“Da costela do impossível”: luz, sombra e a imagem refletida por essa combinação

Acervo pessoal

É difícil escrever o que nos comove sem recair em clichês ou mesmo numa linguagem cafona, especialmente se você for um cínico. E todo mundo foi obrigado a aprender a ser um nos últimos anos. A comoção foi praticamente proibida como tema, especialmente se ela se apresenta entrelaçada na complexidade de um cotidiano de pequenas coisas a serem contempladas. 

Tratada como um luxo numa sociedade que busca a produtividade acima de tudo e ataca até mesmo o sono, o sonho e o descanso, a comoção se encontra em extinção. Se propor a se comover virou quase um ato de rebeldia em meio a um mundo de estímulos que, sendo praticamente ininterruptos, transformam qualquer emoção em uma sensação estranha e passageira. 

É preciso digerir e ninguém tem tido tempo para digerir qualquer coisa. Estamos na era do utilitário e até a leitura de poesia pode ser transformada em mais um item de uma checklist de afazeres. Alguma poesia na rotina é melhor do que nenhuma, eu diria justificando meus atos. E talvez você concordasse comigo até você também se deparar com os poemas do livro Da costela do impossível de Marcela Alves e entender que poesia na rotina significa algo mais do que a simples leitura de uma página. 

Com uma obra focada em detalhes que tornam visíveis a cumplicidade dos laços e a beleza das pequenas coisas, a poeta constrói versos que também possibilitam contemplar e perceber a própria dor. O tempo corre diferente quando você conversa com o eu-lírico construído por ela. Não tem agenda e planejamento que dê conta. É impossível ler tudo de uma vez, ler de qualquer jeito, deixar pra ler correndo no intervalo do almoço. A poesia de Marcela é oráculo, sua leitura pede uma pausa ritualística no meio da rotina. E essa pausa pode durar apenas alguns minutos, o lapso exato de um poema, desde que você esteja presente ali, sem pensar na próxima tarefa. 

Ler Da costela do impossível é buscar compreender melhor o alcance de um instante e essa reflexão surge impondo que a gente abrace o não-entendimento racional daquilo que chamamos de vida, calendário, entendimento, prazo, fim. Não basta partir de uma razão cartesiana para ler poesia, para pensar na percepção da experiência é preciso espanto, comoção, assombro, alguma magia.

“provamos a carne crua da ignorância
até entender que entender leva tempo
o agora é imenso, não há fronteiras
a possibilidade se avizinha de outra possibilidade
que é irmã de mais uma e em nada se assemelha
a tantas outras”

página 37, poema “quando ainda”

A poeta escreve para dentro, construindo uma concha misteriosa em torno das palavras. Só que essa concha não está absorta em si mesma, ela é também uma concha acústica, que, inspirada no ouvido humano, é feita para fazer reverberar melhor o som para a plateia que se permite entrar, ficar e permanecer.

Dentro da poesia de Marcela, o íntimo nos atinge. Nossa intimidade se entrelaça com a do eu-lírico e nos lembra do que somos feitos: ternura, medo, beleza, dúvida, perda e um pouco do que pode parecer nada para alguns, mas é a matéria-prima que nos faz gente, como a cena de uma avó plantando rosas, de uma casa que é casa por causa das amoras roxas de sua calçada, de um pai fritando peixe e servindo cerveja para ele e a filha numa sexta-feira santa, de uma mãe que cozinha couve com devoção, de um amigo recém retornado de uma grande viagem.

Da costela do impossível se constrói pela via da luz, da sombra e da imagem refletida por essa combinação ser possível como parte da natureza. Mesmo buscando iluminar as miudezas que tornam a existência algo muito além da mera sobrevivência, a autora nunca esquece que na luz se encontra também a escuridão. Marcela escreve para honrar o mais bonito de suas origens, trazendo à tona Adélia Prado como epígrafe e referência de sacro e sacrilégio, luz e sombra, vida e poesia. E, nesse estranho lugar, tradição e modernidade se encontram com todas as suas contradições.

Acervo pessoal – Bafo de Poesia

Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram. Se interessou pela obra? Compre “Da Costela do Impossível” diretamente com a autora ou com a editora.

O último show de Milton Nascimento e a minha vã tentativa de registrar o assombro

Acervo pessoal – Registro meia boca do último show de Milton Nascimento – Dia 13.11.22, por volta das 20h.

Somos feitos por memórias. Cada um reage, pensa, descobre e sente o mundo e a si mesmo a partir de uma bagagem construída por um estranho mix que une real e imaginário, vivido e ouvido, experimentado e pesquisado. Nossa identidade se deriva dessa reunião de fragmentos, flashes e miudezas que se dispersam de situações variadas para se fixar neurônios afora como lembranças.

Somos uma colagem em construção. Vamos juntando pedaços de mundo, empilhando recortes de revista, unindo cenas cotidianas com histórias inusitadas, sem nunca isolar qualquer uma dessas imagens, sensações, pensamentos. Somos uma bola de neve de referências unidas organicamente, vindas de nós, dos outros e do mundo, selecionadas por um cérebro sedento por sobrevivência e ainda assim influenciado pelo mundo externo e a repetição de situações banais, a assimilação de imagens nunca vistas e o encontro com a criação humana em qualquer forma. Seja na música, em um corpo que se mexe e se expressa ou numa sequência de palavras que formam uma frase que pra você explica tudo. 

O problema é que o que você pensa ser essencial agora pode ser visto pelo seu corpo como algo a ser descartado daqui a 3 anos, uma década ou 6 meses. E é por isso que eu escrevo. Pelo registro daquilo que em algum momento ganhou minha atenção e eu achei importante o suficiente para não deixar sua lembrança à mercê de circunstâncias cerebrais misteriosas.

Hoje me esforço para escrever sobre o show de despedida do Milton Nascimento. Quase 90 horas separam a escrita da experiência. Não pude escrever imediatamente. O show continuou reverberando dentro de mim, fugindo do controle das palavras, me assombrando, enquanto se tornava lembrança e matéria em um processo de digestão que não inclui a linguagem como a gente conhece.

Dizer que faltam palavras para descrever uma experiência é um clichê humano que toda tentativa de comunicação busca transformar em mito. Contar algo para alguém, antes de ser um compartilhamento diligente de uma experiência que pode fazer surgir ou reforçar uma conexão entre pessoas, é um esforço pelo registro, um teste experimental da memória, uma iniciativa que busca transformar em narrativa um processo não linear de percepção. 

E eu quero tentar fazer isso com esse show, porque preciso prover minha memória de um recurso que, além de organizar o mundo de cenas, sensações, sentimentos e pensamentos que me vem quando penso no que experimentei domingo, servirá, no futuro, para não deixar o tempo fazer sumir com nuances que eu considero essenciais nessa lembrança que ainda tenho, mas não sei se devo. Realmente não sei se devo.

O registro da memória é um desejo impossível, uma busca que a humanidade tenta empreender pela arte, pela cultura, pela ciência e pela convivência humana. Só que o registro desse show é mais do que isso, é uma tentação, talvez até mesmo uma violação de um pacto selado com todos que estavam ali para vivenciar o final de uma carreira de 60 anos numa única noite.

O show do Milton Nascimento começou antes de começar. No telão, uma foto dele abraçado com Gal Costa, nos fazendo lembrar, mais uma vez, que aquele encontro era também uma despedida. Um ritual de despedida, na verdade. Uma celebração da vida e de uma vida que a partir de suas criações foi capaz de encontrar outras tantas. Uma cerimônia que uniu fins e começos, tendo como matéria-prima o canto, a palavra, o choro, o riso, a contemplação, o compartilhamento e o festejo. E a memória, porque é ela que faz tudo isso fazer sentido. 

A voz de Milton evocava a nossa, como se assim, cantando juntos, tivéssemos a força de enfrentar com dignidade o medo da morte que a velhice — e a própria vida — anuncia. E assim Bituca se mostrou inteiro para nós, colocando seu corpo frágil de 80 anos de história no centro de um palco que pulsava o vigor de sua presença, sua vontade, sua relação com a música e o público. E essa cantoria bonita foi se desdobrando em outras vozes e sons feitos por convidados ilustres como os outros membros do Clube da Esquina, Samuel Rosa e Zé Ibarra, mostrando a vivacidade do afeto presente nesse evento capaz de unir com precisão sentimentos antagônicos como a alegria do encontro, a tristeza de ser o último e o júbilo de ouvir “viva a democracia!” após a queda de Bolsonaro. Sentir é mesmo uma força da natureza. 

60 mil pessoas estavam no Mineirão, sendo testemunhas, de corpo e mente, do espetáculo que acontecia dentro de um estádio de futebol lotado, todos esperando como parte de uma coletividade estranha, poder dizer “adeus”, “muito obrigada”, “como você pode escrever pra mim sem nunca ter me conhecido?”. 60 mil pessoas acompanhadas de outras tantas, porque se somos feitos de memórias, carregamos para onde vamos todos os nossos, vivos os mortos. 

Minas Gerais é a terra da memória. Da minha memória, pelo menos. E também da memória da maioria das pessoas que estavam ali, unidas por esse canto coletivo pela arte, pela vida e pela nossa capacidade de lembrar e se tornar lembrança. Minas Gerais aconteceu no Mineirão no último domingo, ao se transformar neste espaço-tempo onde tudo e todos se uniram em uma liturgia contemplativa em que ontem, hoje e amanhã decidiram se confraternizar numa contradição que se resolve apenas no universo da memória. Minas Gerais é onde o tempo se fez presente para ver Milton Nascimento se despedir dos palcos no solo que fez dele um músico.

Ainda bem que pude assistir esse show na cidade que chamo de casa, onde talvez eu nunca precise explicar direito o que foi estar ali, se vendo diante da própria vida, a partir da música, da voz, da poesia de Bituca. Ainda bem que pessoas a quilômetros de distância da Avenida Abrahão Caram, 1001, também puderam assistir grande parte do que vi ao vivo, ampliando a possibilidade de fazer acontecer conversas sobre arte, conexão, vida e desejo de viver e morrer com dignidade e encanto. Ainda bem que a beleza desse momento ficará comigo além da tentativa de registro que esse texto e algumas fotos representam. E ainda bem que eu sempre soube que a linguagem não dá conta de tudo e agora eu posso ter comigo, sem culpa alguma, o assombro não-nomeado de um show que representa a vida como essa travessia estranha que Milton Nascimento, Guimarães Rosa, Conceição Evaristo, Adélia Prado e tantos outros artistas, mineiros ou não, ousaram tentar explicar ao nos fazer sentir vivos, vivíssimos.

se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram.

“O acontecimento” segue acontecendo aqui e agora: o impacto da adaptação cinematográfica do livro de Annie Ernaux numa leitora brasileira

Cartazes do filme – Confira o trailer aqui.

As memórias do angustiante verão francês que Annie Ernaux viveu em 1963 e só foram escritas mais de trinta anos depois ganharam um novo formato ao serem transformadas em uma obra cinematográfica pelas mãos da diretora Audrey Diwan, da roteirista Marcia Romano e de toda uma equipe repleta de mulheres.

Quando Annie Ernaux escreve sobre o aborto clandestino que viveu tantos anos depois, tempo e memória se misturam ao fato, tornando seu livro também uma busca pelo registro daquilo que a autora viveu em segredo, como outras tantas, francesas ou não. Quando ela decide escrever essa história da forma que fez, crua e quase documental, ela coloca em evidência que a escrita da não-ficção que parte de si é também uma tentativa de adaptação: como fazer das lembranças palavras? É possível capturar os sentimentos dissolvidos nas cenas que conseguimos recordar tanto tempo depois? Qual é o papel de ler e reler o diário daquele ano nisso tudo? Como as palavras que escrevi quando tudo acontecia afetam quem sou hoje? Falar de si é falar de uma época? Escrever sobre a própria solidão é uma forma de se sentir acompanhada nela? E esquecer é também uma forma de morrer? Se sim, então escrever o que lembra é tentar viver além da própria experiência?

Se no livro a solidão, a angústia e o desamparo da personagem durante os três meses de 1963 chamam atenção, enquanto se misturam com o efeito do tempo e a ânsia da tentativa de tornar aquela vivência algo tangível pela escrita, o filme se propõe a tratar apenas do tempo da gravidez indesejada como fato incontornável, concentrando todo o desespero silencioso da personagem só naquilo, sem a reflexão temporal que envolve a recordação.

