Uma crônica de dia das mães

Acervo pessoal – minha mãe e eu

Minha mãe sempre me pede para elaborar mensagens de aniversário, casamento, feliz natal e formatura. Qualquer celebração é um motivo para ela enviar um cartão, um bilhete, uma mensagem no WhatsApp para qualquer pessoa que ela goste. Eu digo “não” e ela me desafia dizendo “por que isso se você é tão boa nessas coisas de escrever?”

Sempre insisto no não. Digo que posso revisar a mensagem, sugerir edições, preparar o texto, mas escrever por ela sobre isso é impossível. Meu léxico é limitado demais. Sobra palavra, falta comida, é esquisito. E todas as cartas de amor são ridículas, mas as mensagens que minha mãe envia para amigos e familiares são bonitas, atenciosas, construídas sem medo dos clichês se eles ali couberem.

Eu juro, essa negativa minha não vem de nenhum lugar estranho e sombrio. Esse não é um caso do famigerado não aleatório que surge porque quando nasci um anjo Do Contra disse que eu seria uma representante dele na Terra. A resposta dessa teimosia que se repete há anos é simples: como posso escrever sobre amor em nome dela se é ela quem verdadeiramente entende do riscado?

Hoje tento dizer a ela com essa mensagem (pública, vejam só!) que pra mim só dá pra rascunhar algo sobre amor se a destinatária for ela.

Nesse caso, posso me arriscar a falar do meu amor de filha em uma estranha crônica de Instagram, porque eu sei que ela vai gostar e é isso que me importa agora. Hoje me coloco como remetente, como nas cartas de dia das mães que aprendi a fazer na escola, simplesmente porque eu te amo, mãe.

Prometo fazer um cartão melhor no seu aniversário. Quem sabe até novembro eu aprenda a ser mais direta.

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breve memorial de uma vida alugada

já não me lembro mais a exata cor dos azulejos do meu antigo banheiro

carrego comigo uma saudade estranha dos azulejos azuis do banheiro que chamei de meu durante mais de cinco anos. minhas sinapses tentam preservar cada quadradinho pregado na parede. durante o esforço de mantê-los nítidos, junto da pia, do bidê, da privada, das saboneteiras e outros detalhes — todos esses em seus devidos lugares e no tom de azul escuro correto — penso nas padarias que deixei para trás. 

disse adeus para a Sabinão, para Arte do Trigo, para a Dupão e para a produção panificadora da rede de supermercados Verdemar e isso me lembra que a cozinha do apartamento que eu morava até mês passado também era de ladrilho, como o banheiro que sinto tanta falta. 

nunca comi pão e nem bolo olhando para os raminhos de trigo dispostos em azulejos ao lado do filtro de barro que me seguiu de volta para Divinópolis. talvez se essa parte do apartamento fosse de um amarelo bonito, eu diria, inspirada em minha de novo conterrânea Adélia Prado, que essa cozinha estava constantemente amanhecendo. mas essa cozinha era de um azulejo amarelo feio que passou batido e nunca conseguiu inspirar um poema meu, nem minhas papilas gustativas. ainda bem que sempre estive rodeada de bons pães para isso.

e então penso nos pontos do transporte público do bairro, nas linhas 8102 e 8150, que me pegavam tão perto de casa sempre que eu precisava. e também nas vezes que eu descia longe, porque vim de 9410, esse ônibus que ficou inscrito em mim por trajetos anteriores ao dessa vidinha e vez ou outra me aparecia como solução mais fácil, embora não fosse. 

nesses dias, eu descia ruas acima e circulava pelo bairro todo, andando e buscando o caminho que fosse mais bonito, tivesse menos morro e não me levasse para mais longe. costumava escolher o caminho do melhor pão, mesmo que no fim sempre desviasse para me esbaldar na sorveteria.

depois do sorvete, não consigo me ver mais no pretérito imperfeito e, de repente, estou pulando de uma sorveteria para outra, enquanto busco o melhor sabor de cada uma delas. alimentada, me desloco em segundos até uma agência dos Correios, a certa, aquela dos atendentes legais que nunca encrencaram com meus envios em impresso módico. visto uma roupa nova, mais recente até que minha mudança, enquanto ando nos corredores da Feira dos Produtores procurando a farofa que gosto de comer com feijão, compro uvas sem sementes no varejão, ando, corro e troto na rua de bares e restaurantes do bairro e penso, mais uma vez, que a Avenida José Cândido está muito perto e muito longe dali, e acabo andando mais devagar do que devia entre aqueles que bebem uma cervejinha no fim da tarde. 

no meio da caminhada, paro para almoçar um surubim no espeto, janto sushi, procuro algum self-service para o almoço seguinte. e volto a pensar nas sorveterias. e também nos prédios azulejados que vi ao lembrar todos esses trajetos. nenhum desses prédios era feito de azulejos tão azuis quanto aos do meu antigo banheiro. que pena!

