Minha mãe sempre me pede para elaborar mensagens de aniversário, casamento, feliz natal e formatura. Qualquer celebração é um motivo para ela enviar um cartão, um bilhete, uma mensagem no WhatsApp para qualquer pessoa que ela goste. Eu digo “não” e ela me desafia dizendo “por que isso se você é tão boa nessas coisas de escrever?”
Sempre insisto no não. Digo que posso revisar a mensagem, sugerir edições, preparar o texto, mas escrever por ela sobre isso é impossível. Meu léxico é limitado demais. Sobra palavra, falta comida, é esquisito. E todas as cartas de amor são ridículas, mas as mensagens que minha mãe envia para amigos e familiares são bonitas, atenciosas, construídas sem medo dos clichês se eles ali couberem.
Eu juro, essa negativa minha não vem de nenhum lugar estranho e sombrio. Esse não é um caso do famigerado não aleatório que surge porque quando nasci um anjo Do Contra disse que eu seria uma representante dele na Terra. A resposta dessa teimosia que se repete há anos é simples: como posso escrever sobre amor em nome dela se é ela quem verdadeiramente entende do riscado?
Hoje tento dizer a ela com essa mensagem (pública, vejam só!) que pra mim só dá pra rascunhar algo sobre amor se a destinatária for ela.
Nesse caso, posso me arriscar a falar do meu amor de filha em uma estranha crônica de Instagram, porque eu sei que ela vai gostar e é isso que me importa agora. Hoje me coloco como remetente, como nas cartas de dia das mães que aprendi a fazer na escola, simplesmente porque eu te amo, mãe.
Prometo fazer um cartão melhor no seu aniversário. Quem sabe até novembro eu aprenda a ser mais direta.
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Elena Ferrante, Vivian Gornick, Buchi Emecheta, Ayobami Adebayo, Xinran, Nara Vidal, Aline Bei, Conceição Evaristo, Celeste Ng e Shin Kyung-Sook são autoras que, apesar das diferentes origens, experiências e níveis de fama literária, escreveram histórias que tratam da maternidade e a complexa relação das mães com seu entorno.
De maneiras muito diversas, todas as citadas abordam o peso da maternidade na vida das mulheres em alguma ou várias de suas obras, mostrando que mesmo as experiências mais amorosas são marcadas pelo impacto da divisão sexual do trabalho, da misoginia, do racismo e também da pobreza.
Apesar de toda a expectativa envolvida na perpetuação das linhagens familiares nas várias culturas abordadas por essas escritoras, a maternidade e a capacidade de gestar surgem nessas histórias como marcadores de vulnerabilidade para as mulheres. Em “Por favor, cuide da mamãe”, da sul-coreana Shin Kyung-Sook, isso não é diferente.
Nessa obra, Park So-nyo, 69 anos, mãe de cinco filhos, desapareceu em Seul. A partir da narração da filha mais velha, do filho primogênito e do marido, o leitor acompanha essa família enlutada em busca dessa mãe perdida.
Como se a dor desse sumiço não bastasse, essa procura se desdobra em uma dolorosa tentativa desses narradores-personagens em encontrar alguma resposta para suas culpas e angústias relacionadas à figura dessa mulher e ao luto de sua ausência. Dessa forma, a investigação do destino de Park So-nyo se torna também uma exploração emocional para os personagens que, isolados uns dos outros mesmo quando estão próximos, não percebem como suas dores não são tão singulares assim. Com o desaparecimento, filhos e marido parecem ter se deparado com a sensação de que essa mãe já estava sumindo antes e que talvez eles pudessem ter feito alguma coisa para evitar isso.
A partir dessa premissa, surge para o leitor a constatação de que a maternidade é quase sempre um apagamento de uma identidade maior, como se apenas um pedaço de uma mulher, aquele que é mãe, se tornasse o único visto e considerado importante pelos outros. O sumiço de Park So-nyo para seus familiares parece ter iniciado antes mesmo do momento em que ela foi engolida pela multidão dos transeuntes frequentadores do metrô, e o desaparecimento real parece expor a dificuldade anterior de todos eles, talvez até mesmo da própria desaparecida, de ver uma mãe como um indivíduo completo.