“O acontecimento” cinematográfico consegue então tornar a escrita memorialística de Annie Ernaux um recorte situacional que se aproxima ainda mais da construção dessa verdade pretendida na tentativa do relato, ainda que as cenas do filme tenham tido modificações pontuais no processo de adaptação e essas mudanças mostrem a presença de outras autoras, atrizes, cenários e a transformação daquilo que foi escrito como memória em ficção.

No filme, acompanhamos a história de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) como quem persegue uma personagem por ângulos intrusos. Nos transformamos em olhos vigilantes pela câmera curiosa, como se fôssemos parte do que torna o aborto buscado pela personagem um crime, uma vergonha, algo a ser acompanhado como fofoca por quem se delicia por saber que conseguiu escapar de estar nesse lugar, que pode ser “só” o de vagabunda que transa antes do casamento ou o de mãe solteira.

Conhecemos a intimidade dessa protagonista como parte do que torna a sua vivência um tabu e uma ilegalidade e isso, junto da atuação de Anamaria Vartolomei, ajuda a construir para o espectador uma agonia silente que mescla uma espera ansiosa por uma possível solução para aquilo que seria o fim de um futuro brilhante, enquanto esse mesmo futuro brilhante parece prestes a desmoronar pelo efeito dessa espera que não se realiza, e o medo dessa solução, se ou quando alcançada, se tornar o fim de qualquer futuro ou quase isso, com a morte, a mutilação ou a prisão.

O interdito é trabalhado também com a tensão sexual que insiste em se manifestar o tempo todo no universo da personagem, mesmo aquilo sendo visto como proibido. O estigma do exercício da sexualidade feminina paira sobre as jovens que falam o tempo todo de sexo, enquanto julgam as que ousam fazer, junto do medo da gravidez, que, além de ser uma manifestação da maternidade indesejada para aquele momento, representa também um atestado público de que aquela mulher não é mais virgem e pura, logo não merece mais respeito.

O universo da personagem é bem apresentado: temos ali as visitas aos pais trabalhadores no interior que precisam se manter como sempre foram para ninguém desconfiar de nada, as disputas internas entre os diversos grupos de jovens mulheres que dividem o dormitório e o espaço universitário, as fofocas durante as aulas, as festinhas regadas por Coca-Cola, a solidão mesmo quando acompanhada, a insônia de quem tem um problema a resolver e as mesmas três ou quatro roupas repetidas que evocam tanto a origem da protagonista, quanto o cotidiano como ele é.

O aborto clandestino se desenha nas duas linguagens como um desalento construído por uma disputa de riscos que pesa principalmente para aquelas sem os contatos e informações certas, essas que precisam apelar para métodos caseiros no escuro do quarto ou cirurgias em um cômodo de uma casa qualquer ou os dois. Sendo as consequências de uma gravidez indesejada ainda mais pesadas para uma mulher pobre buscando alguma ascensão social pelos estudos, como a personagem, ou uma operária ou atendente de supermercado. Só que até para as mais ricas, a clandestinidade recai de forma ameaçadora, porque mesmo com um contato do médico certo e seguro em mãos e a garantia de que não irá presa por escolher, ainda existe solidão, proibição de falar e praticar e estigma. Tudo isso cria um cenário perigoso que poderia não existir se a responsabilidade da gravidez não fosse imposta às mulheres somente, o aborto fosse legal, seguro e gratuito e uma informativa e acolhedora educação sexual fizesse parte do currículo das escolas.

Ainda que o aborto por escolha da mulher seja legal na França desde 1975, tendo sido Annie Ernaux uma ativista por esse direito, no Brasil nunca foi e ainda não é. O que torna a aflição da personagem Anne e os riscos corridos por ela para fazer valer seu desejo pelo, ainda que inexistente legalmente na época, direito à escolha muito próximos da realidade das mulheres brasileiras hoje, com suas vítimas fatais aqui e agora, entre mutiladas, presas e sortudas aliviadas. O interdito presente nas obras segue no Brasil, não só pelo tabu, mas pela força da lei e das ameaças e práticas conservadoras que tentam tornar o aborto uma ilegalidade mesmo nos raros casos liberados pela nossa legislação: risco de vida para a gestante, gravidez fruto de estupro e gravidez de feto anencéfalo.

As cenas do filme “O acontecimento” parecem ainda mais gráficas e desoladoras para quem divide comigo a nacionalidade e o domicílio brasileiro e acompanha, além das histórias veladas de familiares, amigas e conhecidas, as notícias de meninas que sofreram pressão judicial, governamental e social para não usufruir do seu direito ao aborto legal previsto como exceção na lei penal.

Mesmo a filmagem fugindo do sangue, da agulha, dos instrumentos da enfermeira e focando no rosto e atuação da atriz, a gente sabe o que a clandestinidade causa direta e indiretamente e isso basta para nosso estômago revirar de tensão.

Poderia ser eu, poderia ser minha mãe, poderia ser uma amiga, poderia ser a vizinha do 103 ou a moça da bilheteria do cinema, mas foi Annie Ernaux em 1963 e muitas outras que não tiveram a sorte de sobreviver para contar ou nunca puderam elaborar o momento. Para quem tem um útero que se revira em cólica e sangue menstrual periodicamente, não precisa ser gore para ser quase um filme de terror, emular a realidade como ela é basta para nos lembrar que nosso corpo ainda está no controle do Estado e o que tudo isso significa.

Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram. Se interessou pela obra citada no texto? Compre “O acontecimento”“O lugar” e “Os anos” usando meus links de associada da Amazon ou diretamente na Editora Fósforo.

Você também pode se interessar em ler “O acontecimento também é a escrita: a proposta literária de Annie Ernaux encontra o aborto clandestino

O acontecimento também é a escrita: a proposta literária de Annie Ernaux encontra o aborto clandestino

Acervo Pessoal – Para comprar os livros de Annie Ernaux clique aqui.

