Igual à narina

A linguagem nasce como um bocejo. Quando uma boca se abre e o cenho se franze, o rosto ao lado reage fazendo o mesmo. De repente, nosso jeito de falar, estruturar pensamentos e agir começa a mudar: uma palavra nova é adicionada ao vocabulário, uma pausa que não existia antes aparece, um novo jeito de mexer as mãos e balançar as pernas é imposto pelo corpo, o ritmo da respiração muda, um fonema fica mais chiado, a voz agora soa fanha, a risada ganha ou perde fôlego, você passa a dar três beijinhos ou fazer um toque de cotovelos para cumprimentar alguém e se surpreende com os músculos do rosto se contraindo numa careta inédita. E esses novos hábitos podem ou não se manter. Depende da sua abertura para o mundo, da quantidade de contato e conexão que você tem com quem interage com você e com tudo que vem a acontecer nos domínios próximos ou distantes do universo desconhecido que vive bem debaixo do seu nariz. É por isso que algumas pessoas dizem que uma separação, qualquer que seja ela, é sempre o fim de uma língua, aquela que foi desenvolvida pouco a pouco pelos envolvidos e que agora permanecerá interrompida, um idioma fóssil geolocalizado na memória, sem falantes fora do mundo das recordações.

A linguagem surge da observação. Cada palavra, frase e gesto vem de um exercício de atenção que, sem a gente perceber, se transforma em uma outra coisa. A linguagem então também é memória, mas o que não é memória? Não importa. Ela é cada um de nós, mesmo nascendo do encontro com outras pessoas. O que é humano e não vem desse paradoxo entre o eu e nós? A linguagem é o que temos. É o que nos permite formular sozinhos ou acompanhados aquilo que é aprendido ou percebido. O que passa pelos sentidos e fica, provoca os neurônios-espelhos e dura além de um espasmo. Para cada povo ou indivíduo, a linguagem é uma identidade que vem de algo anterior, algo que só existe a partir do outro, algo único e em constante mutação. O encontro do eu com o nós, da rotina com o novo, do espontâneo com o que já foi pensando antes, do corpo com qualquer coisa.

A linguagem é absurda. O que eu chamo de amarelo não é o mesmo amarelo que você vê. O que se conhece como cor da pele não é a cor de todas as peles. Os gregos antigos não conheciam a cor azul, porque o mar e o céu assumem muitas tonalidades além. O nome das coisas nos situa no mundo, nos dá palavras para contar o que só a gente pode contar, mas não se bastam. Uma língua pode até ser criada com um fim específico, como o ficcional právico de Os Despossuídos da Ursula Le Guin ou o esperanto do mundo que conhecemos, mas somente no uso as palavras encontram a vida, se transformam e ganham os contornos das idiossincrasias. Nem precisa ser poeta para fazer uma metáfora, nem Guimarães Rosa para ousar um neologismo. Muito menos atuar como personagem italiano de novela brasileira para gesticular até torcer o que dizem as palavras pronunciadas com um sotaque que só existe no mundo da ficção.

A linguagem é um vírus. Ela muda, ela circula, ela precisa de contato para continuar. Ela pode ser transmitida. Ela tem que ser transmitida. Talvez nem o isolamento total consiga parar essa contaminação. Algo fica, eu sei que fica.

A linguagem é um erro. Ninguém consegue dizer o que quer ou precisa. Emissor, receptor, mensagem, tudo, absolutamente tudo, que envolve nossa vontade de se fazer entender é feito por caquinhos que se unem apenas pela liga da saliva. Sem cola escolar ou super bonder, apenas saliva. O papel pode se rasgar se a gente umedecer demais a mensagem, virar uma bola de cuspe que pode ser moldada até atingir qualquer forma, esculturas do que se quis dizer ou se quis entender. Ou pode vir seca, sem sentido, e ainda assim chegar rasgando a pele fina das mãos ou a garganta originária. 

A linguagem é bestial. O cachorro late, o gato ronrona, os grandes felinos rugem, os pássaros cantam, os lobos uivam, o ser humano canta e o português cria palavras para referenciar a comunicação e os coletivos desses e outros animais. E tem as interjeições, os feromônios, as garras, a peçonha, as multidões e, de novo, o diferente. E do diferente origina-se também tudo aquilo que alguns chamam de monstros, esses bichos que a gente aprende a imaginar a partir desse medo do Outro que nos une e nos separa. E tem também a comunicação interespécies, que me faz entender as piscadas carinhosas dos meus gatos e também seus rabinhos que em um único movimento me avisam que eles querem continuar brincando. E assim surge mais um dialeto, esse centrado no aqui e agora da minha casa. E isso acontece também via tweets, emails, posts, mensagens instantâneas, chamadas de vídeos e áudios de cinco minutos. As amizades e as línguas surgem na fricção dos interesses comuns com tudo aquilo que a gente inventa.

A linguagem é neurociência, linguística, gramática, programação, biologia, antropologia, esporte, ABNT e arte, ela é língua, boca, dentes, bochechas, mãos, postura, músculos, corpo, careta, máscara. É indomável, capaz de invadir territórios, criar espaços, transformar o meu, o nosso, modo de dizer. É meme, é incômodo, é risada, é troca, é terror, é guerra, é você, nós, eles… sou eu. 

A linguagem é uma brincadeira, são as peças de lego que a gente usa para montar e desmontar cenários e narrativas, tentando desesperadamente contar para alguém um pouco sobre a convergência dos universos que somos com o que percebemos em contato com os outros. É o que eu tenho para satisfazer minha vontade de tentar explicar porque escrevo, tagarelo, gesticulo, observo, crio, sonho, mexo as pernas, batuco mesas e explico o cotidiano. É o que me faz sentir parte, buscar sentidos, fazer perguntas, formular resposta, ligar o computador e escrever uma mensagem para um destinatário desconhecido, elaborar experiências, abrir um caderno e rabiscar com uma caneta rosa um monstro com cabeça de mulher, rabo de cavalo, grandes caninos e tentáculos abissais. É o que me leva a amar conversar de todas as formas e com todos os animais, inclusive com uma gata preto e branca que tem as narinas rosadas como os meus mamilos e eu só conheço pela internet. 

