa decisão acontece após uma conversa com um velho fantasiado de Homem-Barata que sentou ao seu lado. Sua adultez precoce, presente durante todo o filme, contrasta com esse lado infantil que parece ter sido proibido pela realidade de se manifestar, mas ainda assim se apresenta em algumas situações.

O contraste entre o Zain que furta, trafica remédios, fala vários palavrões, xinga e brinca de armas de madeira com Sahar e Jonas, personagens da segunda fase do filme, nos ajuda a ver o quanto ele, sua família, Tigest e outros personagens vivem uma rotina violenta que os transforma. Sobreviver ali é se colocar como mais forte e a adultez e o comportamento agressivo do garoto se relacionam com o que se espera de um pequeno homem e também com a forma que as relações dele com os pais e com o mundo foram construídas.

Mães, pais e irmã: feminilidade e masculinidade em meio ao caos

Sahar, a mãe de Zain, e Tigest, mãe de Jonas, representam o destino feminino nesse contexto. Sahar vivia se esquivando sozinha — e também com a ajuda do irmão — da violência de gênero e das tentativas de exploração de seu corpo. Mesmo assim, acaba vendida para um homem mais velho em troca de galinhas. A mãe de Zain e Tigest dividem o peso da maternidade quando se tem pouco o suficiente até para a própria família. Uma, apesar de aceitar que a procriação é parte da vida, não consegue dar amor e o mínimo de dignidade para os seus vários filhos e em diversos momentos os trata como nada. A outra faz de tudo para conseguir alimentar seu bebê, dar amor e lida com um pai completamente ausente e um homem que tenta comprar seu filho.

O pai de Zain e Sahar é mais violento que a mãe e parece saber se comunicar apenas dessa forma. A mãe é quem intermedia a comunicação das crianças com ele em diversos momentos. Zain tinha tudo para ser como ele ou mesmo como sua mãe, mas com sua lucidez — ou seria ingenuidade? — infantil busca ser diferente por não ver sentido em viver como seus pais vivem. Essa busca não é consciente, é apenas uma procura por um destino que seja distinto daquele que apresenta como o único possível e ele não quer aceitar como seu.

Zain julga seus pais, especialmente sua mãe, por seu nascimento e vida, mas as cenas no tribunal, na prisão e os planos aéreos que mostram a cidade evidenciam o quanto o problema é mais profundo que isso. A negligência que o atormenta não é uma questão individual ou que se relaciona somente com sua família, é parte e consequência de um todo.

O todo

O filme apresenta os inúmeros problemas sociais que se emaranham e criam um ciclo de abandono que parece não ter fim. A miséria é mais do que a simples falta de dinheiro e oportunidade e a obra de Nadine Labaki evidencia que não há soluções e nem julgamentos fáceis. Combater a pobreza envolve lidar com muito mais questões do que se imagina. Por exemplo, gênero.

A opressão feminina foi abordada pela libanesa em seu primeiro longa, “Caramelo”, e também em “E agora, aonde vamos?”, seu segundo trabalho. “Cafarnaum”, ao levantar esse tema mesmo que de forma indireta, mostra um interesse da diretora em expor as adversidades relacionadas ao ser mulher e também nos permite conectar pontos e entender que o caos exposto na narrativa é parte de um todo de opressões e violências que interagem entre si.

O fim (contém spoiler)

O filme termina com Zain sendo fotografado para fazer a sua identidade e, provocado pelo fotógrafo, ele sorri. Ele, agora, ao menos existe para o sistema. Uma vitória quase insignificante para a sua jornada, mas que ainda assim parece ser um novo começo ao olhar dele. Um fator novo que pode fazer a vida dele ser diferente do que sempre se desenhou.

Nadina Labaki dirigindo Zain Al Rafeea

Essa crítica foi originalmente publicada no Delirium Nerd, site colaborativo escrito por mulheres que trabalha com textos sobre comportamento, representação feminina e cultura, com destaque ao que é produzido por mulheres.


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Baronesa: um mundo feito de afetos e violências

Andreia (cena do filme Baronesa)

Baronesa é uma palavra utilizada para se referir às mulheres que receberam o baronato, um título de nobreza. Além desse significado de origem monárquica, Baronesa também é o nome de um bairro de Santa Luzia, cidade da zona metropolitana de Belo Horizonte, e o título de um filme dirigido, roteirizado, produzido e protagonizado por mulheres.

Quando Juliana Antunes, diretora da obra, se mudou para a capital mineira, ela notou um certo número de bairros que levavam nomes de mulheres. A maioria deles, periféricos. Isso a provocou e ela começou a pesquisar sobre, ir até eles e, depois de um tempo, o filme surgiu.

A premiada obra é centrada em duas personagens: Andreia e Leidiane. Leid espera o marido preso e cuida de seus filhos pequenos. Andreia quer se mudar e começa a se organizar para isso. A história é uma amostra do cotidiano e não segue os padrões de filme ficcionais. As personagens interpretam uma versão delas mesmas e a narrativa é uma vida que somente acontece.

Conversas, implicâncias, cumplicidade, afetos. Tudo isso faz parte do filme e também da vida. Só que em Baronesa — e na realidade de muita gente — o afeto existe lado a lado com a violência. Tiros, correria, a câmera caída. A violência interrompe uma conversa entre amigas sobre desigualdade.