Mães e pais passam por isso pelos olhares dos filhos, é verdade, e essa reflexão é até explorada no livro no capítulo da filha escritora. Durante o amadurecimento, existe todo um processo de descoberta de cada um dos pais como pessoas, não mais como mães e pais, mas o processo com as mães é diferente, porque o apagamento dessa identidade vai além da visão infantil dos filhos e invade como a sociedade no todo encara as mulheres, especialmente aquelas que agora são vistas como uma espécie de cuidadoras universais.
Essa maternidade — tão sacrificante para a personagem, ainda que para ela toda a abnegação seja vista como parte da vida, e objeto de devoção e romantização dos filhos e marido enlutados — coexiste com uma paternidade irresponsável. Enquanto Park So-nyo fazia de tudo pelos filhos e centrava o sentido de sua vida neles, seu marido abandonava a casa e ia atrás de aventuras e outras mulheres. O peso do cuidado doméstico, familiar e até da própria terra sempre esteve em suas mãos. O marido e pai das crianças, na verdade, somente somava-se à lista de responsabilidades que ela tinha.
O arrependimento dos narradores é demarcado no próprio texto e o uso da 2ª pessoa acaba transferindo-o ao leitor. Eles falam com si mesmos, se acusam, apontam suas próprias falhas e compartilham momentos, mas, com o “você” no meio das frases, é o leitor que acaba recebendo essas palavras como se fossem pra ele. E, dessa forma, quem lê acaba sendo levado para esse drama familiar como parte, não só como espectador, podendo, nesse processo, até se deparar com seu próprio lar e todas as questões pessoais e confusas relacionadas com ser filho de alguém.
Vale ressaltar que Park So-nyo não sabia ler e nem escrever e sonhava com a alfabetização, fazendo tudo para seus filhos e filhas conseguirem estudar. Embora ela pareça acatar o fardo de sua condição feminina em alguns momentos e, inclusive, cobrar especialmente das suas filhas nesse sentido, a personagem considerava sua obrigação fazer com que as crianças em sua responsabilidade tivessem a possibilidade de uma vida mais fácil que a dela a partir da educação. Inclusive, numa ocasião, disse para seu filho mais velho que a irmã precisava estudar um pouco mais por ser menina e que era responsabilidade dele fazer com que ela frequentasse a escola em Seul. Complementando essa delegação dizendo: “Não quero que viva como eu”.
Apesar da filha mais velha acreditar ter decepcionado a mãe em todos os sentidos, percebe-se que essa mãe admirava a trajetória de sua menina que se tornou escritora, apesar dos pesares. A construção da personagem da mãe desaparecida é complexa. O leitor acompanha o olhar arrependido da família, as observações, às vezes muito romantizadas, feitas por eles sobre essa mulher e, como um verdadeiro detetive, tenta desvendá-la a partir de detalhes, somando o que cada personagem apresenta de forma não muito confiável ao seu mundo referências. Somente com a chegada da narração surpresa, o leitor tem acesso a mais nuances dessa personagem e, enfim, tem a sensação de que a conhece como indivíduo.
Nessa jornada de luto e drama familiar, chama a atenção a relação de Park So-nyo com a terra, a casa, o espaço que ocupa. As colocações feitas de mãe para a filha sobre a agricultura e o trabalho doméstico, por exemplo, evidenciam a invisibilidade do trabalho do cuidado, mas também sua importância. A valorização da terra vem muito da necessidade do alimento que, além de aplacar a fome, serve para nutrir o próprio corpo familiar e suas relações. A memória dos narradores dessa história estão marcadas pela preocupação dessa mãe em fornecer alimento para seus filhos, como uma verdadeira provedora, e, ao mesmo tempo, pelos rituais ancestrais em que a comida sempre foi colocada como parte fundamental da troca, do afeto e, não tão curiosamente, também das obrigações. Essas lembranças culinárias aparecem tanto no cotidiano, com citações que vão do kimchi e do arroz ao lámen instantâneo, quanto em momentos especiais, como a arraia do Ano Novo e o Festival da Lua da Colheita.