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Notas sobre as cidades que afundam em dias normais

Acervo Pessoal – Imagem postada também no meu Instagram
O encontro

Cidades afundam em dias normais, o mais novo romance da escritora, podcaster e ilustradora Aline Valek, foi tema de um encontro especial, com participação da autora e tudo, no meu clube de leituras, o Clube Cidade Solitária.

Durante o papo, fomos 18 pessoas no total, todas bem empolgadas para compartilhar e ouvir as relações e análises que outros leitores com repertórios tão diferentes. Cada comentário puxando o outro, ampliando a leitura de cada um, num movimento que incluiu a própria Aline, que trouxe para gente muitas informações sobre seu processo criativo no todo e também o envolvido diretamente na construção dessa história.

Em certo momento, a escritora compartilhou que esse livro começou a nascer a partir de uma caixa de fotos de pessoas desconhecidas que ela teve acesso. Vendo aquelas imagens sem sequência e sem demais informações, a ideia surgiu.

A narração desse processo me lembrou a descoberta do trabalho da fotógrafa Vivian Maier. Segundo o documentário Finding Vivian Maier, uma caixa de fotos de trabalhos dela foi arrematada por um caçador de tesouros em um leilão. Ao abrir a caixa e observar as imagens, ele suspeitou que aquelas fotos eram mais interessantes do que pareciam e, a partir desse momento, essa fotógrafa que passou a vida na invisibilidade do trabalho de babá começou a ser descoberta.

Esse filme se esforça para tentar contar a história da fotógrafa a partir do que foi sendo garimpado depois de sua morte. Além das caixas com suas fotos e demais pertences, o que restou de Vivian mora na memória de seus antigos e diversos patrões. O trabalho dos que hoje tentam lucrar a partir dessa fotógrafa muito talentosa é um pouco semelhante ao que tentamos fazer ao ler o livro da Aline, ainda que as fotografias presentes em suas páginas não sejam, digamos, visuais.

A dúvida

Como funciona a memória? A minha, a sua e também a nossa. Como se define o que vamos lembrar e o que vai desaparecer nesse lamaçal de rostos, causos, banalidades, violências e urgências cada vez mais frequentes, talvez frequentes demais para continuar a caber nessa palavra? Como a forma que lembramos afeta como vamos ver aquilo tudo agora e no futuro? Como lembrar e esquecer podem se relacionar tanto com buscar e perder? E quão grande pode ser o abismo entre lembrar e contar o que se lembrou?

Como uma cidade se forma, permanece e afunda? Como uma cidade é lembrada? Como uma cidade atravessa o tempo? E a vida de cada um? Como cada pessoa surge, permanece e desaparece? Como se conta a história de um povo?

Somos o que lembramos? E onde anda a verdade se cada um tem a sua?

Como se dá o processo da memória? E das relações? E da criação? A criação surge a partir da vontade de se expressar? De contar a nossa própria história? De elaborar o que se passou? De ser lembrado e de lembrar? De não deixar desaparecer alguma coisa? De não se deixar desaparecer e nem os seus? Como organizar lembranças pode parecer tanto um processo de colagem? Como cada cena pode parecer tanto uma fotografia? Como falar de tempo, processos, escola e adolescência pode nos fazer pensar tanto no Brasil?

O processo

Pensar na adolescência envolve encarar quem somos hoje e como nos tornamos essa pessoa. Pensar em tempo é se ver exposto às contradições do registro e do esquecimento. Pensar na dúvida é perceber que na maioria das vezes descobrir novas indagações é mais interessante ou, no mínimo, mais realista que qualquer resposta que podemos encontrar. Ler esse livro é pensar nesse misterioso processo que mescla o desejo de narrar, de fugir e de ficar.

Os dias normais

As histórias de Kênia, Tainara, Érica, Tiago, Rebeca e outros antigos moradores de Alto do Oeste são relatos individuais de uma cidade alagada em um processo lento e contínuo de abandono. O fim do mundo de cada um desses personagens — e o retorno curioso dessa terra tantos anos depois — foi somente mais uma manchete curiosa para o resto do país. Enquanto a cidade afundava, cada um fazia o que podia para não afundar junto, enquanto tentavam seguir suas vidinhas como antes. Ninguém de fora, estado ou não, deu as caras nesse processo que, de certa forma, foi sendo ignorado no dia a dia por todos que ali viviam. A tragédia virou costume, como de fato acontece no Brasil. A tragédia virou fonte de cliques e lucro, como também acontece todo dia.

Cidades afundam em dias normais, além de abordar temas como memória, amizade, adolescência, vida no interior e fotografia e outros processos, artísticos ou não, fala também sobre desalento, declínio e desesperança em um sentido coletivo. O que nos faz pensar também na chegada e permanência do fascismo, e é possível dizer que não deve haver nada mais brasileiro que esses sentimentos nesse momento.

Aline Valek escreveu uma obra que dialoga com nossas urgências e medos e a experiência de leitura dessa história nos ajuda a elaborar a prática de se viver em meio aos diversos fins do mundo que nos cercam. A gente busca respostas imediatas o tempo todo, mas talvez precisemos, primeiramente, entender de onde partimos. A professora Érica concordaria com isso, porque sabe que as memórias pertencem ao futuro. Só se conta histórias para frente”.