Numa cena, Negão e Andreia conversam sobre a guerra entre os traficantes locais. Ele veste um colete à prova de balas e eles brincam sobre testá-lo. Andreia está com uma arma na mão. A conversa ora é séria, ora não é, mas está evidente que o assunto entre eles é também sobre a sobrevivência de si e dos seus. A morte e a tragédia parecem estar sempre à espreita.

O filme dá voz às mulheres antes escondidas em espaços privados e de cuidado e empregos precários. Nos diálogos, a gente observa que o único destino possível para elas parece ser esse, enquanto o dos homens dali, a maioria das vezes, é a prisão ou a morte.

Mas, além da violência, o filme também trata sobre afeto. Junto com uma amiga, as protagonistas conversam sobre vida sexual, enquanto bebem cerveja. “Cê pode gozar à vontade”, Andreia diz sobre masturbação, enquanto Leid ri constrangida. Elas batem papo, se aconselham e se apoiam. Entre elas, há uma cumplicidade que envolve até mesmo romper o silêncio sobre violência sexual e fazer recomendações sobre cuidado dos filhos em relação a esse assunto.

Essas mulheres são parte de um todo. Um todo que muitos fingem não ver. Juliana Antunes compartilhou que uma das dificuldades que teve para realizar o filme envolveu o fato de que as mulheres precisavam de autorização masculina para gravar. Com essa informação, é impossível não questionar: “Quantas histórias seguem invisíveis por causa do machismo?”.

Mesmo quando se aborda a vida na periferia, o que não é tão frequente assim, os homens são o foco. Quando um filme se propõe a ser diferente e é um projeto que envolve também pessoas reais, algumas mulheres podem acabar ficando de fora simplesmente por viverem numa cultura que as coloca como seres que devem obediência aos homens de suas famílias.

O trunfo da obra é tratar o cotidiano de forma atenta ao algo mais. A narrativa não foca em um recorte específico da realidade. Ela aborda um todo e isso envolve expor diversos problemas sociais, mas não ficar só nisso. A discussão é proposta, mas a voz delas não fica resumida apenas às dificuldades e denúncias. Nesse filme, as personagens se fazem presentes em várias nuances e protagonismo feminino é isso.

Confira o trailer:


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“A Número Um” e os obstáculos do machismo

Cena do filme “A número um” / Foto: Divulgação

Um fantasma que ronda todas as mulheres é o de saber que qualquer erro cometido será colocado na conta de seu gênero. O erro de uma pesa para todas, mas essa lógica não se repete para as vitórias. O sucesso de uma mulher ainda é só dela, apesar de abrir caminho para as próximas que passam a acreditar que aquilo pode ser possível. A sociedade não vê a conquista de uma posição de comando por uma mulher como um sinal de que mulheres são capazes de ocupar um lugar antes reservado para homens.

Para uma mulher acessar um espaço de poder como a presidência de uma grande empresa, não basta que ela seja ótima, ela precisa ter uma trajetória impecável, ser excepcional e receber validação pública. Sucesso, liderança, poder e dinheiro ainda são vistos como espaços masculinos. Uma mulher em um espaço desses ainda é uma intrusa, alguém que tirou um homem dali.

“A Número Um”, filme dirigido pela francesa Tonie Marshall, conta a história de Emmanuelle Blachey, uma mulher de sucesso que busca ser a primeira mulher presidente de uma grande empresa. Aos olhos do machismo, ela já é uma intrometida e quer ser ainda mais. A ambição não cai bem para as mulheres, pensam eles.

Já na primeira cena do filme, vemos a protagonista receber uma mensagem de conteúdo sexual em tom agressivo. Já em outro momento, ela comenta com outra mulher que seu assediador desconhecido parece querer calá-la colocando o pênis em sua boca e essa é somente uma das críticas feitas na obra à misoginia vigente, principalmente no mundo corporativo.

A trama gira em torno da tensão que envolve a busca dela por esse cargo, os jogos de poder que o cerca e os silenciamentos, estereótipos e desumanização que perseguem ela e todas as outras. Enquanto os acontecimentos se desenrolam, o espectador descobre mais sobre Emmanuelle e percebe o peso de ser a única mulher no meio de tantos homens.

O filme é sobre o jogo de poder de sempre, mas com críticas ao fato de que as mulheres estão em desvantagem. A regra do jogo para as mulheres é que um erro vale para todas, os estereótipos também. E tudo isso vira arma para nos manter fora desse e de outros espaços. No Brasil, por exemplo, somente 10,5% do Congresso é feminino.

O poder tem gênero, tem cor e tem classe. A protagonista enfrenta o obstáculo do machismo. Toda sua vida é permeada por ele, do assédio aos sutis comentários que a rodeiam, mas é importante lembrar que os caminhos para uma presidência de uma grande empresa também podem ser atravessados pelos entraves do racismo e da pobreza.


Tonie Marshall foi a primeira mulher a receber o Prêmio César de Melhor Direção por sua comédia Instituto de Beleza Vênus e no filme “A Número Um” atuou na direção, roteiro e produção.

Assista o trailer: