Minha mãe sempre me pede para elaborar mensagens de aniversário, casamento, feliz natal e formatura. Qualquer celebração é um motivo para ela enviar um cartão, um bilhete, uma mensagem no WhatsApp para qualquer pessoa que ela goste. Eu digo “não” e ela me desafia dizendo “por que isso se você é tão boa nessas coisas de escrever?”
Sempre insisto no não. Digo que posso revisar a mensagem, sugerir edições, preparar o texto, mas escrever por ela sobre isso é impossível. Meu léxico é limitado demais. Sobra palavra, falta comida, é esquisito. E todas as cartas de amor são ridículas, mas as mensagens que minha mãe envia para amigos e familiares são bonitas, atenciosas, construídas sem medo dos clichês se eles ali couberem.
Eu juro, essa negativa minha não vem de nenhum lugar estranho e sombrio. Esse não é um caso do famigerado não aleatório que surge porque quando nasci um anjo Do Contra disse que eu seria uma representante dele na Terra. A resposta dessa teimosia que se repete há anos é simples: como posso escrever sobre amor em nome dela se é ela quem verdadeiramente entende do riscado?
Hoje tento dizer a ela com essa mensagem (pública, vejam só!) que pra mim só dá pra rascunhar algo sobre amor se a destinatária for ela.
Nesse caso, posso me arriscar a falar do meu amor de filha em uma estranha crônica de Instagram, porque eu sei que ela vai gostar e é isso que me importa agora. Hoje me coloco como remetente, como nas cartas de dia das mães que aprendi a fazer na escola, simplesmente porque eu te amo, mãe.
Prometo fazer um cartão melhor no seu aniversário. Quem sabe até novembro eu aprenda a ser mais direta.
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É difícil escrever o que nos comove sem recair em clichês ou mesmo numa linguagem cafona, especialmente se você for um cínico. E todo mundo foi obrigado a aprender a ser um nos últimos anos. A comoção foi praticamente proibida como tema, especialmente se ela se apresenta entrelaçada na complexidade de um cotidiano de pequenas coisas a serem contempladas.
Tratada como um luxo numa sociedade que busca a produtividade acima de tudo e ataca até mesmo o sono, o sonho e o descanso, a comoção se encontra em extinção. Se propor a se comover virou quase um ato de rebeldia em meio a um mundo de estímulos que, sendo praticamente ininterruptos, transformam qualquer emoção em uma sensação estranha e passageira.
É preciso digerir e ninguém tem tido tempo para digerir qualquer coisa. Estamos na era do utilitário e até a leitura de poesia pode ser transformada em mais um item de uma checklist de afazeres. Alguma poesia na rotina é melhor do que nenhuma, eu diria justificando meus atos. E talvez você concordasse comigo até você também se deparar com os poemas do livro Da costela do impossível de Marcela Alves e entender que poesia na rotina significa algo mais do que a simples leitura de uma página.
Com uma obra focada em detalhes que tornam visíveis a cumplicidade dos laços e a beleza das pequenas coisas, a poeta constrói versos que também possibilitam contemplar e perceber a própria dor. O tempo corre diferente quando você conversa com o eu-lírico construído por ela. Não tem agenda e planejamento que dê conta. É impossível ler tudo de uma vez, ler de qualquer jeito, deixar pra ler correndo no intervalo do almoço. A poesia de Marcela é oráculo, sua leitura pede uma pausa ritualística no meio da rotina. E essa pausa pode durar apenas alguns minutos, o lapso exato de um poema, desde que você esteja presente ali, sem pensar na próxima tarefa.
Ler Da costela do impossível é buscar compreender melhor o alcance de um instante e essa reflexão surge impondo que a gente abrace o não-entendimento racional daquilo que chamamos de vida, calendário, entendimento, prazo, fim. Não basta partir de uma razão cartesiana para ler poesia, para pensar na percepção da experiência é preciso espanto, comoção, assombro, alguma magia.
“provamos a carne crua da ignorância até entender que entender leva tempo o agora é imenso, não há fronteiras a possibilidade se avizinha de outra possibilidade que é irmã de mais uma e em nada se assemelha a tantas outras”
página 37, poema “quando ainda”
A poeta escreve para dentro, construindo uma concha misteriosa em torno das palavras. Só que essa concha não está absorta em si mesma, ela é também uma concha acústica, que, inspirada no ouvido humano, é feita para fazer reverberar melhor o som para a plateia que se permite entrar, ficar e permanecer.
Dentro da poesia de Marcela, o íntimo nos atinge. Nossa intimidade se entrelaça com a do eu-lírico e nos lembra do que somos feitos: ternura, medo, beleza, dúvida, perda e um pouco do que pode parecer nada para alguns, mas é a matéria-prima que nos faz gente, como a cena de uma avó plantando rosas, de uma casa que é casa por causa das amoras roxas de sua calçada, de um pai fritando peixe e servindo cerveja para ele e a filha numa sexta-feira santa, de uma mãe que cozinha couve com devoção, de um amigo recém retornado de uma grande viagem.
Da costela do impossível se constrói pela via da luz, da sombra e da imagem refletida por essa combinação ser possível como parte da natureza. Mesmo buscando iluminar as miudezas que tornam a existência algo muito além da mera sobrevivência, a autora nunca esquece que na luz se encontra também a escuridão. Marcela escreve para honrar o mais bonito de suas origens, trazendo à tona Adélia Prado como epígrafe e referência de sacro e sacrilégio, luz e sombra, vida e poesia. E, nesse estranho lugar, tradição e modernidade se encontram com todas as suas contradições.
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já não me lembro mais a exata cor dos azulejos do meu antigo banheiro
carrego comigo uma saudade estranha dos azulejos azuis do banheiro que chamei de meu durante mais de cinco anos. minhas sinapses tentam preservar cada quadradinho pregado na parede. durante o esforço de mantê-los nítidos, junto da pia, do bidê, da privada, das saboneteiras e outros detalhes — todos esses em seus devidos lugares e no tom de azul escuro correto — penso nas padarias que deixei para trás.
disse adeus para a Sabinão, para Arte do Trigo, para a Dupão e para a produção panificadora da rede de supermercados Verdemar e isso me lembra que a cozinha do apartamento que eu morava até mês passado também era de ladrilho, como o banheiro que sinto tanta falta.
nunca comi pão e nem bolo olhando para os raminhos de trigo dispostos em azulejos ao lado do filtro de barro que me seguiu de volta para Divinópolis. talvez se essa parte do apartamento fosse de um amarelo bonito, eu diria, inspirada em minha de novo conterrânea Adélia Prado, que essa cozinha estava constantemente amanhecendo. mas essa cozinha era de um azulejo amarelo feio que passou batido e nunca conseguiu inspirar um poema meu, nem minhas papilas gustativas. ainda bem que sempre estive rodeada de bons pães para isso.
e então penso nos pontos do transporte público do bairro, nas linhas 8102 e 8150, que me pegavam tão perto de casa sempre que eu precisava. e também nas vezes que eu descia longe, porque vim de 9410, esse ônibus que ficou inscrito em mim por trajetos anteriores ao dessa vidinha e vez ou outra me aparecia como solução mais fácil, embora não fosse.
nesses dias, eu descia ruas acima e circulava pelo bairro todo, andando e buscando o caminho que fosse mais bonito, tivesse menos morro e não me levasse para mais longe. costumava escolher o caminho do melhor pão, mesmo que no fim sempre desviasse para me esbaldar na sorveteria.
depois do sorvete, não consigo me ver mais no pretérito imperfeito e, de repente, estou pulando de uma sorveteria para outra, enquanto busco o melhor sabor de cada uma delas. alimentada, me desloco em segundos até uma agência dos Correios, a certa, aquela dos atendentes legais que nunca encrencaram com meus envios em impresso módico. visto uma roupa nova, mais recente até que minha mudança, enquanto ando nos corredores da Feira dos Produtores procurando a farofa que gosto de comer com feijão, compro uvas sem sementes no varejão, ando, corro e troto na rua de bares e restaurantes do bairro e penso, mais uma vez, que a Avenida José Cândido está muito perto e muito longe dali, e acabo andando mais devagar do que devia entre aqueles que bebem uma cervejinha no fim da tarde.
no meio da caminhada, paro para almoçar um surubim no espeto, janto sushi, procuro algum self-service para o almoço seguinte. e volto a pensar nas sorveterias. e também nos prédios azulejados que vi ao lembrar todos esses trajetos. nenhum desses prédios era feito de azulejos tão azuis quanto aos do meu antigo banheiro. que pena!
re.gis.tro substantivo masculino no dicionário domínio patriarcal e branco na história prática feminina no planeta
1. certidões civis.
de nascimento, casamento, união estável, óbito, com nome ou não retificado. de antecedentes criminais, regularidade fiscal, imóveis e inscrição na junta comercial.
no mundo jurídico-burocrático-cartorário tudo que existe precisa ser documentado conforme algumas regras.
e pra onde vai o que não cabe nessas regras? a gente que lute para não deixar o registro jurídico sobrepor a todas as outras formas de registro.
2. o mesmo que diário, seja o pessoal e intransferível, seja o livro contábil.
o registro pode ser uma elaboração do eu e também uma análise das contas.
3. peça utilizada para regular o funcionamento de chuveiros;
é importante anotar: quando essa peça queima, quando o gás acaba, quando se precisa dar um jeito, porque tudo isso custa dinheiro.
todo registro também é uma forma de calibragem do que se quer e o que se precisa fazer.
4. item essencial em todas as prestações de contas.
5. o registro é uma espécie de coleta, seja ela provocada, metódica ou involuntária.
é possível registrar sem querer querendo.
6. pode ser uma tentativa de captar ou destacar nuances.
por fotografia, gravação em vídeo, arquivo de som, grafite, pintura, bordado, decoupage, escultura, pixo, maquete de escola, biscuit, print de tela, contação de história, fofoca, escrita acadêmica, jornalística, memoralista, de blog ou ficcional.
dizem que poetas e cronistas se dão bem nesse aspecto.
7. ajuste das lentes utilizadas para captar as nuances citadas no item 6.
às vezes a gente precisa limpar bem os óculos para conseguir perceber o que, como e quando se deve documentar o que nos cerca.
o que está faltando? por que está faltando? por que pareço um turista na minha própria cidade? quem se faz presente no meu lugar?
nem todas as histórias foram contadas disse Dalva Soares citando Carola Saavedra
e é verdade.
8. todo registro também demanda acertar as arestas da percepção.
9. é o resultado da observação e seus desdobramentos.
10. o que faz um instante de atenção durar tempo o suficiente para se fixar no cérebro
é um momento com uma existência menos temporária que sua duração fática.
o registro é a tentativa de manter nossas sinapses funcionando
11. o registro pode tomar forma
e entre tantas formas possíveis pode vir a ser notas de celular feitas para ajudar a memória a funcionar melhor.
as notas podem ser qualquer recurso inclusive um post it pregado na geladeira que diga o que se precisa fazer e também “ela esteve aqui” ou “ela pode estar aqui” ou “por que ela já não está mais conosco?”.
o registro pode ser um epitáfio, mas costuma ser ainda mais físico do que isso.
12. é o que fica de uma história que marca o registrante. uma evidência de ocupação de tempo, espaço, lugar no álbum de família.
13. o registro é uma prova de vida.
Esse texto foi produzido durante a residência art´ístico-literária do projeto Jurema na Cidade e por isso foi originalmente publicado em seu blog.O projeto também foi responsável pelo lançamento da coletânea “Jurema: mulheres (re)escrevem a cidade”. Você pode lê-la na íntegra em pdf ou ouvi-la no Spotify. Faço parte do livro como autora, organizadora, editora e bordadeira.
Acervo pessoal – Registro meia boca do último show de Milton Nascimento – Dia 13.11.22, por volta das 20h.
Somos feitos por memórias. Cada um reage, pensa, descobre e sente o mundo e a si mesmo a partir de uma bagagem construída por um estranho mix que une real e imaginário, vivido e ouvido, experimentado e pesquisado. Nossa identidade se deriva dessa reunião de fragmentos, flashes e miudezas que se dispersam de situações variadas para se fixar neurônios afora como lembranças.
Somos uma colagem em construção. Vamos juntando pedaços de mundo, empilhando recortes de revista, unindo cenas cotidianas com histórias inusitadas, sem nunca isolar qualquer uma dessas imagens, sensações, pensamentos. Somos uma bola de neve de referências unidas organicamente, vindas de nós, dos outros e do mundo, selecionadas por um cérebro sedento por sobrevivência e ainda assim influenciado pelo mundo externo e a repetição de situações banais, a assimilação de imagens nunca vistas e o encontro com a criação humana em qualquer forma. Seja na música, em um corpo que se mexe e se expressa ou numa sequência de palavras que formam uma frase que pra você explica tudo.
O problema é que o que você pensa ser essencial agora pode ser visto pelo seu corpo como algo a ser descartado daqui a 3 anos, uma década ou 6 meses. E é por isso que eu escrevo. Pelo registro daquilo que em algum momento ganhou minha atenção e eu achei importante o suficiente para não deixar sua lembrança à mercê de circunstâncias cerebrais misteriosas.
Hoje me esforço para escrever sobre o show de despedida do Milton Nascimento. Quase 90 horas separam a escrita da experiência. Não pude escrever imediatamente. O show continuou reverberando dentro de mim, fugindo do controle das palavras, me assombrando, enquanto se tornava lembrança e matéria em um processo de digestão que não inclui a linguagem como a gente conhece.
Dizer que faltam palavras para descrever uma experiência é um clichê humano que toda tentativa de comunicação busca transformar em mito. Contar algo para alguém, antes de ser um compartilhamento diligente de uma experiência que pode fazer surgir ou reforçar uma conexão entre pessoas, é um esforço pelo registro, um teste experimental da memória, uma iniciativa que busca transformar em narrativa um processo não linear de percepção.
E eu quero tentar fazer isso com esse show, porque preciso prover minha memória de um recurso que, além de organizar o mundo de cenas, sensações, sentimentos e pensamentos que me vem quando penso no que experimentei domingo, servirá, no futuro, para não deixar o tempo fazer sumir com nuances que eu considero essenciais nessa lembrança que ainda tenho, mas não sei se devo. Realmente não sei se devo.
O registro da memória é um desejo impossível, uma busca que a humanidade tenta empreender pela arte, pela cultura, pela ciência e pela convivência humana. Só que o registro desse show é mais do que isso, é uma tentação, talvez até mesmo uma violação de um pacto selado com todos que estavam ali para vivenciar o final de uma carreira de 60 anos numa única noite.