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O que essa parede descascada diz de mim?

“Domesticidades”, diz a capa de um pequeno livro turquesa numa exposição de arte. Não posso folheá-lo, conferir o que foi revelado ali. “Domesticidades” está enclausurado, protegido das minhas mãos meladas de suor e álcool em gel. Dentro da mesma redoma de vidro, há um outro exemplar, esse aberto na página 72. Alguém definiu que isso seria o que eu veria das tais domesticidades, mas o reflexo da luz no mostruário tornou aqueles borrões de quintais um desafio de se enxergar.

Quero saber quem escolheu destacar a página 72. Descubro no texto de apoio dois nomes: Renata Marquez e Wellington Cançado. E encontro a descrição da ideia, uma possibilidade de vislumbrar a obra sem saber o que diabos tem nela. Usando fotos disponíveis em sites de imobiliárias, nasceu um guia dos lugares não visitáveis de BH. Ali está um arquivo mal fotografado de um mundo de inquilinos e proprietários que buscam a ilusão de fazer algum espaço seu.

Captar a vida privada é um desafio da memória coletiva. As domesticidades não estão totalmente visíveis nem nas mais cruas fotos do Instagram. Elas estão enclausuradas, como a obra de Renata e Wellington está. Documentar o universo íntimo é um desafio também para a memória individual. Quando estou fora, penso na minha escrivaninha organizada, sendo que ela com certeza está entulhada de livros, papéis, canetas e itens tecnológicos relacionados a esse computador que me serve de máquina de escrever e conexão com o mundo.

O registro das domesticidades — e talvez até mesmo a própria memória — sofre com o medo do julgamento e da inescapabilidade do banal. Vivo de maneira aceitável? Sou suja? Porca? Cafona? Mimada? Durmo demais? Sou gente? Sou bicho? Existo?Tem algo que importe aqui?

Talvez nem mesmo o cronista mais atento consiga assimilar completamente o meio termo entre o conforto de uma cama desarrumada e o nojo de uma pia suja. Só os gatos sabem, porque eles têm como hábito jogar ao chão todas as redomas de vidro.

Esse texto foi escrito por mim para o módulo “Ler e escrever crônicas” da Iana Soares a partir de uma proposta que envolvia a ideia de “Nomear o tempo” e fotografias autorais. Esse módulo fez parte da minha turma da especialização em Escrita e Criação da Unifor, curso de pós-graduação coordenado por Socorro Acioli.

Para fazer esse exercício, parti de uma visita a um museu de Belo Horizonte em que encontrei essa obra aprisionada para refletir sobre memória, o eu e o Outro.

Você pode conhecer o “Domesticidades” aqui.

Crateras de verão

Colagem digital – Thaís Campolina

Tudo começou com um “Você sabe o que aconteceu?” impaciente e sem interlocutor definido. “Aposto que é cratera”, comentou uma jovem negra de tranças coloridas. “Mas a cratera que abriu foi em outro lugar do Floresta, moça”, respondeu um homem grisalho, de pele rosa e terno. Uma voz feminina no meio do ônibus fez questão de opinar: “Uai, pode ter aparecido mais outra aqui também, não?”. “Não seria a primeira vez”, manifestou a loira ao lado do homem engravatado.

Um menino vestido de uniforme, em pé ao lado das cadeiras altas, começou a dizer: “Mas nem choveu essa tarde…” e a frase “Não tem mais aonde ir água, filho” surgiu no ar, como se tivesse sido dita pelo calor úmido que infernizava todos os passageiros do 8102.

Fora do ônibus, um homem que carregava uma bíblia toda gasta bradou: “É o fim do mundo se aproximando!”, enquanto, dentro do coletivo, um sujeito sem qualquer característica marcante reclamou: “Que cratera o quê? É buraco. Cratera tem é em Marte!”