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Leia também: “Buscando Vivian Maier”

As Copas e as chagas de uma realidade fantástica

Nuevo Gasómetro – Foto de divulgação

Gabriel García Márquez é considerado o pai do realismo fantástico, apesar de ter dito uma vez que sua obra representava só realismo. “A realidade que é mágica. Não invento nada. Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação” disse o autor em algum contexto que não fui capaz de descobrir qual, apesar — e talvez justamente por — essa frase se repetir incansavelmente em matérias e mais matérias sobre ele, especialmente aquelas que anunciaram a sua morte em 2014.

Me volto para essa afirmação de Gabo vez ou outra nos contextos mais diferentes. Lendo “Água Funda”, único romance de Ruth Guimarães, para o meu clube de leituras, me peguei pensando nela. Nessa obra, um narrador nos conta causos e mais causos sobre uma localidade. Com um texto muito oral, próximo da linguagem caipira, Ruth apresenta para o leitor um lugar, um tempo e suas pessoas, mostrando trajetórias e o quanto o olhar dos personagens é permeado pela natureza, as relações, o mundo e seus mistérios. A cada causo, muito pela linguagem, mas não só, me vinha na mente as histórias que minha avó materna me conta sobre a mãe, suas próprias jornadas por Minas Gerais e o que, segundo ela, o povo antigo pensava sobre uma variedade de coisas. Enquanto lia, percebia palavras que fazem parte do vocabulário da minha avó, especialmente quando ela conta histórias do passado, que em muita coisa é próxima ao que escreve Ruth. A opressão, o trabalho, a natureza, as festas, o truco, tudo isso e mais o que não tem muita explicação. Sendo atravessada pela obra, também lembrei do meu avô paterno e as histórias de terror que ouvi dele. Histórias essas muito próximas das contadas no livro, todas narradas em primeira pessoa, partindo dele ou recontando o que ele ouviu que aconteceu com um amigo ou um amigo de um amigo dele. O mistério da vida todo ali, limitado apenas pelo alcance das palavras, mas exposto com toda aquela atmosfera nomeada como mágica, apesar de Gabriel e muita gente não considerar bem assim.

Gabriel García Marquéz diz ter escrito a partir das histórias e memórias que cresceu ouvindo em Aracataca, cidade colombiana onde nasceu. Ruth Guimarães foi uma pesquisadora da cultura popular com o olhar e os ouvidos atentos para recolher, registrar e estudar essas histórias que circundam as pessoas, passando pelo famoso causo, essa prosa cotidiana marcada pela troca, pela memória e pela fofoca. Ambos, ao escreverem, contaram com essa magia tão presente nesses relatos durante o processo de efabulação de suas histórias.

No discurso do Nobel em 1982, o autor colombiano disse ao falar da solidão da América Latina: “No entanto, diante da opressão, do saque e do abandono nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios nem as pestes, nem a fome nem os cataclismos, nem sequer as guerras eternas através dos séculos e dos séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte”. Relendo a frase hoje, fazendo a pesquisa para esse texto, entendi que parte dessa magia mora na capacidade de criar e se recriar, apesar de tudo. Essa figura latino-americana que Gabriel ajudou a construir, junto a outros escritores de outros países da região, é a de um sobrevivente que se alimenta, principalmente, da vontade de continuar. E, numa região como a nossa, isso significa quase que ter fé que algum outro futuro é possível. E por aqui essa fé costuma ser uma miscelânea de símbolos, origens e personagens. Enquanto humanos, criamos, contamos, formulamos tudo que move a vida partindo desse desejo-angústia e a nossa maneira de fazer isso vai muito além da racionalidade típica, cartesiana. Especialmente aqui. É preciso ter esperança, paixão, vontade, amor para continuar e nossas vidas e nossas criações são demarcadas por isso de alguma forma. E talvez essa coisa sem nome seja a explicação de parte do apreço pelo futebol que a gente vê no Brasil, na Colômbia, na Argentina, no Chile, no México e em outros países próximos.

Quando eu penso no futebol nesse contexto, me vem em mente a notícia do torcedor do Racing que comemorou o título de seu time do coração carregando o crânio de seu avô e, ao ser entrevistado, disse que aquela ossada que carregava era seu amuleto de sorte e que seu querido parente estava orgulhoso daquela vitória. Evoco também a Libertadores, com todas as suas incoerências e emoções, e a alta frequência de cães que invadem campos de futebol bem durante esse campeonato.  E, inevitavelmente, lembro do “Eu acredito” do Atlético Mineiro, esse time que me conquistou e me é tão próximo, apesar de eu não ser exatamente uma torcedora típica dele ou de qualquer outro.

O futebol, para muitos, é uma fuga da realidade, mas uma fuga marcada pela capacidade de se ter esperança na virada. A escolha do time do coração não é racional, ela vem de um outro lugar. A paixão não é, necessariamente, pela equipe que une mais talentos, probabilidades de vitórias e títulos conquistados, ela parte do afeto, do inexplicável, daquela coisa que bate ou não. Um jogador muito carismático pode mudar tudo, pode fazer o filho de uma família de cruzeirenses escolher o galo como seu amor futebolístico, porque dali surgiu uma identificação esquisita misturada com o desejo de ser, de poder.

Como tudo que vem da paixão, o futebol é marcado por uma boa dose de coisas inexplicáveis, mistérios e histórias quase mágicas. Transformamos jogos reais em momentos praticamente mitológicos e seres humanos falhos, complexos, que às vezes carregam em si defeitos e mais defeitos de toda uma cultura de reforço de uma certa masculinidade, em verdadeiros ídolos. Digo masculinidade porque é justamente por causa dela e seu machismo consequente que o futebol feminino, apesar de incrível e mexer com nosso âmago desse mesmo jeitinho, ainda é ignorado pela maioria que torce, vibra e se apaixonada por equipes, jogadores e sonhos.

Pensar na origem do amor por uma equipe, me fez recordar da informação que diz que, cientificamente, a gente gosta tanto do azarão, de torcer pelo mais fraco, porque somos motivados por uma tal de economia emocional. Torcemos assim buscando maximizar o prazer a partir do improvável, porque a perda ali, por ser esperada pela probabilidade, nos faz pensar que a vitória é um lucro maior. Entendo o argumento, faz bastante sentido até, mas a seleção brasileira, por seu penta histórico, não carrega essa pecha de fraca e duvidosa, mas ainda assim segue tendo muita torcida. Por que? Porque o Brasil vencendo, mesmo para outros países, significa também dignidade, direito de sonhar, uma vitória contra aqueles que ganham em tudo, todos esses sentimentos que ajudam a fazer do futebol esse esporte que mexe com tantos, especialmente os latino-americanos. Nossas escolhas e emoções esportivas são marcadas por aspectos sociais, políticos e, claro, emocionais. Buscamos vinganças coloniais torcendo numa Copa do Mundo organizada por uma entidade bem controversa e nos sentimos exaustos vendo os Estados Unidos no primeiro lugar do quadro de medalhas das Olimpíadas a cada 4 anos.

Escrevi tudo isso para chegar no que me deu a primeira fagulha desse texto: a morte de Diego Armando Maradona. Toda aquela comoção, dor, ilusão de proximidade e relatos emocionados me fizeram pensar nessa paixão que o esporte é capaz de fazer surgir e como as pessoas encontram em Maradonas uma esperança que representa a pulsão de vida perante a morte, a miséria, o horror, junto também ao desejo em sair por cima, porque somos humanos, afinal.

Os dois gols do Maradona contra a seleção da Inglaterra em 1986 representam isso muito bem: o gol roubado — a famigerada mão de deus — a Argentina saindo por cima da Inglaterra em algo, apesar de tudo, e o gol mais belo de todas as Copas, o gol que vem do imo, do desejo, da vontade de ser foda, do talento e da beleza que não podem ser roubados, apesar de seguirem tentando a todo custo.

Quando parei para pensar no futebol e fui parar no realismo, mágico ou não, eu cheguei a conclusão que a gente chama de magia e mistério o que envolve todas essas coisas que vem de dentro. Não sabemos como surge o amor, a paixão, o medo, o ranço, a raiva, o rancor, mas a gente conhece muito bem tudo isso. Criamos e consumimos histórias, inclusive as narrativas e vivências esportistas e os causos do cotidiano, para lidarmos com essa infinidade de coisas que não sabemos explicar muito bem, mas é um dos principais componentes humanos.

No dia 17 de maio de 2017, eu estava em Buenos Aires e, sem muito planejamento, fui parar no estádio Nuevo Gasómetro para assistir San Lorenzo versus Flamengo. O time argentino tinha perdido os dois primeiros jogos da fase de grupos da Libertadores, mas conseguiu se classificar para a fase seguinte com uma vitória de virada com gol no último minuto. Desse dia, eu me lembro do frio, por causa do estádio todo aberto e a localização bem abaixo do trópico de capricórnio, e da festa. Fui contagiada pela emoção que tomou conta da atmosfera do lugar. Eu sorria, porque sorriam, cantavam, festejavam ao meu lado, e, no meio daquele caos de sensações, ouvi uivos humanos que terminavam cantando a frase “como sufri”, porque amor, esperança e a improbabilidade tinham vencido, apesar de tudo.

Nesse dia, apesar de contagiada, eu compreendi que jamais entenderia por completo o jogo que aqueles torcedores que vibravam ao meu lado vivenciaram. Ali percebi a grandiosidade de toda essa gama de sentimentos que envolve o torcer e o ser, mas que para mim ainda parecem mais com um feitiço poderoso ou uma ficção que une cotidiano e fantástico. Agora sei que essa magia me atinge de outras formas, diferentes e semelhantes ao que o futebol é capaz de despertar. Para mim vem, inclusive, por meio da literatura, da linguagem, das pessoas e da natureza. De todo jeito, estamos todos falando de amor, paixão, esperança e desconhecido e nos conectando a partir disso. Gabo que o diga!

Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para esse mês de escrita e leitura foi tarô e, durante esse período, eu postei textos escritos a partir desse estímulo. Para essa última semana, elas escolheram o naipe de copas, que é diretamente relacionado ao amor, às emoções e à água e sua imprecisão.

“Sempre vivemos no castelo” e o poder da dúvida

Acervo pessoal — Adquira os livros de Shirley Jackson aquiaqui.

Tentamos a todo custo desvendar o futuro. Essa talvez seja uma das principais características da nossa espécie. A gente pensa bastante no que vai acontecer. Eu falo isso no achismo, no sentido mais papo de bar possível, mas não duvido que deve ter algum paper dizendo que a maneira que nos preparamos para o amanhã foi essencial na corrida evolutiva ou qualquer coisa do tipo.

Se ontem pensávamos tanto no porvir, hoje pensamos mais ainda. Ouvimos falar de metas, objetivos e sonhos o tempo todo. É a era dos coachs, da vida como corrida, da busca pela produtividade 24/7. Parece que todo mundo tem — ou deveria ter — um plano para si dentro dessa lógica. Enquanto isso, a ciência nos alerta sobre as mudanças climáticas, vivemos uma pandemia respiratória, o lixo que produzimos se acumula nos oceanos e a realidade lembra os 99% da missão quase impossível que é tentar escapar de mais precarização. Resumindo: vivemos numa era que supervaloriza certezas e nos ilude a partir delas, enquanto a incerteza de que há um futuro possível nos cerca.

Que o futuro é incerto, a gente já sabe. Talvez a questão então não seja tanto o amanhã e a forma que conseguimos manter provisões, mas sim a nossa capacidade de formular o tempo no todo. A gente se prepara para o futuro pelo que o passado nos ensinou. A gente formula o presente com as ferramentas que nos foram dadas antes dele. O tempo acontece em nossas análises. O amanhã só existe quando sabemos que o ontem já passou. Talvez por isso a gente valorize tantos os clássicos. Eles nos ajudam a entender o hoje, inclusive esteticamente. E, a partir disso, mas de uma maneira torta, a gente tenta controlar o tempo em busca desse sistema que nos promete certezas, enquanto destrói tudo que talvez fosse capaz de garantir um futuro menos duvidoso.

Meu primeiro contato com a obra de Shirley Jackson aconteceu durante uma pandemia que levou a Organização Mundial de Saúde a aconselhar o isolamento social para a população e isso acabou tendo como consequência individual todo esse fluxo de pensamento sobre certezas e incertezas que você leu para chegar até aqui. Por sinal, acho que eu devo me desculpar por isso. Na verdade, sendo mais exata, meu primeiro contato com a figura da autora também foi nesse período. Antes de 2020, eu sabia que ela existia, que ela referência do Neil Gaiman, Stephen King e Donna Tartt, mas foi com o filme “Shirley”, que não se coloca como uma cinebiografia, tem a Elisabeth Moss como protagonista e foi resenhado por mim na Revista Subjetiva, que conheci um pouco do universo da autora e ela me atraiu.

Poucos meses depois, apesar de eu morrer de medo de tudo que é definido como terror, me arrisquei e coloquei o livro “Sempre vivemos no castelo”, último romance escrito pela escritora, como leitura de outubro do meu clube literário Cidade Solitária. Acabei lendo tudo quase num fôlego só e de quebra vivi um dos encontros mais imersivos do grupo.

O livro — e o papo sobre ele — me pegaram totalmente. As irmãs Blackwood, Constance e a narradora Mary Katherine, são personagens intrigantes: a primeira pela sua passividade, domesticidade e estranha docilidade e a segunda pela sua sede de aventura, estranheza, manias e desejo pela morte de todos que a incomodam. Da grande família Blackwood, sobrou elas, sendo que Constance foi absolvida judicialmente pela morte dos outros, e o Tio Julian, um homem adoentado, mas ainda assim muito espirituoso.

O enredo se inicia com uma ida de Mary Katherine, conhecida como Merricat, ao vilarejo. Todos odeiam Merricat. Ela e sua família são uma pária, mesmo antes da morte por veneno de alguns dos entes que a compunham já eram. Com a suspeita que ronda as irmãs sobreviventes, isso só piorou. A personagem responde esse desprezo e o bullying que sofre com pensamentos sádicos sobre a morte de todos que passam pelo seu caminho. (Sabendo da influência de Shirley na obra de grandes escritores, nesse momento é impossível não lembrar um pouco de “Carrie, a estranha”.)

Ler uma obra narrada em primeira pessoa é sempre um exercício que envolve aceitar ser enganado. Quase desejar por isso. A história, ao começar pelo ponto de vista da Merricat sendo hostilizada, induz o leitor a ficar ao lado dela, ainda que desde o início a personagem já manifeste seus desejos de morte e violência. E seguimos nessa lógica, da cidade para a casa, confiando e desconfiando, enquanto fingimos considerar tudo que está sendo dito suficiente, ignorando a indefinição do mundo que a apresentação de uma única verdade representa.

Acompanhar a narração de Merricat é se deparar com a dúvida o tempo todo. Como personagem imprevisível, infantil, caótica e bem deslocada da realidade, nós, enquanto leitores, nunca temos certeza de nada e por isso temos a sensação de delirar junto. A história contada está contida também no que não é falado, no mistério, em tudo que não sabemos do passado. Cabe a nós somente supor com o pouco que a narradora-personagem nos dá.

O terror construído por Shirley Jackson é centrado nos personagens, nos horrores humanos, no mistério que cercam certas histórias e personalidades. Nos incomodamos com o que não sabemos do outro, com o que a gente pode estar deixando passar, com essa possibilidade de não conhecer o suficiente alguém, seja semi-conhecido ou uma pessoa com quem convivemos diretamente. Queremos saber o que tem de errado ali, mas Shirley não entrega tudo. Ela nos deixa com a dúvida e com o desejo de saber mais.

Merricat tem dezoito anos, mas se comporta como uma criança. Ela é praticamente uma adulta, mas conversa com seu gato Jonas o tempo todo, faz amuletos, escolhe palavras mágicas e enterra coisas no quintal. Constance cozinha muito bem, cuida de plantas e parece entender tudo sobre como essas duas coisas se complementam. Ambas são duas mulheres vivendo isoladas, que seguem solteiras e parecem viver em uma rotina de perfeita simbiose que desde o início do livro já envolve a ideia de isolamento como proteção. Shirley brinca com isso, com esse comportamento que indicaria aos olhos da sociedade uma possível bruxa ou algo muito errado — ainda que não houvesse o passado da família para somar — e com isso aborda o medo do diferente, o peso dos estigmas e o poder dos boatos, enquanto nos deixa, mais uma vez, presos em mais uma indefinição: há ou não algo mágico ou sobrenatural nessa história?

Apesar de um assassinato coletivo por envenenamento ser um dos componentes principais da história, a trama de Shirley não é nada policial. Ela até trabalha um pouco a curiosidade que essas histórias despertam, mas foca sempre naquele restrito e perturbador universo das irmãs. No fim, apesar de tudo que nos é dado, não sabemos das motivações iniciais dessa história. Sem muito do passado, o presente parece uma incógnita e isso abre espaço para que a gente crie toda espécie de teoria para tentar sanar as dúvidas que ficaram. Precisamos aceitar a incerteza que fica e a completa falta de controle da vida e dos outros que isso indica, um exercício difícil para os nossos tempos. Só sabemos que as duas sempre viveram no castelo e que o melhor próximo passo que podemos dar é começar a leitura de “A assombração da Casa da Colina” logo. A gente diz que é por mera curiosidade, interesse em ler mais da autora, mas a grande verdade é que a gente sente que precisa entender algo mais e por isso inicia uma busca por qualquer coisa que possa funcionar como explicação. A gente acredita que os respingos de uma obra na outra ou da vida no trabalho literário indicarão as respostas que não tivemos e não aceitamos não ter. Shirley provavelmente sempre soube que nada assusta mais uma pessoa do que não saber.


