“Da costela do impossível”: luz, sombra e a imagem refletida por essa combinação

Acervo pessoal

É difícil escrever o que nos comove sem recair em clichês ou mesmo numa linguagem cafona, especialmente se você for um cínico. E todo mundo foi obrigado a aprender a ser um nos últimos anos. A comoção foi praticamente proibida como tema, especialmente se ela se apresenta entrelaçada na complexidade de um cotidiano de pequenas coisas a serem contempladas. 

Tratada como um luxo numa sociedade que busca a produtividade acima de tudo e ataca até mesmo o sono, o sonho e o descanso, a comoção se encontra em extinção. Se propor a se comover virou quase um ato de rebeldia em meio a um mundo de estímulos que, sendo praticamente ininterruptos, transformam qualquer emoção em uma sensação estranha e passageira. 

É preciso digerir e ninguém tem tido tempo para digerir qualquer coisa. Estamos na era do utilitário e até a leitura de poesia pode ser transformada em mais um item de uma checklist de afazeres. Alguma poesia na rotina é melhor do que nenhuma, eu diria justificando meus atos. E talvez você concordasse comigo até você também se deparar com os poemas do livro Da costela do impossível de Marcela Alves e entender que poesia na rotina significa algo mais do que a simples leitura de uma página. 

Com uma obra focada em detalhes que tornam visíveis a cumplicidade dos laços e a beleza das pequenas coisas, a poeta constrói versos que também possibilitam contemplar e perceber a própria dor. O tempo corre diferente quando você conversa com o eu-lírico construído por ela. Não tem agenda e planejamento que dê conta. É impossível ler tudo de uma vez, ler de qualquer jeito, deixar pra ler correndo no intervalo do almoço. A poesia de Marcela é oráculo, sua leitura pede uma pausa ritualística no meio da rotina. E essa pausa pode durar apenas alguns minutos, o lapso exato de um poema, desde que você esteja presente ali, sem pensar na próxima tarefa. 

Ler Da costela do impossível é buscar compreender melhor o alcance de um instante e essa reflexão surge impondo que a gente abrace o não-entendimento racional daquilo que chamamos de vida, calendário, entendimento, prazo, fim. Não basta partir de uma razão cartesiana para ler poesia, para pensar na percepção da experiência é preciso espanto, comoção, assombro, alguma magia.

“provamos a carne crua da ignorância
até entender que entender leva tempo
o agora é imenso, não há fronteiras
a possibilidade se avizinha de outra possibilidade
que é irmã de mais uma e em nada se assemelha
a tantas outras”

página 37, poema “quando ainda”

A poeta escreve para dentro, construindo uma concha misteriosa em torno das palavras. Só que essa concha não está absorta em si mesma, ela é também uma concha acústica, que, inspirada no ouvido humano, é feita para fazer reverberar melhor o som para a plateia que se permite entrar, ficar e permanecer.

Dentro da poesia de Marcela, o íntimo nos atinge. Nossa intimidade se entrelaça com a do eu-lírico e nos lembra do que somos feitos: ternura, medo, beleza, dúvida, perda e um pouco do que pode parecer nada para alguns, mas é a matéria-prima que nos faz gente, como a cena de uma avó plantando rosas, de uma casa que é casa por causa das amoras roxas de sua calçada, de um pai fritando peixe e servindo cerveja para ele e a filha numa sexta-feira santa, de uma mãe que cozinha couve com devoção, de um amigo recém retornado de uma grande viagem.

Da costela do impossível se constrói pela via da luz, da sombra e da imagem refletida por essa combinação ser possível como parte da natureza. Mesmo buscando iluminar as miudezas que tornam a existência algo muito além da mera sobrevivência, a autora nunca esquece que na luz se encontra também a escuridão. Marcela escreve para honrar o mais bonito de suas origens, trazendo à tona Adélia Prado como epígrafe e referência de sacro e sacrilégio, luz e sombra, vida e poesia. E, nesse estranho lugar, tradição e modernidade se encontram com todas as suas contradições.

Acervo pessoal – Bafo de Poesia

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Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

3 comentários em ““Da costela do impossível”: luz, sombra e a imagem refletida por essa combinação”

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