A escrita de Annie Ernaux foi um acontecimento pra mim: ler “Os Anos” (tradução de Marília Garcia) me impactou de um jeito que de repente me vi indo atrás de tudo que ela escreveu. Cheguei a cogitar começar a estudar francês para eventualmente poder ler sua obra no original, sonhando em não ter mais que lidar com a busca por uma ponte idiomática entre ela e eu e a espera por novas traduções ou encontros com exemplares em inglês perdidos em sebos. Desisti quando percebi o óbvio: a fluência necessária ainda ia demorar muito e os novos lançamentos da autora pela Fósforo acabariam vindo primeiro, até porque o período de aprendizado de um novo idioma dura uma vida inteira.

Annie Ernaux faz literatura a partir do tempo e da vida. E por causa dela me peguei negociando com ambos, como se eu já não estivesse acostumada a tentar controlá-los. O tempo para essa autora não é simplesmente uma agenda, um relógio, o despertador que se esgoela, é a matéria da vida. E não só a vida dela. Escrevendo a partir de si, Annie Ernaux aborda a memória como vida, identidade e zeitgeist, uma mistura que transforma uma cena pessoal em um retrato de um momento específico na França, um recorte que só ela, tendo vivido aquelas experiências, poderia fazer como foi feito. A memória em “Os anos”, “O lugar” e “O acontecimento” é uma manifestação que abarca os arredores de quem narra, forma paisagens e cenas vívidas, é feita por pessoas além da autora e os lugares que cada uma dessas pessoas tem dentro do que a sociedade definiu nesse recorte temporal que pode caber quase um século ou três meses. É uma mancha disforme feita de gente se espalhando em um papel, não um ponto perdido e fixo no eu.

Além de contar o que lembra, a escritora relata com detalhes o processo de lembrar, e assim transforma sua escrita numa busca que parte do registro da lembrança como tentativa de capturar a sua verdade, o seu sentido da vida. Essa investida em transpor memória na escrita é o desafio impossível que a move. A partir do ato de registrar e formular, a autora tenta preservar a memória, torná-la menos volátil, tirar dela a abstração presente em sua composição, transformá-la em algo menos dela. A escrita então não representa as condições de temperatura e pressões normais, ela é a ferramenta que se usa para tentar tornar sólido o que em nosso universo só se encontra em estado gasoso. É uma busca por materialidade.

Ao escolher a via da memória como projeto literário, Annie Ernaux decide expor seu corpo, sua verdade, seus registros mentais e documentais e todo seu esforço por lembrar e escrever e elaborar. A exposição em si não é o intento final, é o meio, é a única forma de buscar acessar a reminiscência, logo a percepção de tempo tangível para a humanidade e que, de maneira única, forma quem cada um de nós é, enquanto nos une em torno de uma mesma época.

Em “O acontecimento” (tradução por Isadora de Araújo Pontes) isso se torna ainda mais evidente, talvez pela gravidade da situação narrada, da separação desse momento de todos os outros, pelo uso da primeira pessoal do singular ou por tudo isso junto. Quando ela escreve seu aborto e afirma que a única culpa que carregava a respeito dele era a de até então não ter criado algo não ficcional a partir disso que aconteceu com ela, Annie Ernaux revela quem ela é, foi e quis ser e a relação disso com sua motivação para escrever.

Relatar seu aborto clandestino é se colocar novamente exposta ao olhar de julgamento do Outro e de uma época, enquanto toma pra si o direito de lembrar, de falar, de escrever. É uma busca extrema por autonomia, porque vai muito além da escolha que ela expõe e revela como parte de si e direito essencial, é sobre olhar para quem se é até o limite e transformar esse processo criativo em sentido da vida, em algo que vai se fazer chegar em forma de literatura até outras pessoas. Sendo as epígrafes desse livro uma pista desse projeto maior: “Meu duplo desejo: que o acontecimento se torne escrita. E que a escrita seja acontecimento” (Michel Leiris) e “Talvez a memória não seja mais do que olhar as coisas até o limite” (Yüko Tsushima).

E o que torna essa escrita que busca autonomia ainda mais interessante é que a autora tenta dar forma às suas memórias levando em conta uma perspectiva documental, de registro de um momento além dela mesma, ainda que nesse livro a escritora francesa não use o nós e nem a 3ª pessoa, como faz em “Os Anos”. O individual e o coletivo se encontram o tempo todo ainda assim, quando ela narra o que viveu. A conexão dela com os Outros, no caso, principalmente as Outras, não está no jornal ou na lei, está nesse espaço coletivo e público não captado e captável pelo jornalismo ou pelo legislativo francês, esse espaço que ela como escritora tenta acessar ao fazer e ler literatura. O lugar de suspensão da personagem durante a espera pelo aborto parece só dela, mas nunca foi e, justamente por saber disso, Annie Ernaux escreve assim, buscando expor a experiência humana a partir da própria subjetividade, sendo essa subjetividade um eu presente e marcante e também parte de um meio, um mix de self, origens familiares, bagagem cultural, conhecimento e construção social. Um mundo feito de memoração pura e simples, daquilo que foi capaz de fixar nesse cérebro, independente da procedência, da lógica e da utilidade.

Ler “O acontecimento” num fôlego só dá mais sentido ainda pra tudo que está escrito ali. Toda a angústia e desespero que movem essa narradora pela cidade e a silencia pela solidão e pelo interdito estão ali, mesmo quando a gente lê que ela falou de novo com alguém sobre seu desejo de abortar, porque a gente sabe que se ela fez isso foi para lembrar que ainda existe, importa, está viva, quer algo diferente do que está posto. A gente só respira direito quando termina o livro e sabe que tudo passou e que ela conseguiu, tanto abortar na clandestinidade e sair viva, quanto escrever sobre essa experiência de extrema violência sem os ornamentos literários comuns às representações de angústia e desespero. E isso importa, porque a busca por autonomia dessa escritora também tem a ver com encontrar essa crueza sem os artifícios tradicionais, porque para Annie Ernaux autonomia também é fazer a experiência dobrar o que a linguagem impõe a ela e é por isso que ela evidencia, ao longo do livro, que a palavra aborto era proibida para o mundo, enquanto para ela o que nunca fez sentido foi a palavra grávida. Palavra é poder e é por isso que ela narra assim, como se somente a partir desse tensionamento ela pudesse se colocar no mundo de verdade, integrada ao todo, sem estampar no texto de maneira óbvia o desamparo que a acompanhou durante seus três meses de gravidez indesejada, mas ainda assim torná-lo quase palpável para quem a lê.