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Buscando Vivian Maier

Quem foi essa mulher?

Quem foi Vivian Maier? Esse nome que até a morte dela significava apenas uma babá, uma francesa que não era francesa, uma pessoa solitária, uma mulher alta, uma mulher que muitas vezes mentia seu nome em situações cotidianas, uma acumuladora, uma pessoa que tinha uma pisada característica, uma mulher esquisita, uma mulher misteriosa e uma série de outras coisas que muita gente que a conhecia poderia dizer, mas não disse no documentário que vi sobre ela. Esse nome agora, além de tudo isso e mais o que não foi dito e conhecido, também significa fotógrafa famosa.

Conforme conta o filme “Finding Vivian Maier”, indicado ao Oscar como melhor documentário de longa-metragem em 2015, Vivian Maier foi descoberta após sua morte, numa dessas histórias bem comuns entre mulheres artistas ou mesmo cientistas que nos fazem pensar, com bastante pesar, nos vários trabalhos incríveis perdidos para sempre. Uma caixa com seu trabalho de fotografia foi comprada em um leilão por John Maloof. Ao mexer na compra, ele suspeitou que aquele trabalho era muito bom e teve a confirmação disso ao expor as fotos dela no Flickr. A partir daí, Maloof tenta descobrir mais sobre a dona daquelas fotos e juntar mais e mais do material que ela deixou como legado, mas que até então era visto apenas como tralha e só passou a ser importante porque podia trazer algum lucro para o homem que a descobriu.

O documentário conta a busca por informações sobre essa mulher que, apesar de acumular comprovantes de compras, caixas e mais caixas, jornais, fitas, fotos, rolos de câmera e famílias com quem trabalhou pouco deixou de vestígios sobre quem era.

Vivian Maier é um mistério e a única forma de desvendá-la minimamente é a partir da memória daqueles que conviveram com ela enquanto babá. Memória que, com a descoberta de que aquela mulher escondia um enorme talento artístico e agora é assunto de documentário, pode ou não ter sido afetada. Se lembrar é um exercício não confiável, marcado por quem somos quando lembramos e o contexto daquela lembrança e isso se acentua quando falamos de alguém de um passado distante, imagina quando nessa equação há também uma filmadora e uma vontade enorme de se dar importância na trajetória de uma mulher já falecida.

Essa questão da memória e sua confiabilidade é bem explorada no filme, porque a obra usa os relatos contraditórios para expor o quanto cada lembrança ali narrada não pode ser vista como um fato inequívoco sobre aquela pessoa que não pode falar sobre si, mas também explora as narrações parecidas, que se repetem ou complementam, para tentar criar ao menos uma sombra de quem aquela mulher foi, enquanto o mistério de Vivian Maier perdura.

Vivian Maier é uma nova velha obsessão artística minha não só porque ela produziu imagens incríveis que me tocam em n aspectos, mas também porque tudo que se sabe de sua vida tem a marca da solidão. Não é um parente ou um amigo ou interesse amoroso que conta para nós quem ela foi, são seus empregadores ou mesmo atendentes de lojas que frequentava cotidianamente. A história dessa fotógrafa é desenhada por essas pessoas com quem ela dividiu uma parcela mínima de sua vida, ainda que ela vivesse por um certo período na casa de algumas delas. Pessoas que hoje narram que a viam carregando sua câmera para todo lado, mas nunca demonstraram qualquer interesse nisso quando ela ainda era viva.

Podemos tentar saber um pouco mais sobre essa mulher misteriosa também a partir de suas fotos. Com essas imagens, podemos conhecer onde ela circulou, o que ela viu, o que chamou a atenção dela, o que ela percebia do mundo e até dela mesma e principalmente o que ela queria mostrar.

Vivian Maier produziu vários autorretratos. Muitos com seu rosto em evidência, outros com sua sombra e outros tanto que contavam com ela em meio ao mundo ao redor. Mundo esse que podia ser a rua, mas também vitrines de loja e locais fechados ou mesmo uma lembrança de sua viagem pelo mundo. Vejo nessas fotos uma certa demarcação de existência e uma investigação que envolve fotografia e o próprio corpo, rosto e identidade.

Como fotógrafa da cidade, podemos pensar em Vivian, acompanhada ou não pelas crianças que cuidava, circulando por Nova York e tirando fotos com uma câmera que ficava pendurada em seu peito. Será que podemos supor que circular era algo que ela gostava? O que nos personagens da cidade a intrigava? Que ela queria, com essas fotos, mostrar como o mundo é de fato? Só sei que gosto de pensar nela na cidade. Andando para todo lado, investigando o mundo, as pessoas, as expressões, as relações e cenas, buscando observar o que tinha ali e também estando nesse espaço que ainda hoje apresenta limitações às mulheres, mas que também pode representar a possibilidade, muitas vezes tentadora, de ser mais um no meio de tantos. Uma camuflagem.