O show do Milton Nascimento começou antes de começar. No telão, uma foto dele abraçado com Gal Costa, nos fazendo lembrar, mais uma vez, que aquele encontro era também uma despedida. Um ritual de despedida, na verdade. Uma celebração da vida e de uma vida que a partir de suas criações foi capaz de encontrar outras tantas. Uma cerimônia que uniu fins e começos, tendo como matéria-prima o canto, a palavra, o choro, o riso, a contemplação, o compartilhamento e o festejo. E a memória, porque é ela que faz tudo isso fazer sentido.
A voz de Milton evocava a nossa, como se assim, cantando juntos, tivéssemos a força de enfrentar com dignidade o medo da morte que a velhice — e a própria vida — anuncia. E assim Bituca se mostrou inteiro para nós, colocando seu corpo frágil de 80 anos de história no centro de um palco que pulsava o vigor de sua presença, sua vontade, sua relação com a música e o público. E essa cantoria bonita foi se desdobrando em outras vozes e sons feitos por convidados ilustres como os outros membros do Clube da Esquina, Samuel Rosa e Zé Ibarra, mostrando a vivacidade do afeto presente nesse evento capaz de unir com precisão sentimentos antagônicos como a alegria do encontro, a tristeza de ser o último e o júbilo de ouvir “viva a democracia!” após a queda de Bolsonaro. Sentir é mesmo uma força da natureza.
60 mil pessoas estavam no Mineirão, sendo testemunhas, de corpo e mente, do espetáculo que acontecia dentro de um estádio de futebol lotado, todos esperando como parte de uma coletividade estranha, poder dizer “adeus”, “muito obrigada”, “como você pode escrever pra mim sem nunca ter me conhecido?”. 60 mil pessoas acompanhadas de outras tantas, porque se somos feitos de memórias, carregamos para onde vamos todos os nossos, vivos os mortos.
Minas Gerais é a terra da memória. Da minha memória, pelo menos. E também da memória da maioria das pessoas que estavam ali, unidas por esse canto coletivo pela arte, pela vida e pela nossa capacidade de lembrar e se tornar lembrança. Minas Gerais aconteceu no Mineirão no último domingo, ao se transformar neste espaço-tempo onde tudo e todos se uniram em uma liturgia contemplativa em que ontem, hoje e amanhã decidiram se confraternizar numa contradição que se resolve apenas no universo da memória. Minas Gerais é onde o tempo se fez presente para ver Milton Nascimento se despedir dos palcos no solo que fez dele um músico.
Ainda bem que pude assistir esse show na cidade que chamo de casa, onde talvez eu nunca precise explicar direito o que foi estar ali, se vendo diante da própria vida, a partir da música, da voz, da poesia de Bituca. Ainda bem que pessoas a quilômetros de distância da Avenida Abrahão Caram, 1001, também puderam assistir grande parte do que vi ao vivo, ampliando a possibilidade de fazer acontecer conversas sobre arte, conexão, vida e desejo de viver e morrer com dignidade e encanto. Ainda bem que a beleza desse momento ficará comigo além da tentativa de registro que esse texto e algumas fotos representam. E ainda bem que eu sempre soube que a linguagem não dá conta de tudo e agora eu posso ter comigo, sem culpa alguma, o assombro não-nomeado de um show que representa a vida como essa travessia estranha que Milton Nascimento, Guimarães Rosa, Conceição Evaristo, Adélia Prado e tantos outros artistas, mineiros ou não, ousaram tentar explicar ao nos fazer sentir vivos, vivíssimos.
Ao som de Prélude nº 1 — Melodía lírica de Heitor Villa-Lobos
Andar de meias pela casa é uma experiência sem volta, amor. Uma só vez deslizando pelo corredor até o meio da sala será o suficiente para fazer aparecer na sua frente um complexo de patinação artística entre o rack da TV e a porta para a cozinha.
No começo, cada toque dos pés protegidos por meias 100% algodão chega ao piso irradiando conforto, vontade de correr e medo de se estatelar. E, de repente, sem qualquer planejamento, você se deixa ganhar velocidade e cai em gargalhadas quando se vê derrapando até desabar de qualquer jeito no sofá. O taco gasto do apartamento alugado chamado de casa de repente pura pista de gelo.
Da janela, o sol distante das primeiras horas da manhã parecia um floco de neve quente que avermelhava a alvorada prestes a se fazer derreter em uma imensidão azul, sem nuvens. Ainda pálido, ele iluminou a minha primeira acrobacia e ela, que surgiu de maneira tão desajeitada a partir de um impulso que veio não sei de onde, talvez da vontade de imitar Frajola que tinha pulado no tapete somente pelo prazer de deslizar, iniciou essas Olimpíadas de Inverno.
Agora o movimento dos apartamentos ao redor indica que a vizinhança se prepara para começar sua rotina, como eu e você estávamos antes de sermos botados para dançar ao som dos passarinhos, gatos pedindo ração e despertadores. Sei que hoje será diferente pelas risadas. E pelo som das quedas, esbarrões, móveis sendo arrastados e controles remotos fazendo piiiiiii antes de quebrarem de vez.