Alguém sacou o celular e mostrou uma notícia sobre o engarrafamento e o seu motivo para todos os curiosos ao alcance de um braço. O asfalto se rompeu no fim da tarde, minutos antes de o ônibus chegar à Assis Chateaubriand, e especialistas culpavam a chuva da noite anterior pela nova cratera.

“Chove e fura buraco na cidade inteira! Tem mais jeito não”, concluiu alguém, enquanto outro dizia: “Assim não dá mais! O prefeito tem que meter uma ponte ligando essa rua aqui com a Jacuí e depois com a Cristiano Machado”. Em resposta, uma mulher comentou: “Chuva faz buraco em ponte também, hein?” e risadas abafadas surgiram.

“Nesse calorão, sem ar condicionado, todo mundo espremido dando volta pelo bairro. Assim não dá”, desabafou aos gritos um senhor próximo ao trocador. Perto dele, sentados nos assentos preferenciais, dois idosos resmungavam sobre o azar de terem perdido o ônibus anterior, aquele que passou minutos antes de a fenda se abrir.

Além deles, havia também uma mulher que não parava de escrever em um caderninho vermelho e um vasto grupo de silenciosos que ora observava a conversa coletiva, ora encarava a tela do celular.

O papo continuou até o ônibus se esvaziar e o blá-blá-blá desceu junto com cada um dos passageiros. Uns dividiram a conversa que tiveram em casa, outros não, mas todo mundo dormiu pensando que um dia vai chover tanto, mas tanto, que um buraco maior do que a própria cidade vai se abrir e Belo Horizonte vai deixar de existir. Uma única mulher, aquela que não parava de escrever, lembrou-se de Marte e suas crateras e se levantou da cama para escrever um conto sobre o fim da vida na Terra.

*“Crateras de verão” faz parte da publicação independente & coletiva nomeada Jurema, obra que reúne textos que surgiram numa oficina sobre cotidiano ministrada pela Carina Gonçalves no ateliê de escrita Estratégias Narrativas em março (ou maio, não lembro mais) de 2018. O livreto foi lançado em fevereiro de 2019 numa Feira Textura e conta também com trabalhos de Beth Andrade, Glau Nascimento, Isabelle Chagas, Olivia Gutierrez, Viviane Moreira e da professora já citada acima. “Jurema” ainda pode ser adquirida no site do Impressões de Minas.

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Sobre publicar um livro pela primeira vez

Acervo pessoal – Divulgação

Na foto, tenho como minha extensão meu livro aberto. Levei um exemplar pra passear na praça antes de qualquer um poder fazer isso. O que é óbvio, porque coloquei meu livro em movimento desde meu 1º momento com ele, quando nem desejo ele era. Meu livro circulou muito sendo feito, quando cada cenário, testemunha, autoras, tempo e ação se apresentava pra mim. Nem sei dizer quantos animais estranhos leram esses poemas no Google Drive antes deles formarem o que tenho em mãos. O mundo virtual é pouco tangível ainda que eu consiga saber quantos clicaram nas publicações que fiz de alguns deles no meu blog. Ainda que eu saiba que tenho clique de Portugal, da Holanda e da Irlanda nos meus poemas belo-horizontinos e nos meus poemas insólitos e nos meus poemas sem nomeação e publicação conjunta. Não sei dizer quantos vão ler meus poemas no arquivo zoado disponível na Amazon. E nunca vou conseguir saber até onde esse livro vai chegar quando seus PDFs, epubs e mobis começarem a voar.

Sei mais dos exemplares físicos. Sei que eles nasceram numa gráfica, foram para editora e depois se espalharam a partir das minhas mãos, dos Correios, dos entregadores, dos divulgadores literários que eu escolhi a dedo junto da editora e da minha assessora e amiga pessoal Marcela Güther. Sei que logo estarão nas mãos de bibliotecários, professores e, espero, leitores da cidade que escolhi como minha. Sei que eles chegam semana que vem no Ceará, em Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Pernambuco. E sei que a maioria permanecerá na sua cidade-origem, se espalhando em bairros, ruas e praças que nunca pisei, porque morar em uma grande cidade não significa conhecê-la completamente. Elas são inesgotáveis.

Já estive com esses livros em mente, andei com eles na bolsa, tive que protegê-los da chuva, da cerveja e da oleosidade de mãos. Já vi um exemplar manchado de gordura e vários dos meus poemas desformatados. Já encontrei foto de poema meu em redes sociais de gente que ainda nem conheço. Já descobri o poema preferido de algumas pessoas. Nem sempre o que gostam mais coincide com a minha opinião. Ainda bem.

Quero saber um pouco do caminho que o livro vai trilhar sozinho, só o suficiente para eu eu possa imaginar onde ele pode chegar. Peço que não me contem os versos que vocês não gostaram. Deixem para falar isso quando eu não estiver olhando. Não deixem de me dizer que leram meus poemas esperando ônibus no ponto ou curtindo uma tarde numa praça. Isso é o que eu realmente quero saber.

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Igual à narina

A linguagem nasce como um bocejo. Quando uma boca se abre e o cenho se franze, o rosto ao lado reage fazendo o mesmo. De repente, nosso jeito de falar, estruturar pensamentos e agir começa a mudar: uma palavra nova é adicionada ao vocabulário, uma pausa que não existia antes aparece, um novo jeito de mexer as mãos e balançar as pernas é imposto pelo corpo, o ritmo da respiração muda, um fonema fica mais chiado, a voz agora soa fanha, a risada ganha ou perde fôlego, você passa a dar três beijinhos ou fazer um toque de cotovelos para cumprimentar alguém e se surpreende com os músculos do rosto se contraindo numa careta inédita. E esses novos hábitos podem ou não se manter. Depende da sua abertura para o mundo, da quantidade de contato e conexão que você tem com quem interage com você e com tudo que vem a acontecer nos domínios próximos ou distantes do universo desconhecido que vive bem debaixo do seu nariz. É por isso que algumas pessoas dizem que uma separação, qualquer que seja ela, é sempre o fim de uma língua, aquela que foi desenvolvida pouco a pouco pelos envolvidos e que agora permanecerá interrompida, um idioma fóssil geolocalizado na memória, sem falantes fora do mundo das recordações.

A linguagem surge da observação. Cada palavra, frase e gesto vem de um exercício de atenção que, sem a gente perceber, se transforma em uma outra coisa. A linguagem então também é memória, mas o que não é memória? Não importa. Ela é cada um de nós, mesmo nascendo do encontro com outras pessoas. O que é humano e não vem desse paradoxo entre o eu e nós? A linguagem é o que temos. É o que nos permite formular sozinhos ou acompanhados aquilo que é aprendido ou percebido. O que passa pelos sentidos e fica, provoca os neurônios-espelhos e dura além de um espasmo. Para cada povo ou indivíduo, a linguagem é uma identidade que vem de algo anterior, algo que só existe a partir do outro, algo único e em constante mutação. O encontro do eu com o nós, da rotina com o novo, do espontâneo com o que já foi pensando antes, do corpo com qualquer coisa.

A linguagem é absurda. O que eu chamo de amarelo não é o mesmo amarelo que você vê. O que se conhece como cor da pele não é a cor de todas as peles. Os gregos antigos não conheciam a cor azul, porque o mar e o céu assumem muitas tonalidades além. O nome das coisas nos situa no mundo, nos dá palavras para contar o que só a gente pode contar, mas não se bastam. Uma língua pode até ser criada com um fim específico, como o ficcional právico de Os Despossuídos da Ursula Le Guin ou o esperanto do mundo que conhecemos, mas somente no uso as palavras encontram a vida, se transformam e ganham os contornos das idiossincrasias. Nem precisa ser poeta para fazer uma metáfora, nem Guimarães Rosa para ousar um neologismo. Muito menos atuar como personagem italiano de novela brasileira para gesticular até torcer o que dizem as palavras pronunciadas com um sotaque que só existe no mundo da ficção.

A linguagem é um vírus. Ela muda, ela circula, ela precisa de contato para continuar. Ela pode ser transmitida. Ela tem que ser transmitida. Talvez nem o isolamento total consiga parar essa contaminação. Algo fica, eu sei que fica.

A linguagem é um erro. Ninguém consegue dizer o que quer ou precisa. Emissor, receptor, mensagem, tudo, absolutamente tudo, que envolve nossa vontade de se fazer entender é feito por caquinhos que se unem apenas pela liga da saliva. Sem cola escolar ou super bonder, apenas saliva. O papel pode se rasgar se a gente umedecer demais a mensagem, virar uma bola de cuspe que pode ser moldada até atingir qualquer forma, esculturas do que se quis dizer ou se quis entender. Ou pode vir seca, sem sentido, e ainda assim chegar rasgando a pele fina das mãos ou a garganta originária. 