Minha foto preferida feita por ela une com maestria o autorretrato, a cidade e o mundo, dela e dos outros. Ela é uma selfie no espelho, mas o espelho está sendo carregado por um homem. O rosto do homem não aparece. Apenas seu corpo que carrega o espelho está ali de costas. No espelho, ele está presente, mas sem estar, porque o corpo dele tampa a imagem que poderia ser refletida, deixando somente Vivian refletida e presente de fato. Ainda que a foto mostre a cidade, com uma transeunte em fundo, ela é a única que parece não estar em movimento, seguindo o fluxo. Nessa foto e nas outras várias dela da mesma “editoria”, ela observa sem ser observada. Camuflada ainda que parte daquilo tudo. Aparentemente tranquila com essa posição. O que me faz pensar se ela se sente tranquila nesse lugar social e pessoal sempre ou só quando fotografa. Essa solidão, ao menos na minha interpretação, às vezes me parece com autonomia, a autonomia de quem vive na casa dos outros e encontra na rua cheia uma liberdade maior que no sótão da casa que trabalha, mas as imagens não me parecem tão simples assim. Há nessa equação como ela quer se representar. Há até mesmo uma certa ambiguidade em algumas imagens, ambiguidades que evocam esse lugar de observação como um lugar de solidão. Ou eu vejo essa ambiguidade porque sei um pouco da vida da artista. Não sei.

“Finding Vivian Maier” tenta traçar uma biografia de uma mulher a partir de uma investigação marcada pela subjetividade de quem lembra e de quem analisa seu trabalho com o desafio de que a investigada era muito sozinha e fechada. Sem respostas definitivas sobre quem foi de fato essa mulher, o espectador termina o filme compartilhando a curiosidade com quem a conheceu, mas sente que nunca a entendeu.

O que Vivian buscava com suas fotos?


Para mim, Thaís, é impossível não vincular toda a história e trabalho de Vivian Maier com o livro “Cidade Solitária” de Olivia Laing. Nessa obra, Olivia investiga a relação da solidão com a arte e os efeitos desses trabalhos produzidos com esse condão ou por causa desse isolamento nas pessoas ao redor. Ela usa essas obras e a pesquisa que fez sobre os artistas para falar da própria solidão e do tabu que envolve esse tema. Centrado em Nova York, Vivian poderia ser uma das principais personagens desse livro.

Escrevo esse texto agora, porque ela e suas fotos me parecem interessantes sempre, mas no contexto de isolamento por causa do Covid-19, penso no quanto estar na cidade, se colocar nela como Maier faz em muitos de seus autorretratos, pode funcionar como uma forma de se sentir menos só quando é assim que a gente se sente. Mas também pode piorar o sentimento de inadequação social e de falta de conexão. E também pode ser uma fuga ou um amortecimento, que agora, em abril de 2020, muitos de nós desejamos. Entretanto, não estamos na rua, ou pelo menos grande parte de nós não deveria estar, e sentimos uma outra coisa: uma mistura de luto coletivo pelo que o mundo se tornou e pode se tornar com ansiedade, com desespero, medo da morte e com o medo de morrer sozinho, isolado, sem liturgias e despedidas.

Entre um prédio e outro, há um abismo. Há uma proximidade impossível de transpor, apesar de podermos ver as janelas e um pouco da vida privada dos nossos vizinhos sem conhecê-los de fato. Estamos rodeados de pessoas, algumas inclusive convivendo com mais de dez em um mesmo cômodo, mas sentimos tudo fora do lugar. É hora de aproveitarmos essa atenção dada ao tema da solidão, seja só ou acompanhada, para pensarmos em quem o mundo faz só e como tudo isso afeta quem já não se sente parte dele com ou sem pandemia. Sem esquecer que a solidão não deve ser tratada como um tabu vergonhoso e que no momento muita gente teme pela primeira vez nunca mais conseguir se conectar de verdade com algo e nem com alguém.


Todas as imagens utilizadas aqui foram retiradas do site http://www.vivianmaier.com/ e esse texto surgiu a partir de uma thread que fiz no Twitter. Se você gostou do que escrevi, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Sweek, Wattpad, Tinyletter e Instagram.

Kingmakers: as esposas por trás de grandes homens

Cena do filme “A esposa”

“Atrás de um grande homem, há sempre uma grande mulher” é um ditado popular que evidencia os papéis de gênero esperados pela sociedade, especialmente dentro do casamento.

O lugar do homem dentro da relação é o de protagonista, seus objetivos e sonhos estão sempre em primeiro plano, enquanto a mulher trabalha nos bastidores para que o homem atinja suas metas. O lugar da mulher nessa dinâmica é o de complemento do homem. Os sonhos e objetivos dela são deixados de lado e não são vistos como importantes.

A ideologia machista afirma que homens e mulheres se complementam e usa esse argumento para perpetuar a divisão sexual do trabalho e a submissão feminina. A capacidade reprodutiva feminina é colocada como um destino biológico que serve como justificativa para que o que eles chamam de complementação seja apenas subserviência a um único projeto de vida, o masculino. Esse caminho é colocado como natural porque em nossa cultura os homens são vistos como os detentores das ferramentas, talentos e habilidades necessárias para buscar um sucesso que não seja o de cuidado da casa e dos filhos.

“A esposa” é um filme impactante porque foca na mulher que foi colocada nesse lugar e expõe as ações que um dia a levaram a acreditar que esse era o melhor caminho possível e o seu arrependimento posterior.

Joan (Glenn Close), apesar de lidar com uma frustração crescente relacionada com o sacrifício que fez, se incomoda com o rótulo de vítima, porque entende que foi levada a optar por esse caminho devido a todo o contexto de exclusão, discriminação e oportunidades diferentes relacionadas com homens, mulheres e a visão de como um relacionamento deve ser.

A visão do mercado editorial sobre a escrita feminina, as expectativas pré-existentes do que é um relacionamento de sucesso, o destino feminino padrão, a energia e o enfrentamento necessários para lidar com escolhas que fugissem do que era esperado e a manipulação de Joe são alguns dos pontos que a fizeram sacrificar seus sonhos em função de trabalhar pelos dele. Por Joan ser capaz de racionalizar alguns desses fatores contextuais, ela acredita que escolheu esse destino, que o que ela fez foi uma negociação a partir do que era possível ser alcançado por ela.