São tantos risos que, no apartamento debaixo, a cachorrinha Calabresa dá um latido estridente, segundos antes de pular no colo da dona Dirce que parece brincar de girar na cadeira de escritório da filha. Alguns vizinhos também cantam, outros acordam lentamente já seduzidos a fazer de patins suas meias. A maioria, ainda de pijama, só dança sorrindo se mostrando pela janela com as cortinas escancaradas pela primeira vez em meses.
São tantos dentes à mostra que começo a pensar que estou dentro de uma boca e é por isso que a sala se tornou lugar de saborear. A boca enorme é o que me deixa escorregar sem me estripar toda. Meu tapete, uma gengiva macia. Uma língua gigante me impede de cair, impede o bairro inteiro de descer goela abaixo ao som das próprias gargalhadas. E a luz, que vem de fora, gelada, porque ainda venta frio em Belo Horizonte, se derrete como picolé nessa boca quente e lúbrica. E eu sigo com você, dançando pelos dentes, me deixando levar corredor adiante pelo suor e pela saliva, porque sei que essa boca se abriu assim por estar cansada de nos devorar.
Um livro chamado “Coisa amor” combina com a palavra afeto, porque lembra ternura, carinho, estima, conexão e todas essas coisas que a gente deseja, mesmo quando fingimos de cínicos ou nos consideramos incapazes de sentir, vivenciar ou despertar esse sentimento no outro. Só que afeto não é uma palavra simples. A gente usa, na maioria das vezes, como um sinônimo de amor, mas seu significado pode ir além: para a psicologia, por exemplo, é um agente modificador de comportamento, podendo ser positivo ou negativo. E essa definição não surgiu do nada. As palavras latinas que deram origem ao afeto que guia esse texto eram usadas como sinônimo de estar inclinado a, influir sobre, fazer algo a alguém. Afeto então é sobre afetar e ser afetado. “Coisa amor” também, porque Pedro Jucá escreve para causar alguma coisa dentro da gente, testando a forma que o leitor interage com personagens e situações, enquanto, de certa forma, brinca com o feio, o clandestino, com tudo aquilo que, direta ou indiretamente, ajuda a compor a matéria dos tabus, dos desejos e dos segredos.
A partir de quinze contos, o autor aborda temas como solidão, morte, memória, sexualidade, inconsciente, loucura e quereres e coloca quem lê frente a frente ao desconfortável limiar do dito e não dito da experiência humana. A cada narrativa, Pedro Jucá nos apresenta um pouco mais dessa substância viscosa, densa e cor de carne que nos faz gente. E, para isso, usa diferentes formas de narrar, explorando a vulnerabilidade humana a cada cena, reflexão, circunstância, partindo principalmente de relações familiares, como a maternidade. Assim, consegue amarrar todos esses temas e perspectivas ao que podemos chamar de busca humana por conexão, companhia, entendimento.
Em “Coisa amor”, o encontro com o Outro é sempre desafiador. Ainda que essa demanda por compreensão e afeto guie os sujeitos dessas histórias, o Outro é sempre Outro. Nesse encontro de identidades há momentos em que o laço entre os personagens se amplifica, tornando aquela ligação um instante de entendimento, mas, na maioria das vezes, o medo de ser visto completamente, como se isso fosse possível, impede qualquer vestígio de conexão. Só que essa conexão, sempre tão desejada e praticamente impossível, acaba acontecendo com a gente, que a partir do ato da leitura, tentamos decifrar comportamentos, personalidades, situações.
Nesse caso, estamos numa posição de poder. A cadeira de quem lê é a de quem espera uma trama se desenrolar. Somos espectadores, na maioria das vezes invisíveis, da história alheia e queremos entretenimento. Só que Pedro Jucá cria suas narrativas para nos lembrar do poder da linguagem de nos afetar e, dessa forma, aproxima seus personagens de quem lê, obrigando a gente a lidar com esse lugar de uma outra forma. Lemos essas histórias, então, como quem se dirige para um parque de diversões, e acaba entrando numa enorme sala de espelhos cheia de sombras e truques que são capazes de transformar 149 páginas de texto em 3450 minutos em um labirinto de sensações.
O entendimento desejado por essas personas fictícias acontece, porque aquilo que esses personagens se esforçam tanto para esconder até deles mesmos, escapa. O trabalho estético do autor ajuda nesse efeito: Pedro escreve para gente decifrar, exige atenção. O texto flui, mas tem voltas, alguns estranhamentos, qualquer coisa que te obriga a frear, com medo de atropelar algo importante. E essa conexão se completa, porque ao entender alguma coisa, quem lê se sente cúmplice. Leitor e personagens se encontram na clandestinidade do ato de levantar o tapete que cobria o elefante no meio da sala.