Annie Ernaux escreve porque quer registrar uma verdade pessoal e coletiva que se dissipa ao ser procurada, ela quer transformar em palavra sentimentos, reflexões e memórias difusas e criar a partir do indizível. Com sua criação e processo criativo, Annie Ernaux tenta controlar o tempo, dominar as próprias vivências, entender como a memória funciona e torna cada um de nós um, mas também nos une aos outros, tudo com base no misterioso poder da palavra, do simbólico, do dito e não dito. Annie Ernaux escreve, porque quer captar o que é a experiência humana total para depois transmiti-la, se tornando parte desse todo, e, por isso, diz ao fim desse livro: “As coisas acontecem comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros.”

Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram. Se interessou pela obra citada no texto? Compre “O acontecimento”, “O lugar” e “Os anos” usando meus links de associada da Amazon ou diretamente na Editora Fósforo.

Você também pode se interessar em ler o ensaio “Igual à narina e também a resenha ““O acontecimento” segue acontecendo aqui e agora: o impacto da adaptação cinematográfica do livro de Annie Ernaux numa leitora brasileira”.

O que essa parede descascada diz de mim?

“Domesticidades”, diz a capa de um pequeno livro turquesa numa exposição de arte. Não posso folheá-lo, conferir o que foi revelado ali. “Domesticidades” está enclausurado, protegido das minhas mãos meladas de suor e álcool em gel. Dentro da mesma redoma de vidro, há um outro exemplar, esse aberto na página 72. Alguém definiu que isso seria o que eu veria das tais domesticidades, mas o reflexo da luz no mostruário tornou aqueles borrões de quintais um desafio de se enxergar.

Quero saber quem escolheu destacar a página 72. Descubro no texto de apoio dois nomes: Renata Marquez e Wellington Cançado. E encontro a descrição da ideia, uma possibilidade de vislumbrar a obra sem saber o que diabos tem nela. Usando fotos disponíveis em sites de imobiliárias, nasceu um guia dos lugares não visitáveis de BH. Ali está um arquivo mal fotografado de um mundo de inquilinos e proprietários que buscam a ilusão de fazer algum espaço seu.

Captar a vida privada é um desafio da memória coletiva. As domesticidades não estão totalmente visíveis nem nas mais cruas fotos do Instagram. Elas estão enclausuradas, como a obra de Renata e Wellington está. Documentar o universo íntimo é um desafio também para a memória individual. Quando estou fora, penso na minha escrivaninha organizada, sendo que ela com certeza está entulhada de livros, papéis, canetas e itens tecnológicos relacionados a esse computador que me serve de máquina de escrever e conexão com o mundo.

O registro das domesticidades — e talvez até mesmo a própria memória — sofre com o medo do julgamento e da inescapabilidade do banal. Vivo de maneira aceitável? Sou suja? Porca? Cafona? Mimada? Durmo demais? Sou gente? Sou bicho? Existo?Tem algo que importe aqui?

Talvez nem mesmo o cronista mais atento consiga assimilar completamente o meio termo entre o conforto de uma cama desarrumada e o nojo de uma pia suja. Só os gatos sabem, porque eles têm como hábito jogar ao chão todas as redomas de vidro.

Esse texto foi escrito por mim para o módulo “Ler e escrever crônicas” da Iana Soares a partir de uma proposta que envolvia a ideia de “Nomear o tempo” e fotografias autorais. Esse módulo fez parte da minha turma da especialização em Escrita e Criação da Unifor, curso de pós-graduação coordenado por Socorro Acioli.

Para fazer esse exercício, parti de uma visita a um museu de Belo Horizonte em que encontrei essa obra aprisionada para refletir sobre memória, o eu e o Outro.

Você pode conhecer o “Domesticidades” aqui.

