Lygia, a contemplação e os mistérios que nos movem

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Acordei pensando em Lygia Fagundes Telles hoje, um dia após saber que ela se tornou só memória. Minha história com Lygia é confusa, cheia de idas e vindas, como a leitura de contos às vezes pede. A permanência e uma relação de continuidade é algo mais próximo dos romances e dos romancistas — gênero que a autora também explorou, mas que conheço menos — mas contos podem ser lidos esparsos e, ao mesmo tempo, com muito afinco. Você pode passar meses lendo um conto só, como você pode fazer com um romance, apesar da natureza do conto não costumar evocar esse tipo de experiência de leitura. De todo modo, lendo repetidamente ou não, um conto pode permanecer com você por muito tempo. O conto pode até tentar ser mais leve, dar a possibilidade de ser lido avulso ou mesmo ser impresso numas poucas folhas de papel e solto no mundo como um presente, mas também pode se fazer ficar, se tornar permanente dentro de cada um.

Os bons contos são como cometas que viajam pelo universo em órbitas que nem a máquina mais moderna da NASA é capaz de apreender completamente. A gente só sabe mesmo que um dia eles voltam. 76 anos depois, como o caso do cometa Halley, ou antes. E nesse retorno, ele bate diferente. Ao menos os contos da Lygia sempre foram assim pra mim: misteriosos, cheios de camadas e feitos para se deslocarem sem parar até enfim voltar para aqui dentro. E esse regresso sempre acontece quando eu estou pronta para perceber tudo diferente, ainda que eu não saiba disso na hora.

Uma temporada com uma leitura é suficiente para você ficar com alguns personagens, sensações e experiências pra sempre mesmo tendo lido apenas uma vez. Só que esses personagens, sensações e experiências se tornam uma névoa cada vez mais densa e misturada com o seu eu. No fim, você engole o que leu e o que fica é a lembrança de um prato gostoso, estranho ou incômodo que você comeu um dia. Um prato que pode ter te marcado bastante e mudado como você vê o mundo, mas ainda assim você não consegue lembrar exatamente seus sabores, distinguir cada um dos ingredientes, rememorar como estavam as texturas de cada um dos elementos formadores do prato. Você só se lembra muito bem onde ele foi comido, com quem você estava e sente saudade do momento, da experiência em si, ainda que com o tempo até ela vá perdendo seus contornos próprios.

A leitura parece ser só um engolimento, mas o que acontece quando a gente lê é outra coisa, é uma fusão. Esse é o poder de criação do leitor, o texto é digerido até tomar uma forma nova e é essa possibilidade, que sempre pode ser melhor aproveitada quando é ativado por autoras como Lygia, que torna a experiência de leitura algo único, independente do gênero do texto lido. Foi Lygia e suas camadas, seus mistérios e seu indizível que ensinou toda uma geração de leitores a criar lendo. Foi ela que nos deu as enzimas capazes de digerir a linguagem e, assim, conseguir formular a vida mesmo quando a gente não entende muita coisa dela. Foi Lygia, junto com suas amigas, que me ensinaram a ler melhor e querer fazer isso também junto de outras pessoas.

A morte de Lygia me tocou muito, mas sei que apesar da perda desse corpo, ela permanecerá viva na memória dos seus, sejam eles familiares, amigos ou mesmo somente leitores. Os relatos de descoberta de Lygia que tenho lido nas redes sociais desde ontem se entrelaçam com o da descoberta do amor pela palavra e pela arte. Leio todos eles sedenta para entender como se dá esse processo, essa conexão, essa nova história que se desenha quando alguém encontra outro alguém, especialmente quando envolve a literatura. Leio tudo isso sem parar com medo de um dia eu me esquecer que o poder da palavra e da criação também pode ser o que construímos com e a partir de outra pessoa.

E eu, triste, tristinha, agora só consigo pensar que ainda há beleza nesse planeta.

esse texto é uma adaptação da newsletter que enviei hoje para meus apoiadores indicando obras variadas de audiovisual, literatura e pintura. saiba mais sobre como me apoiar aqui. se você gostou de me ler, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram.

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somos acostumados a pular de cabeça em um vale de cacos pontiagudos

Acervo pessoal – “Paraquedas” – colagem analógica feita por mim

elas são trepidantes
vibram com o movimento
nada retilíneo nem uniforme
do ar e da saliva
nas cordas vocais

em um estalo da língua
elas se espatifam no bafo
produzindo um barulho
baixo médio alto altíssimo
dependendo da vizinhança
nem os cães com seus
ouvidos biônicos 
sensíveis a qualquer 
mini-estrondo
conseguem
escutar

elas saem da boca
como se fossem cogumelos cuspidos
pulando de finquete numa piscina
metade cheia metade vazia

depois do pulo
quem manda é atmosfera
ela pode destroçar um bom paraquedas
derramando pedaços pela casa inteira
ou fazer planar uma maçã
contra a gravidade

a palavra é sempre um risco

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esse post foi feito em comemoração ao Dia Mundial da Poesia. no Instagram você pode acessar uma versão mais visual desse trabalho.