Mesmo incomodados, continuamos lendo e, por escolhermos continuar, nos associamos ao que está sendo compartilhado por esses Outros. Somos gente, afinal, e por isso inevitavelmente comparsas de tudo aquilo que é demasiadamente humano, como a literatura é. Ao sermos afetados, ficamos mancomunados aos personagens e assim nos tornamos coautores de tudo que a humanidade é capaz de sentir, e por isso, fazer. Podemos até ler como detetives, fiscais ou juízes, mas ainda assim, nos vinculamos ao que foi dito, feito, produzido, porque em algum momento aceitamos fazer parte disso tudo, em especial quando tentamos nos fantasiar com essas figuras de poder que simbolizam a proibição de qualquer demonstração de vulnerabilidade.
Ler “Coisa amor” então é se permitir investigar a composição da matéria oculta que nos forma e nos permite ser capaz de produzir e consumir arte. Jamais entenderemos completamente o que nos leva, por exemplo, a amar alguém e o que de fato significa isso pra nós mesmos. Como no conto que dá nome ao livro, mesmo com o mapeamento da química da paixão e a descrição técnica do funcionamento do corpo nessas horas, ainda há espaço para uma certa poética, logo uma certa dose de pensamento mágico. Jamais haverá compreensão completa do Outro e nem de nós mesmos. E a gente sabe disso, mas ainda assim continuamos tentando decifrar o indecifrável, porque é isso que precisamos fazer para vez ou outra conseguir vivenciar instantes em que não nos sentimos sós.
“Mas não, nada disso aconteceu. As histórias mais tristes são também as mais prosaicas, as que sequer alcançam o status de tragédia. Desprovidas de potência ficcional, nem à catarse servem […]” – Passo a Passo (pág. 22)
Acervo pessoal
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Não sou uma leitora imparcial. Escolho as minhas prioridades de leitura guiada, principalmente, pelo afeto. Sei que afeto é uma dessas palavras gastas — até as lojas de dermocosméticos a utilizam pra vender shampoo anticaspa e protetor solar quando querem falar sobre autocuidado e amor próprio — mas foi inevitável não usá-la enquanto escrevia sobre o livro de contos “Coisa amor”, de Pedro Jucá, que, por acaso, se tornou especialista em Escrita e Criação junto comigo, após uma imersão que envolveu escrita, leitura e compartilhamento durante 19 meses.
Algumas das prosas que constroem essa obra, como a penúltima história, vi nascer. Oficina já era uma conhecida minha das aulas, ainda que numa versão ainda pouco trabalhada. Outros simplesmente me surpreenderam: como Cerimonial, Nutriz e até mesmo o Coisa amor, que empresta seu título ao livro. Mas foram os contos Ela, Passo a passoe Years of Solitude que me fizeram pensar que Pedro sabe muito bem onde quer chegar.
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“Apague a luz se for chorar”, romance da escritora Fabiane Guimarães, me aguardava na biblioteca do Kindle fazia quase um ano. Prestes a embarcar em uma via sacra celeste com destino final em Brasília, me veio a lembrança de que tinha lido em algum lugar, provavelmente nas redes sociais da autora, que ela tinha nascido no interior de Goiás e agora morava na capital federal, a cidade que mais uma vez eu ia visitar. Buscando algum cenário ou passagem ficcional que me levasse até o Centro-Oeste mais rápido que qualquer avião, abri o arquivo do livro decidida a começar a leitura. Logo, junto de Cecília, estava no ar, pousando no aeroporto com água até dentro dos meus olhos, mesmo com o mundo real seco como eu já esperava encontrar indo para lá no inverno.
Fui fisgada pela história já nas primeiras páginas.
Se um luto é sempre um processo de conhecimento, onde o enlutado, na busca por alguma resposta, precisa produzir provas, ouvir testemunhas e captar todas as informações possíveis daquele fato para elaborar perante o juiz, que, nesse caso, também é ele mesmo, Fabiane Guimarães soube levar isso além, transformando em algo mais uma narração em que a lógica enlutada e ansiosa de uma personagem nos conduz vertiginosamente a partir da dúvida.
Cecília vivencia seu luto por inteiro, mesmo quando tem certeza que deixou quase todo seu corpo coberto e protegido. Ela perdeu seus pais no mesmo dia, na mesma hora. Morreram juntos, de causas naturais, alguém explica a ela que segue sem absorver a frase como se esperava. “Sua mãe era tão boa”, diz outra pessoa que ela nunca viu na vida. Tudo é estranho, a morte é estranha. E por isso a gente se abre para essa personagem na hora, como se tentar entendê-la fosse preparar a gente para lidar com nossos mortos, com a certeza da nossa própria morte. Assim como Cecília, a gente tem dúvidas e nos expomos a elas a cada página lida, porque sabemos que não conhecemos ninguém tão bem assim, porque também temos medo da morte e dos segredos de família, porque desconhecemos qual é o sentido da vida, se há um ou dois ou nada. A gente simplesmente entende Cecília, porque conhecemos o poder do “e se”, então abraçamos sua desconfiança, tememos por ela, nos perguntamos porque ela falou alguma coisa e deixou de falar outra.