A maternidade é quase um planeta à parte, ainda que seja impossível pensar na humanidade que conhecemos sem pensar em mães. Shin Kyung-Sook escreve essa história sabendo disso. Ela, ao falar desse universo, fazendo desaparecer a mãe real e colocando a mãe projetada no lugar, explora o quanto esse papel social rende perante todos que são filhos. Em especial, filhas. Em qualquer lugar do mundo, há muito o que se escrever a partir dessa condição constantemente tratada como íntima, mesmo tendo tantos desdobramentos políticos.
“Por favor, cuide da mamãe” é um livro que usa o arrependimento, o luto, a culpa e as memórias de uma família para nos fazer pensar na Coreia do Sul contemporânea, principalmente, pelos olhares das mulheres. Tradição, desigualdade, pobreza, medo da fome, machismo, cuidado, memória, dilemas geracionais e o eterno embate entre campo e cidade formam esse retrato complexo que, apesar das diferenças, às vezes parece bem próximo ao que temos aqui, no Brasil de Aline Bei, Nara Vidal e Conceição Evaristo. Ou na Itália de Ferrante, ou na Nigéria de Buchi Emecheta e Ayobami Adebayo, ou nos EUA formado por imigrantes da Vivian Gornick e da Celeste Ng. A maternidade, imposta, compulsória ou desejada e, ao menos em teoria, necessariamente abnegada, viaja pelo mundo tanto quanto a nossa capacidade de contar histórias.
Esse texto foi escrito para um concurso de resenhas organizado com o intuito de promover a valorização da literatura sul-coreana. Como não fui uma das premiadas, resolvi aproveitar para postar o que escrevi aqui no blog, apesar da leitura desse livro ter acontecido faz um tempão (JAN/21).
Colagens digitais de Thaís Campolina a partir de fotos de Barbara Olsen
Ma-má? Mã-mã? Ma-mã-ma-mãe? Mamãe? Vem cá, mamãe. Mamãe, dorme comigo hoje? Por que, mamãe? É só um au-au, mamãe. Mamãe, eu quero. Não, mamãe. Desculpa, mamãe. Mamãe, o que é isso? Não é nada não, mamãe. Mamãe, me dá? Por que, mamãe? Mamãe, cê tá triste comigo? Me conta uma historinha, mamãe. Mamãe, eu não quero. Olha que bonito, mamãe! Mamãe, cê gostou? Vem brincar, manhêêêê! Mãe, cuidado com a bola! Eu juro que não fui eu, mãe. Eu prometo, mãe! Mãe, foi sem querer. Ah nem, mãe. Mãe, que saco! Toda hora isso, mãe. Mãe, posso dormir na casa da vovó hoje? Chuta pra mim, mãe! Que bicuda você deu, mãe! Por que não, mãe? Não quero brincar de boneca, mãe, não gosto mais. Foi mal, mãe. Vamos dormir mais tarde hoje, mãe? Mãe, deixa eu levar esse gatinho pra casa? Que que tem, mãe? Mãe, o que eu faço agora? Não vou calçar essa sandália hoje, mãe. Não gosto, mãe. E quem disse que eu ligo para isso, mãe? Não quero, mãe. Mãe, eu já falei que eu não quero! Mãe, nem vem que já não sou mais criança. Que delícia, mãe! Me ensina, mãe? Deixa eu ir, mãe. Mãe, por favor! Ai, mãe, cê não vem mesmo nadar com a gente? Mãe, por que você tem que fazer isso toda vez que eu vou sair? Como você era na escola, mãe? Cê ia bem em tudo, mãe? Mãe, me ajuda com esse zíper. Mãe, me empresta essa jaqueta? Boa noite, mãe. Só hoje, mãe. Mãe? Me deixa tentar, mãe. Eu sei, mãe. Mãe, que saco! Mãe, o que você tá fazendo aqui? Por que você fez isso, mãe? Mas eu não gosto, mãe. Eu não quero usar mais essas roupas feias suas, mãe. Ai, mãe. Tudo bem, mãe? Me dá uma carona, mãe? Obrigada, mãe. Mãe, que livro é esse que cê tá lendo