éramos_duas.mp3

Ma-má? Mã-mã? Ma-mã-ma-mãe? Mamãe? Vem cá, mamãe. Mamãe, dorme comigo hoje? Por que, mamãe? É só um au-au, mamãe. Mamãe, eu quero. Não, mamãe. Desculpa, mamãe. Mamãe, o que é isso? Não é nada não, mamãe. Mamãe, me dá? Por que, mamãe? Mamãe, cê tá triste comigo? Me conta uma historinha, mamãe. Mamãe, eu não quero. Olha que bonito, mamãe! Mamãe, cê gostou? Vem brincar, manhêêêê! Mãe, cuidado com a bola! Eu juro que não fui eu, mãe. Eu prometo, mãe! Mãe, foi sem querer. Ah nem, mãe. Mãe, que saco! Toda hora isso, mãe. Mãe, posso dormir na casa da vovó hoje? Chuta pra mim, mãe! Que bicuda você deu, mãe! Por que não, mãe? Não quero brincar de boneca, mãe, não gosto mais. Foi mal, mãe. Vamos dormir mais tarde hoje, mãe? Mãe, deixa eu levar esse gatinho pra casa? Que que tem, mãe? Mãe, o que eu faço agora? Não vou calçar essa sandália hoje, mãe. Não gosto, mãe. E quem disse que eu ligo para isso, mãe? Não quero, mãe. Mãe, eu já falei que eu não quero! Mãe, nem vem que já não sou mais criança. Que delícia, mãe! Me ensina, mãe? Deixa eu ir, mãe. Mãe, por favor! Ai, mãe, cê não vem mesmo nadar com a gente? Mãe, por que você tem que fazer isso toda vez que eu vou sair? Como você era na escola, mãe? Cê ia bem em tudo, mãe? Mãe, me ajuda com esse zíper. Mãe, me empresta essa jaqueta? Boa noite, mãe. Só hoje, mãe. Mãe? Me deixa tentar, mãe. Eu sei, mãe. Mãe, que saco! Mãe, o que você tá fazendo aqui? Por que você fez isso, mãe? Mas eu não gosto, mãe. Eu não quero usar mais essas roupas feias suas, mãe. Ai, mãe. Tudo bem, mãe? Me dá uma carona, mãe? Obrigada, mãe. Mãe, que livro é esse que cê tá lendo agora? Mãe, me deixa em paz. Não quero falar com você agora, mãe. Eu quero ficar sozinha, mãe! Mãe, que gracinha! Te contei, mãe? O que está passando na TV, mãe? Esse programa é bom, mãe? Mãe, eu quero é isso pra mim. Ai, mãe, eu já não sei mais o que fazer. Me ajuda, mãe. Mãe, cê não vai acreditar… Você já fez isso mesmo, mãe? Jura? Mãe, agora tá pronto, pode olhar. Ficou bom, mãe? Não tem nada demais nisso, mãe. Não precisa ficar elogiando, mãe. Mãe, deixa de ser boba. Uai, mãe… Cê adorou, né mãe? Mania nova, mãe? Valeu, mãe. Que beleza, mãe! Mãe, mas cê já vai? Chegou cedo hoje, tava com saudade de mim, né mãe? Mãe, você viu isso? Vamos fazer alguma coisa diferente esse domingo, mãe? Mãe, cê ficou sabendo? Tava bom demais, mãe. Do que você tá falando, mãe? Não se faz de sonsa, mãe. Mãe, o que cê achou? Curtiu, mãe? Que vergonha, mãe. Dá licença, mãe. Gostou do presente, mãe? Vem tirar foto, mãe! Mãe, tudo vira neura na sua cabeça. Mãe? Credo, mãe, que mania que você tem de botar defeito nas minhas coisas. Bom apetite, mãe! Vai um baralhinho hoje, mãe? Mãe, eu já disse que não quero mais. Vou ter que repetir, mãe? Sério isso, mãe? Mãe, deixa eu ver. Vamos agora, mãe? Já tá na hora, né? Mãe, como foi lá? Deu pra entender bem, mãe. Que que foi, mãe? Nossa, mãe, me conta isso direito. E essas fotos antigas, hein, mãe? Olha essas roupas esquisitas que todo mundo usava, mãe! Esses cabelos, mãe! O que vamos fazer hoje, mãe? Ai, ai, mãe. Se anima aí, mãe! E o que você disse, mãe? É assim que se faz, mãe! Mãe, quer emprestado? Me mostra logo como ficou, mãe! Mãe, tô curiosa! Tá toda toda, hein, mãe? Mãe, como você não entendeu ainda que eu faço o que eu quiser? Mãe? Mãe, tô preocupada com você. Conversa comigo, mãe. Mãe, você não presta atenção no que eu falo mesmo, hein? Mãe, já marcou seu médico? O que o médico falou, mãe? Mãe, que saco, hein? Toma esses remédios direito, mãe. Mãe? Quer vir pra cá, mãe? Cê gostou, mãe? Mãe, cê mesma quem fez? Lá vem você de novo com esses trem, né mãe? Ai, mãe. Não sei, mãe. Se animar, eu te levo, mãe. Me conta isso direito, mãe. E cê acreditou, mãe? Ai, mãe, eu não aguento mais. Quem disse que ia ser fácil, né mãe? Quer um pouquinho, mãe? Mãe, vem dançar! Onde você aprendeu esses passos, mãe? Você não tem jeito mesmo, né mãe? Só mais um pedaço de bolo, viu mãe? Chegou chegando, hein mãe? Mãe? Tá pronta, mãe? Tô passando aí, mãe. A gente combinou, mãe. Cê esqueceu de novo, mãe? Mãe, mas cê desistiu de ir e nem me avisou? É isso mesmo, mãe? Mãe, o que você achou? Aceita, mãe? Tá tudo bem, mãe? Obrigada, mãe. Trouxe cruzadinha, mãe. Mãe, precisa de ajuda? Bem-vinda, mãe. Mãe, pode deixar que eu faço. Tá gostando, mãe? Mãe, você sabe que você não dá conta mais. Caramba, mãe! Vem cá, mãe. Mãe?

Colagem analógica de Thaís Campolina a partir de fotos de Bárbara Olsen

Esse conto, assim como essas colagens, fazem parte da coletânea “Casa nua – maternidade devassada”, obra que reúne trabalhos produzidos pelas participantes do Coletivo Escreviventes numa parceria com a Revista Tamarina. O e-book é composto por textos em prosa e verso de 49 escritoras brasileiras e trata sobre diferentes perspectivas de ser mãe e ser filha, levando em conta também a possibilidade de não ser mãe e os aspectos políticos e sociais desse ser e não ser. Baixe o PDF aqui.

Esse texto também foi publicado na Revista Mormaço.

fulaninha

Acervo pessoal – “Movimento” – Colagem analógica feita por mim

não dorme
horrorizada
com quem deveria ser
mas não é
com o que deveria ter
mas não tem
com o que deveria fazer
mas não faz

é assombrada
pelos equívocos cometidos
por seus crimes sem previsão legal
todos já com audiência marcada
no pior dos tribunais morais

​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ ​ o próprio

pensa
nas rezas devidas
nas penitências nunca feitas
na punição à espreita
toda vez que ousa
ser a mulherzinha
endiabrada
que é

que pelo menos hoje, mais um oito de março, deixemos a culpa de lado. Sejamos mulherzinhas endiabradas que dizem foda-se para essa ideia de que a gente tem que fazer por merecer para ter dignidade, respeito e paz.

esse poema faz parte do meu livro “eu investigo qualquer coisa sem registro”, obra que foi selecionada para publicação no concurso Poesia InCrível de 2021. se você gostou, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram.

Sobre publicar um livro pela primeira vez

Acervo pessoal – Divulgação

Na foto, tenho como minha extensão meu livro aberto. Levei um exemplar pra passear na praça antes de qualquer um poder fazer isso. O que é óbvio, porque coloquei meu livro em movimento desde meu 1º momento com ele, quando nem desejo ele era. Meu livro circulou muito sendo feito, quando cada cenário, testemunha, autoras, tempo e ação se apresentava pra mim. Nem sei dizer quantos animais estranhos leram esses poemas no Google Drive antes deles formarem o que tenho em mãos. O mundo virtual é pouco tangível ainda que eu consiga saber quantos clicaram nas publicações que fiz de alguns deles no meu blog. Ainda que eu saiba que tenho clique de Portugal, da Holanda e da Irlanda nos meus poemas belo-horizontinos e nos meus poemas insólitos e nos meus poemas sem nomeação e publicação conjunta. Não sei dizer quantos vão ler meus poemas no arquivo zoado disponível na Amazon. E nunca vou conseguir saber até onde esse livro vai chegar quando seus PDFs, epubs e mobis começarem a voar.