Igual à narina

A linguagem nasce como um bocejo. Quando uma boca se abre e o cenho se franze, o rosto ao lado reage fazendo o mesmo. De repente, nosso jeito de falar, estruturar pensamentos e agir começa a mudar: uma palavra nova é adicionada ao vocabulário, uma pausa que não existia antes aparece, um novo jeito de mexer as mãos e balançar as pernas é imposto pelo corpo, o ritmo da respiração muda, um fonema fica mais chiado, a voz agora soa fanha, a risada ganha ou perde fôlego, você passa a dar três beijinhos ou fazer um toque de cotovelos para cumprimentar alguém e se surpreende com os músculos do rosto se contraindo numa careta inédita. E esses novos hábitos podem ou não se manter. Depende da sua abertura para o mundo, da quantidade de contato e conexão que você tem com quem interage com você e com tudo que vem a acontecer nos domínios próximos ou distantes do universo desconhecido que vive bem debaixo do seu nariz. É por isso que algumas pessoas dizem que uma separação, qualquer que seja ela, é sempre o fim de uma língua, aquela que foi desenvolvida pouco a pouco pelos envolvidos e que agora permanecerá interrompida, um idioma fóssil geolocalizado na memória, sem falantes fora do mundo das recordações.

A linguagem surge da observação. Cada palavra, frase e gesto vem de um exercício de atenção que, sem a gente perceber, se transforma em uma outra coisa. A linguagem então também é memória, mas o que não é memória? Não importa. Ela é cada um de nós, mesmo nascendo do encontro com outras pessoas. O que é humano e não vem desse paradoxo entre o eu e nós? A linguagem é o que temos. É o que nos permite formular sozinhos ou acompanhados aquilo que é aprendido ou percebido. O que passa pelos sentidos e fica, provoca os neurônios-espelhos e dura além de um espasmo. Para cada povo ou indivíduo, a linguagem é uma identidade que vem de algo anterior, algo que só existe a partir do outro, algo único e em constante mutação. O encontro do eu com o nós, da rotina com o novo, do espontâneo com o que já foi pensando antes, do corpo com qualquer coisa.

A linguagem é absurda. O que eu chamo de amarelo não é o mesmo amarelo que você vê. O que se conhece como cor da pele não é a cor de todas as peles. Os gregos antigos não conheciam a cor azul, porque o mar e o céu assumem muitas tonalidades além. O nome das coisas nos situa no mundo, nos dá palavras para contar o que só a gente pode contar, mas não se bastam. Uma língua pode até ser criada com um fim específico, como o ficcional právico de Os Despossuídos da Ursula Le Guin ou o esperanto do mundo que conhecemos, mas somente no uso as palavras encontram a vida, se transformam e ganham os contornos das idiossincrasias. Nem precisa ser poeta para fazer uma metáfora, nem Guimarães Rosa para ousar um neologismo. Muito menos atuar como personagem italiano de novela brasileira para gesticular até torcer o que dizem as palavras pronunciadas com um sotaque que só existe no mundo da ficção.

A linguagem é um vírus. Ela muda, ela circula, ela precisa de contato para continuar. Ela pode ser transmitida. Ela tem que ser transmitida. Talvez nem o isolamento total consiga parar essa contaminação. Algo fica, eu sei que fica.

A linguagem é um erro. Ninguém consegue dizer o que quer ou precisa. Emissor, receptor, mensagem, tudo, absolutamente tudo, que envolve nossa vontade de se fazer entender é feito por caquinhos que se unem apenas pela liga da saliva. Sem cola escolar ou super bonder, apenas saliva. O papel pode se rasgar se a gente umedecer demais a mensagem, virar uma bola de cuspe que pode ser moldada até atingir qualquer forma, esculturas do que se quis dizer ou se quis entender. Ou pode vir seca, sem sentido, e ainda assim chegar rasgando a pele fina das mãos ou a garganta originária. 

A linguagem é bestial. O cachorro late, o gato ronrona, os grandes felinos rugem, os pássaros cantam, os lobos uivam, o ser humano canta e o português cria palavras para referenciar a comunicação e os coletivos desses e outros animais. E tem as interjeições, os feromônios, as garras, a peçonha, as multidões e, de novo, o diferente. E do diferente origina-se também tudo aquilo que alguns chamam de monstros, esses bichos que a gente aprende a imaginar a partir desse medo do Outro que nos une e nos separa. E tem também a comunicação interespécies, que me faz entender as piscadas carinhosas dos meus gatos e também seus rabinhos que em um único movimento me avisam que eles querem continuar brincando. E assim surge mais um dialeto, esse centrado no aqui e agora da minha casa. E isso acontece também via tweets, emails, posts, mensagens instantâneas, chamadas de vídeos e áudios de cinco minutos. As amizades e as línguas surgem na fricção dos interesses comuns com tudo aquilo que a gente inventa.

A linguagem é neurociência, linguística, gramática, programação, biologia, antropologia, esporte, ABNT e arte, ela é língua, boca, dentes, bochechas, mãos, postura, músculos, corpo, careta, máscara. É indomável, capaz de invadir territórios, criar espaços, transformar o meu, o nosso, modo de dizer. É meme, é incômodo, é risada, é troca, é terror, é guerra, é você, nós, eles… sou eu. 

A linguagem é uma brincadeira, são as peças de lego que a gente usa para montar e desmontar cenários e narrativas, tentando desesperadamente contar para alguém um pouco sobre a convergência dos universos que somos com o que percebemos em contato com os outros. É o que eu tenho para satisfazer minha vontade de tentar explicar porque escrevo, tagarelo, gesticulo, observo, crio, sonho, mexo as pernas, batuco mesas e explico o cotidiano. É o que me faz sentir parte, buscar sentidos, fazer perguntas, formular resposta, ligar o computador e escrever uma mensagem para um destinatário desconhecido, elaborar experiências, abrir um caderno e rabiscar com uma caneta rosa um monstro com cabeça de mulher, rabo de cavalo, grandes caninos e tentáculos abissais. É o que me leva a amar conversar de todas as formas e com todos os animais, inclusive com uma gata preto e branca que tem as narinas rosadas como os meus mamilos e eu só conheço pela internet. 

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