Cena de um flashback do filme com Joan e Jon jovens

Naturalização do machismo, violência psicológica e “escolhas”

“Quem é Joan e o que ela quer, pensa e sente?” é uma pergunta que ocorre desde a cena do telefonema que informa que Joe Castleman (Jonathan Pryce), seu marido, é o mais novo ganhador do Nobel de Literatura e ainda deixa dúvidas na última cena do filme.

Flashbacks ajudam a construir a imagem de Joan, de Joe e do mundo que os cercava desde jovens. Por meio desse recurso, a gente descobre que Joan escrevia, que Joe foi seu professor e que ela ouviu de uma mulher escritora que a carreira literária era um desafio praticamente impossível para mulheres.

Da dinâmica familiar, que inclui até mesmo os filhos do casal, até a organização do Prêmio Nobel que conta com uma funcionária responsável por cuidar das esposas dos laureados, o lugar da mulher é o de acessório. A exposição de cenas relacionadas a esses dois fatores argumentam contra a imagem de não vítima que Joan se apega e nos dão pistas essenciais para entender quem Joan foi, quem ela se tornou e o processo que está vivendo.

Ser laureado com o Prêmio Nobel é um dos maiores reconhecimentos que existem. Escritores, personalidades políticas e cientistas sabem que esse é o topo máximo de diversas carreiras. Ser declarado vencedor pela Academia Sueca é ser colocado em um pedestal de qualidade e relevância. Só que esse pedestal da intelectualidade mundial parece ser algo que só pode ser alcançado por homens brancos, como o filme mostra ao exibir detalhes da organização do evento e a gente entende muito bem por conhecer as estatísticas que apontam que as mulheres são uma minoria entre os premiados.

Fica evidente que qualquer mulher que surgir como ganhadora do Nobel será uma exceção, para muitos, uma intrusa. O lugar delas é o de esposas, de kingmakers, as que se sacrificam na vida privada para que a parte masculina do casal brilhe no espaço público.

A cerimônia do Nobel, foco do filme, se passa em 1992, com Joan e Joe já idosos, mas as espectadoras de hoje, mesmo com décadas separando suas vidas dos eventos do filme, percebem — e, de certo modo, ainda sentem — as engrenagens sociais que fizeram Joan tomar as decisões que tomou durante a vida.

O que torna “A esposa” um filme importante é o fato de que a história nos permite refletir sobre acontecimentos que vemos como naturais e não o são e como isso impacta nosso cotidiano sem prêmio Nobel por perto.

O que causa estranhamento em nossa sociedade é a mulher que quebra com as expectativas de comportamento ligadas ao seu gênero e lidar com isso pode ser bem difícil. Sabemos que elas podem ser punidas, inclusive por meio da violência física e sexual, até por dizerem não a um colega e, por isso, mesmo sem querer, mulheres muitas vezes se guiam pelo que é dito adequado. O que pode ser uma fonte enorme de frustração, mas é encarado como uma alternativa aceitável por parecer garantir alguma segurança. Nesse contexto não dá para dizer que há de fato uma escolha livre.

A naturalização da violência psicológica e do machismo são fatores que fazem com que alguns espectadores e até mesmo a personagem tenham dificuldade de entender que o relacionamento exposto no filme é abusivo. Como não há presença de violência física e o casal parece viver momentos de cumplicidade, muita gente entende que Joe e Joan vivem apenas um relacionamento com momentos ruins e ignora todo o resto. Esse resto inclui manipulação, a ideia de que o sacrifício feminino como mãe e esposa é algo a ser esperado por parte das mulheres e a concepção de que apoiar um marido é deixá-lo ser protagonista da vida do casal e aceitar suas traições dentro do relacionamento. Visões de mundo tão comuns que para muitos é preciso olhar duas vezes para que se perceba que poderia ser diferente.

Imagem de divulgação do filme — Joan um pouco atrás de Joe diz muito sobre a realidade das mulheres.

Indústria cinematográfica, machismo e o lugar da mulher

Essa visão de homens como protagonistas e mulheres como coadjuvantes é tão perniciosa que se apresentou até mesmo na feitura do filme. Glenn Close afirmou para a Agência NPR que a obra, adaptação de um livro de Meg Wolitzer, demorou mais de um década para ser feita porque atores de prestígio do meio se recusavam a aceitar o papel de Joe. Eles não queriam estrelar um filme chamado “A esposa” por não serem o destaque principal da obra e não receberem a maior remuneração.

O machismo da indústria cinematográfica não é bem uma novidade. Filmes dirigidos por mulheres raramente são premiados, bem distribuídos ou patrocinados. Os papéis voltados para mulheres privilegiam mulheres jovens, brancas e dentro do padrão de beleza, enquanto homens mais velhos são colocados para contracenar com mulheres cada vez mais jovens e, por essa razão, as atrizes perdem espaço na carreira bem mais cedo que eles. Além disso, análises dos premiados pela Academia do Oscar como Melhor Filme dos últimos anos apontam que personagens femininos nesses filmes tem um tempo de fala bem inferior ao de personagens masculinos. Todas essas questões se relacionam com a visão de que o espaço público, o sucesso, as carreiras importantes, são de protagonismo deles. Para as mulheres, o destino é ser coadjuvante, fazer casal, enfeitar e se dedicar aos cuidados de sua família.

Nos roteiros e bastidores dos filmes e também na vida real, a lógica vigente ainda é a que empurrou Joan para o sacrifício de sua subjetividade. Perceber isso é um passo para que essa realidade mude e esse debate, junto com a atuação impecável de Glenn Close, torna “A esposa” um filme necessário.

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