A linguagem é bestial. O cachorro late, o gato ronrona, os grandes felinos rugem, os pássaros cantam, os lobos uivam, o ser humano canta e o português cria palavras para referenciar a comunicação e os coletivos desses e outros animais. E tem as interjeições, os feromônios, as garras, a peçonha, as multidões e, de novo, o diferente. E do diferente origina-se também tudo aquilo que alguns chamam de monstros, esses bichos que a gente aprende a imaginar a partir desse medo do Outro que nos une e nos separa. E tem também a comunicação interespécies, que me faz entender as piscadas carinhosas dos meus gatos e também seus rabinhos que em um único movimento me avisam que eles querem continuar brincando. E assim surge mais um dialeto, esse centrado no aqui e agora da minha casa. E isso acontece também via tweets, emails, posts, mensagens instantâneas, chamadas de vídeos e áudios de cinco minutos. As amizades e as línguas surgem na fricção dos interesses comuns com tudo aquilo que a gente inventa.

A linguagem é neurociência, linguística, gramática, programação, biologia, antropologia, esporte, ABNT e arte, ela é língua, boca, dentes, bochechas, mãos, postura, músculos, corpo, careta, máscara. É indomável, capaz de invadir territórios, criar espaços, transformar o meu, o nosso, modo de dizer. É meme, é incômodo, é risada, é troca, é terror, é guerra, é você, nós, eles… sou eu. 

A linguagem é uma brincadeira, são as peças de lego que a gente usa para montar e desmontar cenários e narrativas, tentando desesperadamente contar para alguém um pouco sobre a convergência dos universos que somos com o que percebemos em contato com os outros. É o que eu tenho para satisfazer minha vontade de tentar explicar porque escrevo, tagarelo, gesticulo, observo, crio, sonho, mexo as pernas, batuco mesas e explico o cotidiano. É o que me faz sentir parte, buscar sentidos, fazer perguntas, formular resposta, ligar o computador e escrever uma mensagem para um destinatário desconhecido, elaborar experiências, abrir um caderno e rabiscar com uma caneta rosa um monstro com cabeça de mulher, rabo de cavalo, grandes caninos e tentáculos abissais. É o que me leva a amar conversar de todas as formas e com todos os animais, inclusive com uma gata preto e branca que tem as narinas rosadas como os meus mamilos e eu só conheço pela internet. 

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Crônica da praça que se molda à imagem e semelhança dela mesma

Quero entender melhor os diferentes tamanhos que a pracinha que eu ia durante a infância pode assumir.

Parei de crescer faz tempo, mas ainda assim toda vez que piso aqui adulta, a lembrança do que a pracinha foi se transforma.

Ela se expande sob o meu olhar atento às diferenças, mas eu pareço cruzá-la em tão poucos passos. Ela está cada vez menor, mas seu limite ainda está em outro tempo. Ela parece mais vazia sem os bichos que eu costumava encontrar ali nas minhas expedições como wannabe biológa, mas também mais ocupada agora que tem até aparelho de ginástica. A árvore que levou pedaços dos meus dentes numa trombada com minha bicicleta ainda parece ameaçadora.

Penso em quantos passos o Billy precisa dar pra me acompanhar. São os mesmos de quando ele era jovem? E me pergunto quantas pisadas Faruck I precisava para cortar toda essa pouca extensão e nos tantos milhares de odores que Faruck II pode cheirar ali todas as vezes que o acompanhei.

Com a mi band presa ao meu pulso, sei exatamente quantos passos eu precisei dar para medir esse cenário e isso não é o suficiente para me convencer da diferença do que vejo, sinto, lembro.

Atravesso, calculo o raio, elevo-o ao quadrado, multiplico o resultado pelo pi. Encontro minha recuperação de matemática. Volto pra casa em 2003.

Tudo mudou.

E toda vez que mudo, uma nova perspectiva vira possibilidade. Com uma câmera nas mãos, posso ver a praça sob outro ângulo, o do pássaro que nunca fui. E, depois, quando voltar, lembrar diferente, como se em algum momento da minha história, eu tivesse sido dona desse céu de inverno.