Com João é diferente. A história dele simplesmente vai se desenhando, acontecendo, sem a gente entender bem o porquê dela estar ali, sendo contada junto da vida de Cecília. A gente só acompanha ele e seu filho Adam, enquanto espera o momento em que tudo fará sentido. Agimos exatamente como o personagem, que parece, ao menos inicialmente, simplesmente seguir seu caminho trabalhando na zoonoses fazendo eutanásia em animais, fingindo não pensar tanto no que isso significa para ele, seu filho com uma grave deficiência e todos os cães e gatos que lhe são entregues. Só que um dos fios condutores desse livro se revela rapidamente, ainda que a gente demore um pouco para perceber: João também está lidando com a morte, com a sombra dela se aproximando do filho, e sua história é a de quem também busca respostas, mas tem medo até das perguntas que cogita fazer. João tem medo do seu futuro com e sem o filho.
Pirenópolis é um destino estranho para enlutados, mas me parece um lugar perfeito para dois idosos viverem juntos seus últimos dias. Não importa se os mortos gostavam ou não do último lugar em que moraram, porque aqueles que ficam e sofrem se sentirão pisando em um terreno insólito e perigoso independente de onde estejam. No fim das contas, qualquer lugar é um destino estranho para quem sofre uma perda. Ou acha que pode perder alguém a qualquer momento. Ou perde alguéns e ainda descobre um segredo de família que pode mudar a maneira como você encarava até então seu pai, sua mãe, sua vida.
“Apague a luz se for chorar” é uma história sobre as descobertas que fazemos quando somos obrigados a tatear essa escuridão. Lidar com a morte, aquela que ameaça ou já aconteceu, é estar em um não-lugar, um espaço suspenso, em que o mundo dos vivos se esbarra no dos mortos o tempo todo. Cecília e João vivem de maneiras bem diferentes a angústia de não conseguir mais pisar no solo e senti-lo firme e por essas e outras se encontram nesse livro que fala de morte, luto, medo, família, escolhas e segredos.
cacareco foi uma rinoceronte fêmea que comia sem frescura caules raízes ervas folhas se era mato ia pra dentro
até que um dia cacareco recebeu 100 mil votos para vereadora da maior cidade de um país que nem era o seu
cacareco nunca assumiu cargo político algum nem ficou sabendo das 100 mil pessoas que escreveram em uma cédula em branco seu nome
cacareco simplesmente continuou comendo as plantas lenhosas que nasciam na sua jaula do zoológico se era mato ia pra dentro até que um dia cacareco virou memória
todo poema é feito de cacarecos rinocerontes ou não
nem todo poema é feito do que se encontra nos anais da história mas esse é
As memórias do angustiante verão francês que Annie Ernaux viveu em 1963 e só foram escritas mais de trinta anos depois ganharam um novo formato ao serem transformadas em uma obra cinematográfica pelas mãos da diretora Audrey Diwan, da roteirista Marcia Romano e de toda uma equipe repleta de mulheres.
Quando Annie Ernaux escreve sobre o aborto clandestino que viveu tantos anos depois, tempo e memória se misturam ao fato, tornando seu livro também uma busca pelo registro daquilo que a autora viveu em segredo, como outras tantas, francesas ou não. Quando ela decide escrever essa história da forma que fez, crua e quase documental, ela coloca em evidência que a escrita da não-ficção que parte de si é também uma tentativa de adaptação: como fazer das lembranças palavras? É possível capturar os sentimentos dissolvidos nas cenas que conseguimos recordar tanto tempo depois? Qual é o papel de ler e reler o diário daquele ano nisso tudo? Como as palavras que escrevi quando tudo acontecia afetam quem sou hoje? Falar de si é falar de uma época? Escrever sobre a própria solidão é uma forma de se sentir acompanhada nela? E esquecer é também uma forma de morrer? Se sim, então escrever o que lembra é tentar viver além da própria experiência?
Se no livro a solidão, a angústia e o desamparo da personagem durante os três meses de 1963 chamam atenção, enquanto se misturam com o efeito do tempo e a ânsia da tentativa de tornar aquela vivência algo tangível pela escrita, o filme se propõe a tratar apenas do tempo da gravidez indesejada como fato incontornável, concentrando todo o desespero silencioso da personagem só naquilo, sem a reflexão temporal que envolve a recordação.
“O acontecimento” cinematográfico consegue então tornar a escrita memorialística de Annie Ernaux um recorte situacional que se aproxima ainda mais da construção dessa verdade pretendida na tentativa do relato, ainda que as cenas do filme tenham tido modificações pontuais no processo de adaptação e essas mudanças mostrem a presença de outras autoras, atrizes, cenários e a transformação daquilo que foi escrito como memória em ficção.