Sei mais dos exemplares físicos. Sei que eles nasceram numa gráfica, foram para editora e depois se espalharam a partir das minhas mãos, dos Correios, dos entregadores, dos divulgadores literários que eu escolhi a dedo junto da editora e da minha assessora e amiga pessoal Marcela Güther. Sei que logo estarão nas mãos de bibliotecários, professores e, espero, leitores da cidade que escolhi como minha. Sei que eles chegam semana que vem no Ceará, em Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Pernambuco. E sei que a maioria permanecerá na sua cidade-origem, se espalhando em bairros, ruas e praças que nunca pisei, porque morar em uma grande cidade não significa conhecê-la completamente. Elas são inesgotáveis.

Já estive com esses livros em mente, andei com eles na bolsa, tive que protegê-los da chuva, da cerveja e da oleosidade de mãos. Já vi um exemplar manchado de gordura e vários dos meus poemas desformatados. Já encontrei foto de poema meu em redes sociais de gente que ainda nem conheço. Já descobri o poema preferido de algumas pessoas. Nem sempre o que gostam mais coincide com a minha opinião. Ainda bem.

Quero saber um pouco do caminho que o livro vai trilhar sozinho, só o suficiente para eu eu possa imaginar onde ele pode chegar. Peço que não me contem os versos que vocês não gostaram. Deixem para falar isso quando eu não estiver olhando. Não deixem de me dizer que leram meus poemas esperando ônibus no ponto ou curtindo uma tarde numa praça. Isso é o que eu realmente quero saber.

Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram. Se interessou pela obra citada no texto? Baixe meu livro aqui.

Igual à narina

A linguagem nasce como um bocejo. Quando uma boca se abre e o cenho se franze, o rosto ao lado reage fazendo o mesmo. De repente, nosso jeito de falar, estruturar pensamentos e agir começa a mudar: uma palavra nova é adicionada ao vocabulário, uma pausa que não existia antes aparece, um novo jeito de mexer as mãos e balançar as pernas é imposto pelo corpo, o ritmo da respiração muda, um fonema fica mais chiado, a voz agora soa fanha, a risada ganha ou perde fôlego, você passa a dar três beijinhos ou fazer um toque de cotovelos para cumprimentar alguém e se surpreende com os músculos do rosto se contraindo numa careta inédita. E esses novos hábitos podem ou não se manter. Depende da sua abertura para o mundo, da quantidade de contato e conexão que você tem com quem interage com você e com tudo que vem a acontecer nos domínios próximos ou distantes do universo desconhecido que vive bem debaixo do seu nariz. É por isso que algumas pessoas dizem que uma separação, qualquer que seja ela, é sempre o fim de uma língua, aquela que foi desenvolvida pouco a pouco pelos envolvidos e que agora permanecerá interrompida, um idioma fóssil geolocalizado na memória, sem falantes fora do mundo das recordações.

A linguagem surge da observação. Cada palavra, frase e gesto vem de um exercício de atenção que, sem a gente perceber, se transforma em uma outra coisa. A linguagem então também é memória, mas o que não é memória? Não importa. Ela é cada um de nós, mesmo nascendo do encontro com outras pessoas. O que é humano e não vem desse paradoxo entre o eu e nós? A linguagem é o que temos. É o que nos permite formular sozinhos ou acompanhados aquilo que é aprendido ou percebido. O que passa pelos sentidos e fica, provoca os neurônios-espelhos e dura além de um espasmo. Para cada povo ou indivíduo, a linguagem é uma identidade que vem de algo anterior, algo que só existe a partir do outro, algo único e em constante mutação. O encontro do eu com o nós, da rotina com o novo, do espontâneo com o que já foi pensando antes, do corpo com qualquer coisa.

A linguagem é absurda. O que eu chamo de amarelo não é o mesmo amarelo que você vê. O que se conhece como cor da pele não é a cor de todas as peles. Os gregos antigos não conheciam a cor azul, porque o mar e o céu assumem muitas tonalidades além. O nome das coisas nos situa no mundo, nos dá palavras para contar o que só a gente pode contar, mas não se bastam. Uma língua pode até ser criada com um fim específico, como o ficcional právico de Os Despossuídos da Ursula Le Guin ou o esperanto do mundo que conhecemos, mas somente no uso as palavras encontram a vida, se transformam e ganham os contornos das idiossincrasias. Nem precisa ser poeta para fazer uma metáfora, nem Guimarães Rosa para ousar um neologismo. Muito menos atuar como personagem italiano de novela brasileira para gesticular até torcer o que dizem as palavras pronunciadas com um sotaque que só existe no mundo da ficção.

A linguagem é um vírus. Ela muda, ela circula, ela precisa de contato para continuar. Ela pode ser transmitida. Ela tem que ser transmitida. Talvez nem o isolamento total consiga parar essa contaminação. Algo fica, eu sei que fica.

A linguagem é um erro. Ninguém consegue dizer o que quer ou precisa. Emissor, receptor, mensagem, tudo, absolutamente tudo, que envolve nossa vontade de se fazer entender é feito por caquinhos que se unem apenas pela liga da saliva. Sem cola escolar ou super bonder, apenas saliva. O papel pode se rasgar se a gente umedecer demais a mensagem, virar uma bola de cuspe que pode ser moldada até atingir qualquer forma, esculturas do que se quis dizer ou se quis entender. Ou pode vir seca, sem sentido, e ainda assim chegar rasgando a pele fina das mãos ou a garganta originária. 

A linguagem é bestial. O cachorro late, o gato ronrona, os grandes felinos rugem, os pássaros cantam, os lobos uivam, o ser humano canta e o português cria palavras para referenciar a comunicação e os coletivos desses e outros animais. E tem as interjeições, os feromônios, as garras, a peçonha, as multidões e, de novo, o diferente. E do diferente origina-se também tudo aquilo que alguns chamam de monstros, esses bichos que a gente aprende a imaginar a partir desse medo do Outro que nos une e nos separa. E tem também a comunicação interespécies, que me faz entender as piscadas carinhosas dos meus gatos e também seus rabinhos que em um único movimento me avisam que eles querem continuar brincando. E assim surge mais um dialeto, esse centrado no aqui e agora da minha casa. E isso acontece também via tweets, emails, posts, mensagens instantâneas, chamadas de vídeos e áudios de cinco minutos. As amizades e as línguas surgem na fricção dos interesses comuns com tudo aquilo que a gente inventa.