Esse texto foi publicado originalmente no meu perfil do Instagram. Se você gostou dessa leitura, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter, Apoia.se e  Instagram.

Donna Polla

O comício – Benedito José de Andrade

Quando comecei a fazer as primeiras lições de italiano no Duolingo, eu não conseguia parar de pensar na minha Tia P.*. Era inevitável. Se aprendia que rato era topo, esperava que na lição seguinte o Duolingo me apresentasse o famigerado pollo e todas as melhores maneiras de pedi-lo. Nessa brincadeira, minha cabeça virou um verdadeiro galinheiro de memórias plumadas da viagem que eu fiz com ela pra Itália.

A viagem foi em família. Com justificativa de saudade, mas motivação de turismo. Um desses passeios que acabam envolvendo vários núcleos parentais e até mesmo amigos de longa data. Tinha mais gente querendo ir do que gente podendo pagar e, no fim das contas, formou-se um grupo com dois casais, sendo um deles meus pais, um tio avulso, uma amiga da família também avulsa e eu, todos indo ao encontro do meu irmão.

Piadas sobre família Buscapé à parte, a viagem fluiu muito bem e encheu os olhos, o coração e a pança de todos os envolvidos. Ou melhor, quase todos. Não sei se a Tia P. diria que ficou tão satisfeita assim em um desses quesitos.

Foi nesses dias que descobri que minha Tia P. é uma pessoa obcecada por frango. Durante os preparativos do passeio, eu pensei que, ao menos em relação a ela, o único grande desafio de convivência seria o fato dela gostar demais de rezar, ser católica fervorosa, nos obrigar a ir ver o Santo Sudário e querer entrar em todas as igrejas e lojas, essas não necessariamente religiosas, que a gente encontrasse no caminho. Coisa que de fato ela meio que fez, com apoio da minha mãe e tudo, mas, já em Roma, primeira cidade visitada nessa jornada, a gente descobriu que se tem uma coisa que Tia P. gosta mais do que de Deus, essa coisa é frango. 

“Pizza de frango é coisa de brasileiro. Ainda mais se tiver catupiry envolvido”, meu irmão argumentava sem sucesso. Ela insistia. Ele cedia. O que significava que ele, o único falante de italiano, acabava tendo que tentar conversar com garçons e até cozinheiros sobre a possibilidade de fazer uma pizza ou qualquer outra coisa com frango pra ela. Tia P., para garantir que sua mensagem chegaria ao destinatário, sempre ia junto dele e ficava falando em português o que ela queria, atrapalhando aquele diálogo, que já não ia ser fácil. Vez ou outra, com um gestual aprendido como italiano na novela global Terra Nostra, dizia “pollo” com pronúncia espanhola, idioma que ela também não conhece. 

O pedido era sempre visto como absurdo. Mais até que catchup sendo colocado numa legítima pizza paulistana da Mooca. A maioria dos garçons entendia que ela queria que eles colocassem um peito ou coxa de frango em cima da pizza. E, eu juro, isso não era um problema no italiano do meu irmão que, apesar das dificuldades, cursava engenharia no idioma graças ao Ciências Sem Fronteiras. Era um problema de má vontade de todos os seres humanos do mundo com ela, a “Donna Polla”. Meu irmão, eu, os garçons, os cozinheiros, a guia, meus pais, meu padrinho, a amiga da minha mãe que é quase uma tia pra mim e, arrisco dizer, até o meu tio, marido de Tia P., todos ficavam contra ela assim que ela abria um cardápio. 

No dia que comi a melhor lasanha da minha vida, Tia P. enfim encontrou seu “pollo” em um restaurante e, sorridente como nunca, pediu. O restaurante trabalhava com um cardápio fixo para a semana: entrada, prato principal e sobremesa já definidos e numa leva só. Algo como um pacote promocional de groupon ou peixe urbano, mas sem a compra antecipada. Frango com aspargos era o prato principal, mas antes dele, na entrada, havia uma lasanha. A mais saborosa lasanha que já existiu. E que Tia P. perdeu. Ela, ao se deparar com aquele enorme prato de massa como suposta entrada, não quis nem tocar na comida. A família toda insistiu para ela experimentar, mas não adiantou. O que interessava era o frango com aspargos e não valia a pena encher a pança de lasanha pra depois custar a comer o que, segundo ela, era refeição de verdade. O pedaço de lasanha dela foi dividido em partes iguais com o restante da mesa que fingia não estar achando ótimo a chance de comer mais um pedaço daquela maravilha. 