No filme, acompanhamos a história de Anne Duchesne (Anamaria Vartolomei) como quem persegue uma personagem por ângulos intrusos. Nos transformamos em olhos vigilantes pela câmera curiosa, como se fôssemos parte do que torna o aborto buscado pela personagem um crime, uma vergonha, algo a ser acompanhado como fofoca por quem se delicia por saber que conseguiu escapar de estar nesse lugar, que pode ser “só” o de vagabunda que transa antes do casamento ou o de mãe solteira.
Conhecemos a intimidade dessa protagonista como parte do que torna a sua vivência um tabu e uma ilegalidade e isso, junto da atuação de Anamaria Vartolomei, ajuda a construir para o espectador uma agonia silente que mescla uma espera ansiosa por uma possível solução para aquilo que seria o fim de um futuro brilhante, enquanto esse mesmo futuro brilhante parece prestes a desmoronar pelo efeito dessa espera que não se realiza, e o medo dessa solução, se ou quando alcançada, se tornar o fim de qualquer futuro ou quase isso, com a morte, a mutilação ou a prisão.
O interdito é trabalhado também com a tensão sexual que insiste em se manifestar o tempo todo no universo da personagem, mesmo aquilo sendo visto como proibido. O estigma do exercício da sexualidade feminina paira sobre as jovens que falam o tempo todo de sexo, enquanto julgam as que ousam fazer, junto do medo da gravidez, que, além de ser uma manifestação da maternidade indesejada para aquele momento, representa também um atestado público de que aquela mulher não é mais virgem e pura, logo não merece mais respeito.
O universo da personagem é bem apresentado: temos ali as visitas aos pais trabalhadores no interior que precisam se manter como sempre foram para ninguém desconfiar de nada, as disputas internas entre os diversos grupos de jovens mulheres que dividem o dormitório e o espaço universitário, as fofocas durante as aulas, as festinhas regadas por Coca-Cola, a solidão mesmo quando acompanhada, a insônia de quem tem um problema a resolver e as mesmas três ou quatro roupas repetidas que evocam tanto a origem da protagonista, quanto o cotidiano como ele é.
O aborto clandestino se desenha nas duas linguagens como um desalento construído por uma disputa de riscos que pesa principalmente para aquelas sem os contatos e informações certas, essas que precisam apelar para métodos caseiros no escuro do quarto ou cirurgias em um cômodo de uma casa qualquer ou os dois. Sendo as consequências de uma gravidez indesejada ainda mais pesadas para uma mulher pobre buscando alguma ascensão social pelos estudos, como a personagem, ou uma operária ou atendente de supermercado. Só que até para as mais ricas, a clandestinidade recai de forma ameaçadora, porque mesmo com um contato do médico certo e seguro em mãos e a garantia de que não irá presa por escolher, ainda existe solidão, proibição de falar e praticar e estigma. Tudo isso cria um cenário perigoso que poderia não existir se a responsabilidade da gravidez não fosse imposta às mulheres somente, o aborto fosse legal, seguro e gratuito e uma informativa e acolhedora educação sexual fizesse parte do currículo das escolas.
Ainda que o aborto por escolha da mulher seja legal na França desde 1975, tendo sido Annie Ernaux uma ativista por esse direito, no Brasil nunca foi e ainda não é. O que torna a aflição da personagem Anne e os riscos corridos por ela para fazer valer seu desejo pelo, ainda que inexistente legalmente na época, direito à escolha muito próximos da realidade das mulheres brasileiras hoje, com suas vítimas fatais aqui e agora, entre mutiladas, presas e sortudas aliviadas. O interdito presente nas obras segue no Brasil, não só pelo tabu, mas pela força da lei e das ameaças e práticas conservadoras que tentam tornar o aborto uma ilegalidade mesmo nos raros casos liberados pela nossa legislação: risco de vida para a gestante, gravidez fruto de estupro e gravidez de feto anencéfalo.
As cenas do filme “O acontecimento” parecem ainda mais gráficas e desoladoras para quem divide comigo a nacionalidade e o domicílio brasileiro e acompanha, além das histórias veladas de familiares, amigas e conhecidas, as notícias de meninas que sofreram pressão judicial, governamental e social para não usufruir do seu direito ao aborto legal previsto como exceção na lei penal.
Mesmo a filmagem fugindo do sangue, da agulha, dos instrumentos da enfermeira e focando no rosto e atuação da atriz, a gente sabe o que a clandestinidade causa direta e indiretamente e isso basta para nosso estômago revirar de tensão.
Poderia ser eu, poderia ser minha mãe, poderia ser uma amiga, poderia ser a vizinha do 103 ou a moça da bilheteria do cinema, mas foi Annie Ernaux em 1963 e muitas outras que não tiveram a sorte de sobreviver para contar ou nunca puderam elaborar o momento. Para quem tem um útero que se revira em cólica e sangue menstrual periodicamente, não precisa ser gore para ser quase um filme de terror, emular a realidade como ela é basta para nos lembrar que nosso corpo ainda está no controle do Estado e o que tudo isso significa.