A linguagem é neurociência, linguística, gramática, programação, biologia, antropologia, esporte, ABNT e arte, ela é língua, boca, dentes, bochechas, mãos, postura, músculos, corpo, careta, máscara. É indomável, capaz de invadir territórios, criar espaços, transformar o meu, o nosso, modo de dizer. É meme, é incômodo, é risada, é troca, é terror, é guerra, é você, nós, eles… sou eu. 

A linguagem é uma brincadeira, são as peças de lego que a gente usa para montar e desmontar cenários e narrativas, tentando desesperadamente contar para alguém um pouco sobre a convergência dos universos que somos com o que percebemos em contato com os outros. É o que eu tenho para satisfazer minha vontade de tentar explicar porque escrevo, tagarelo, gesticulo, observo, crio, sonho, mexo as pernas, batuco mesas e explico o cotidiano. É o que me faz sentir parte, buscar sentidos, fazer perguntas, formular resposta, ligar o computador e escrever uma mensagem para um destinatário desconhecido, elaborar experiências, abrir um caderno e rabiscar com uma caneta rosa um monstro com cabeça de mulher, rabo de cavalo, grandes caninos e tentáculos abissais. É o que me leva a amar conversar de todas as formas e com todos os animais, inclusive com uma gata preto e branca que tem as narinas rosadas como os meus mamilos e eu só conheço pela internet. 

Se você gostou dessa crônica-ensaio, deixe um comentário, compartilhe o link dela com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  TinyletterApoia.se e  Instagram. A imagem utilizada para ilustrar esse texto é uma colagem de minha autoria.

“O som do tapa” e o fio quase invisível que une as escritoras

Escrever é uma atividade considerada solitária. É preciso concentração, silêncio, tempo para colocar as palavras no papel, transformá-las em alguma coisa com sentido e depois trabalhar o texto, polir frases, reconstruir parágrafos. Só que escrever é muito mais do que isso. Quem escreve não escreve do nada, dialoga com o que veio antes e com o que está por vir. Um livro puxa o outro, que puxa mais um e esse faz nascer um blog, uma newsletter, um instagram literário, uma ideia, uma vontade de contar uma história ou duas, um desejo de compartilhar cada detalhe. Quem escreve está povoado de vozes e todo o processo de silêncio, concentração e tempo vem da necessidade de encontrar a maneira certa de construir cada texto.

O parágrafo acima é uma especulação, talvez até uma idealização. Foi construído amparado ao que eu acredito como escritora e o A que fecha essa palavra-identidade-desejo significa. Ao meu redor, vejo muitas mulheres que escrevem construindo um universo que as caiba. O apetite pelas letras de uma alimenta a coragem da outra de se colocar no mundo e assim vai. É uma tentativa de construção de potencial e oportunidade que surge a partir da troca, uma rede de aprimoramento que se cria do encontro da identidade com a alteridade e também um desafio de convivência.

Carla Guerson escreve desse lugar. Eu gosto de pensar que eu também. Por isso, em algum momento, a gente se esbarrou. Nesse nosso meio, encontros são desejados. A gente se constrói como escritora assim. A descoberta da Outra é a nossa chance de pescar algo novo no mar de histórias que nos cercam. Quem escreve precisa estar atento, uma boa história pode estar bem ao nosso lado e ai de nós se não tivermos com o olhar afiado o suficiente para captá-la. Quem escreve se coloca no mundo como uma antena parabólica. “O som do tapa” é o resultado dessa perspectiva de escrita e leitura do mundo.

A partir de 28 contos curtos, a autora constrói um livro coeso todo protagonizado por mulheres desabando, mulheres que se sentem deslocadas no mundo que vivem, destituídas da própria vida, fora daquilo que esperavam delas ou de si mesmas. Mesmo com experiências, idades, situações financeiras e sociais diferentes entre si, as vidas dessas personagens se entrelaçam no livro pelo que elas têm em comum: o impacto na subjetividade que o machismo e outras questões pessoais ou sociais que atingem algumas mulheres específicas podem trazer.

Em poucas páginas, Carla dá vida a um mundo de personagens complexas que mesclam questões individuais e atravessamentos sociais, sem jamais reduzi-las somente a seus sofrimentos, tornando cada uma dessas mulheres um alguém diferente, apesar do que o mundo quer de cada uma delas ser mais ou menos igual: a anulação de si. Mesmo abordando temas difíceis e necessários na maioria das histórias e por isso mexer com o leitor a partir do incômodo, há também contos um pouco mais leves, apesar de também críticos, como o incrível “As louças”.

Vale destacar que a autora explora muito do universo íntimo, tratando relações familiares e amorosas de uma maneira que surpreende, mas também é capaz de criar identificação e/ou empatia. “O som do tapa” mescla cotidiano, crítica ao machismo e muita vontade e habilidade de nos surpreender com finais fechados com chave de ouro. Carla Guerson estreia com contos bem escritos, bem conduzidos e de estrutura variada, histórias que se constroem baseadas em detalhes banais e privados que aproximam e afastam quem lê de cada personagem, de cada relação, porque o comum nos lembra o que mais existe com o disfarce de dia a dia, o que mais a gente finge não ver com a desculpa de que é tudo ordinário demais ou particular demais.

“O som do tapa” é um exercício de observação que denuncia o que muitos de nós não têm percebido ao redor de si ou, em muitos casos, até em si mesmas e escrever sobre isso é algo muito menos solitário do que pode parecer. Um livro puxa outro, que puxa mais um conto e esse conto servirá pra puxar mais uma língua e essa língua agora falante puxa outras línguas falantes e assim acontece a descoberta de que todas essas histórias também importam.

Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram. Se interessou pela obra citada no texto? Compre “O som do tapa” diretamente com a autora ou no site da Patuá e assista a live de lançamento da obra aqui. Há leitura de alguns contos do livro e minha participação.