Quando o prato principal chegou, encontramos no lugar de uma bela refeição pedaços de frango pálidos, oleosos, meio duros e sem qualquer cheiro de tempero. Mesmo assim ela não desanimou. Foi preciso que ela provasse uma, duas, três vezes, pra começar tentar acreditar naquilo e, depois, ainda provasse de novo para tirar a prova de que aquele “pollo” era a comida mais insossa já cozinhada no planeta Terra. 

Todos comemos aspargos e batatas, esses extremamente saborosos e temperados, enquanto ela insistia em provar os frangos que a maioria de nós não queria comer, achando que algum pedaço se salvaria milagrosamente daquele não sabor insuportável. No fim das contas e depois de muito insistir nos frangos horríveis, ela tomou a sábia decisão de usar os sachês de sal e azeite à disposição para melhorar aquilo que teria que ser a refeição dela naquele dia. 

Tia P., entretanto, não aprendeu a lição. Continuou o resto da viagem insistindo nisso, deixando todo mundo meio constrangido em muitos momentos, sem nunca desistir de seu sonho de provar um legítimo pollo brasileiro em solo italiano.

Voltamos para casa felizes, mas também secretamente putos, sem imaginar que Tia P. e seu insuportável desejo de comer frango em todas as refeições se tornaria uma das principais histórias desses quinze dias maravilhosos.

*nome suprimido por medo de processo.

Esse texto foi publicado originalmente na 11ª edição da minha newsletter “Sala de Espera”. Assine aqui para passar a receber meus escritos diretamente na sua caixa de entrada.

Jogatina ancestral

Acervo Pessoal

Minha vó carrega seus baralhos para todo lugar que vai. Sim, baralhos. No plural mesmo. Me cansei de vê-la tirando-os da bolsa para colocá-los em cima da mesa, lado a lado com a bolsinha de tentos, para sinalizar que chegou a hora de jogar. Festa de aniversário, Sexta-feira Santa, Quarta-feira de Cinzas, batizado, Natal, Páscoa, nenhuma data é sagrada demais para que não se possa jogar, provavelmente porque, implicitamente, sabemos que há algo de sacro no ritual desses jogos que passam de geração a geração. Assim aprendi a construir relações em torno dessa mesa, que ora é abundante em comida, ora se enche de cartas, sempre com muita conversa, e sei que isso é bem anterior a mim.

Minha bisavó também jogava. Talvez a mãe dela também. Não sei. As informações se perdem com o passar do tempo. Sei que ela jogava poker, apostava entre homens, ia na casa deles jogar, mesmo em um tempo em que a possibilidade de se fazer isso era limitada para mulheres. Sei também que minha avó, ainda bem novinha, aprendeu todo tipo de jogo com ela e que minha bisa era professora e ensinava crianças a ler na mesma mesa que servia vez ou outra como um palanque para ela. Você pode ler essas últimas frases e não entender o porquê delas estarem aqui, nesse texto sobre jogos de baralho, mas pra mim faz sentido. Jogos de baralho, no geral, são considerados uma diversão masculina, especialmente o truco, preferido da minha vó, e o poker, melhor jogo segundo minha bisa que nunca conheci. Minha família, ainda que reforce muitos estereótipos de gênero, sempre permitiu e incentivou que mulheres tivessem seus momentos de diversão e socialização e tem como tradição repassar essa sabedoria e toda a energia que ela evoca.

Minha vó começou a me ensinar o truco quando eu tinha seis anos. Antes disso eu já dominava burro, fedô, rouba monte e todos esses jogos que fazem muito sucesso com crianças. Só que o truco é diferente, é um aprendizado contínuo, cheio de lições. Não basta saber reconhecer um zap, um 7 de copas, uma espadilha e um 7 de ouros quando ele aparecer em sua mão, é preciso saber farejar cada uma dessas cartas, tanto no adversário, quanto no parceiro. Até hoje, quando sou dupla da minha avó, aprendo alguma tática nova, mas desde 1995 sei que é preciso fazer a primeira, chegar com o pé na porta, mostrar para o que veio.