agora? Mãe, me deixa em paz. Não quero falar com você agora, mãe. Eu quero ficar sozinha, mãe! Mãe, que gracinha! Te contei, mãe? O que está passando na TV, mãe? Esse programa é bom, mãe? Mãe, eu quero é isso pra mim. Ai, mãe, eu já não sei mais o que fazer. Me ajuda, mãe. Mãe, cê não vai acreditar… Você já fez isso mesmo, mãe? Jura? Mãe, agora tá pronto, pode olhar. Ficou bom, mãe? Não tem nada demais nisso, mãe. Não precisa ficar elogiando, mãe. Mãe, deixa de ser boba. Uai, mãe… Cê adorou, né mãe? Mania nova, mãe? Valeu, mãe. Que beleza, mãe! Mãe, mas cê já vai? Chegou cedo hoje, tava com saudade de mim, né mãe? Mãe, você viu isso? Vamos fazer alguma coisa diferente esse domingo, mãe? Mãe, cê ficou sabendo? Tava bom demais, mãe. Do que você tá falando, mãe? Não se faz de sonsa, mãe. Mãe, o que cê achou? Curtiu, mãe? Que vergonha, mãe. Dá licença, mãe. Gostou do presente, mãe? Vem tirar foto, mãe! Mãe, tudo vira neura na sua cabeça. Mãe? Credo, mãe, que mania que você tem de botar defeito nas minhas coisas. Bom apetite, mãe! Vai um baralhinho hoje, mãe? Mãe, eu já disse que não quero mais. Vou ter que repetir, mãe? Sério isso, mãe? Mãe, deixa eu ver. Vamos agora, mãe? Já tá na hora, né? Mãe, como foi lá? Deu pra entender bem, mãe. Que que foi, mãe? Nossa, mãe, me conta isso direito. E essas fotos antigas, hein, mãe? Olha essas roupas esquisitas que todo mundo usava, mãe! Esses cabelos, mãe! O que vamos fazer hoje, mãe? Ai, ai, mãe. Se anima aí, mãe! E o que você disse, mãe? É assim que se faz, mãe! Mãe, quer emprestado? Me mostra logo como ficou, mãe! Mãe, tô curiosa! Tá toda toda, hein, mãe? Mãe, como você não entendeu ainda que eu faço o que eu quiser? Mãe? Mãe, tô preocupada com você. Conversa comigo, mãe. Mãe, você não presta atenção no que eu falo mesmo, hein? Mãe, já marcou seu médico? O que o médico falou, mãe? Mãe, que saco, hein? Toma esses remédios direito, mãe. Mãe? Quer vir pra cá, mãe? Cê gostou, mãe? Mãe, cê mesma quem fez? Lá vem você de novo com esses trem, né mãe? Ai, mãe. Não sei, mãe. Se animar, eu te levo, mãe. Me conta isso direito, mãe. E cê acreditou, mãe? Ai, mãe, eu não aguento mais. Quem disse que ia ser fácil, né mãe? Quer um pouquinho, mãe? Mãe, vem dançar! Onde você aprendeu esses passos, mãe? Você não tem jeito mesmo, né mãe? Só mais um pedaço de bolo, viu mãe? Chegou chegando, hein mãe? Mãe? Tá pronta, mãe? Tô passando aí, mãe. A gente combinou, mãe. Cê esqueceu de novo, mãe? Mãe, mas cê desistiu de ir e nem me avisou? É isso mesmo, mãe? Mãe, o que você achou? Aceita, mãe? Tá tudo bem, mãe? Obrigada, mãe. Trouxe cruzadinha, mãe. Mãe, precisa de ajuda? Bem-vinda, mãe. Mãe, pode deixar que eu faço. Tá gostando, mãe? Mãe, você sabe que você não dá conta mais. Caramba, mãe! Vem cá, mãe. Mãe?
Colagem analógica de Thaís Campolina a partir de fotos de Bárbara Olsen
Esse conto, assim como essas colagens, fazem parte da coletânea “Casa nua – maternidade devassada”, obra que reúne trabalhos produzidos pelas participantes do Coletivo Escreviventes numa parceria com a Revista Tamarina. O e-book é composto por textos em prosa e verso de 49 escritoras brasileiras e trata sobre diferentes perspectivas de ser mãe e ser filha, levando em conta também a possibilidade de não ser mãe e os aspectos políticos e sociais desse ser e não ser. Baixe o PDF aqui.