Não fazer a primeira é um risco. Um risco de continuidade que não vale a pena correr. Essa lição minha avó aprendeu com sua mãe e ela segue reverberando em mim. A partir dela, escrevo hoje esse texto para a #EstaçãoBlogagem. Paus inicia tudo e eu não posso deixar de fazer a primeira, mesmo que meu site ainda não esteja pronto. Escrevo agora, posto no prazo da primeira rodada onde der e me dou uma chance de continuar fortalecendo meu impulso criador. É do início que se começa qualquer viagem, minha vó nascida sob o signo de Áries diz para mim, neta que tem o carneiro como ascendente, mas não acredita nessas coisas, apesar de não conseguir ignorar toda essa simbologia. Como ignorar a possibilidade mágica dos meus rituais familiares quando o zap é um quatro de paus, que no tarô e no truco costumam simbolizar a celebração de uma conquista?


Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para esse mês de escrita e leitura foi tarô e, durante esse período, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo. Para iniciar os trabalhos, elas escolheram como tema o naipe de paus, que é diretamente relacionado à energia do fogo, logo impulsionador, dinâmico e que fala com a nossa criatividade.

Pães em formato de bicho

Carlos Avelino/PBH

Um pão capivara passou na minha timeline do Twitter esses dias. Ele era tão bem feito que até orelhinhas tinha. Fofinho e coradinho, como uma capivara deve ser. Ele era feito de trigo, como os pães são. Ele me lembrou a minha infância.

Quase todo sábado, eu ia para casa dos meus padrinhos. Eu amava aquela casa. Ela era ampla, tinha uma romãzeira, plantas de todo tipo, flores, livros, revistas e muitos gatos. Não tenho certeza se minha tia já era instrutora de ioga, mas sei que ela me ensinava alguns movimentos nas horas vagas. Eu amava quando ela elogiava a minha flexibilidade e todas as posições com nome de bicho. Já meu tio, professor de biologia, sempre estava pronto para me dar uma informação nova sobre algum animal da natureza. Inclusive, toda vez que o tempo permitia, ele me levava para caminhar na beira do rio Itapecerica. “Em tupi-guarani, Ita significa pedra e pecerica lisa ou escorregadia”, ele sempre me dizia ou eu dizia a ele, porque tinha ouvido algo assim na escola. Já não sei mais. De longe, caminhando ao lado dele, eu via capivaras, pássaros, borboletas e um rio sofrendo com assoreamento, enquanto recebia algumas informações sobre reino, filo, classe, comportamento e reprodução de cada ser vivo avistado. E, fora tudo isso, eles gostavam de me ouvir falar. E, caramba, como eu falava!

Nessa casa, além da ioga, da biologia, dos gatos e dos livros, eu tinha acesso a um pão doce em formato de jacaré. Ele era enorme, tinha rabo, patas e até aquele levantadinho perto da testa onde os olhinhos ficam. Sendo esses olhinhos, no caso, vermelhos, feitos com aquela cereja-chuchu típica dos anos 90. Lembro que o coco ralado representava as escamas do bicho. Ele era lindo, delicioso, fora os olhos, e fazia totalmente a minha cabeça.

Meus pais nunca compraram pão jacaré pra mim. Ele representava um achado dos meus padrinhos, algo que somente eles podiam ter encontrado e comprado para me agradar. Esse pão era vendido numa padaria próxima da casa deles e era especial: somente podia ser comprado aos sábados. Talvez era até algo encomendado. Não sei. Só sei que vez ou outra, ao chegar na casa deles, já era levada até a padaria e aproveitava o momento para observar tudo. Eu não podia deixar escapar nenhum detalhe daquele bairro com Velho no nome, daquele morro todo, daquelas pessoas, daquela rua movimentada, daquela padaria que fazia pães de jacaré.

Queria absorver tudo ao meu redor, aproveitando aquela ilusão infantil de que andar ali representava alguma liberdade especial, bem aquela que é dada a todos que se colocam como aventureiros, desbravadores e conhecedores do mundo. De cima, já quase na padaria, eu olhava para a rua que continuava, pra mim infinitamente, e pensava na ponte, no rio, no fato de que minha casa estava bem do outro lado, além do horizonte. Em algum lugar naquela vastidão toda que era Divinópolis para a menina Thaís, devia haver jacarés que não eram feitos de pão. Tinha que haver.


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