abertura bucal

Colagem por Thaís Campolina

Ao som de Prélude nº 1 — Melodía lírica de Heitor Villa-Lobos

Andar de meias pela casa é uma experiência sem volta, amor. Uma só vez deslizando pelo corredor até o meio da sala será o suficiente para fazer aparecer na sua frente um complexo de patinação artística entre o rack da TV e a porta para a cozinha.

No começo, cada toque dos pés protegidos por meias 100% algodão chega ao piso irradiando conforto, vontade de correr e medo de se estatelar. E, de repente, sem qualquer planejamento, você se deixa ganhar velocidade e cai em gargalhadas quando se vê derrapando até desabar de qualquer jeito no sofá. O taco gasto do apartamento alugado chamado de casa de repente pura pista de gelo.

Da janela, o sol distante das primeiras horas da manhã parecia um floco de neve quente que avermelhava a alvorada prestes a se fazer derreter em uma imensidão azul, sem nuvens. Ainda pálido, ele iluminou a minha primeira acrobacia e ela, que surgiu de maneira tão desajeitada a partir de um impulso que veio não sei de onde, talvez da vontade de imitar Frajola que tinha pulado no tapete somente pelo prazer de deslizar, iniciou essas Olimpíadas de Inverno.

Agora o movimento dos apartamentos ao redor indica que a vizinhança se prepara para começar sua rotina, como eu e você estávamos antes de sermos botados para dançar ao som dos passarinhos, gatos pedindo ração e despertadores. Sei que hoje será diferente pelas risadas. E pelo som das quedas, esbarrões, móveis sendo arrastados e controles remotos fazendo piiiiiii antes de quebrarem de vez.

São tantos risos que, no apartamento debaixo, a cachorrinha Calabresa dá um latido estridente, segundos antes de pular no colo da dona Dirce que parece brincar de girar na cadeira de escritório da filha. Alguns vizinhos também cantam, outros acordam lentamente já seduzidos a fazer de patins suas meias. A maioria, ainda de pijama, só dança sorrindo se mostrando pela janela com as cortinas escancaradas pela primeira vez em meses.

São tantos dentes à mostra que começo a pensar que estou dentro de uma boca e é por isso que a sala se tornou lugar de saborear. A boca enorme é o que me deixa escorregar sem me estripar toda. Meu tapete, uma gengiva macia. Uma língua gigante me impede de cair, impede o bairro inteiro de descer goela abaixo ao som das próprias gargalhadas. E a luz, que vem de fora, gelada, porque ainda venta frio em Belo Horizonte, se derrete como picolé nessa boca quente e lúbrica. E eu sigo com você, dançando pelos dentes, me deixando levar corredor adiante pelo suor e pela saliva, porque sei que essa boca se abriu assim por estar cansada de nos devorar.

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qual é a gôndola dos pirilampos?

Colagem digital  por  Thaís Campolina — Foto de David Veksler (Unsplash) sugerida pelo meu amigo Guímel Bilac.

sempre gostei muito de chocolate
podia ser aquele de moedinha
bola de futebol ou guarda-chuva
podia ser bombom sonho de valsa
milkbar, sensação, prestígio
kinder ovo, mundy e ferrero rocher
podia ser chocolate da turma da mônica
podia ser, sem sorte, até brigadeiro
só não dava para comer bombom caribe
caribe sempre foi um pouco demais até para mim

por mais que eu gostasse de chocolate
e você pode ter certeza que era muito
meus hobbies iam além do açúcar
e os marketeiros sabiam disso
nenhuma bobeirinha de criança comer
jamais encontrou fim em si mesma
since 1989

o mundo era cheio de surpresinhas
e toda gostosura ganhava continuidade
no uso dessa nova descoberta
que vinha lambuzada
de doce ou gordura trans
fedendo excursão de escola
para a fábrica da coca-cola

tinham tazos nos chips
adesivos das spice girls nos pirulitos
figurinha na balinha que tirava bafo
tatuagem temporária no chiclete
pelúcia no leite parmalat
e brinde de kinder ovo

o kinder ovo tinha um gostinho
de leite de vacas premiadas
mas eu amava mesmo
eram as cápsulas de plástico
que envolviam minha diversão futura

não tinha separação de gênero
no kinder ovo nessa época
a surpresa se fingia ingênua

se podia brincar com quase tudo
que as mães deixassem
desde que a criança tivesse
quem pagasse por ela
os olhos da cara

de todas as coleções
de brinquedinho kinder ovo
que pude conhecer
pelas minhas mãos
ou pela propaganda que
passava no intervalo dos
desenhos na tevê
nenhuma me agradou
mais que aquelas
lanterninhas esquisitinhas
em formatos cotidianos

eu trocava qualquer coisa
por esses brinquedos
caga-fogo

quando meus pais me mandavam para cama
e eu precisava continuar lendo
ou queria continuar brincando
acendia minhas luzinhas
em formato de animais
e eletrodomésticos
debaixo do lençol

amava o telefone de discar com o dedo
porque a luz dele era bem vermelha
e me ajudava a ler
as letrinhas miúdas
de qualquer livro
da biblioteca

amava também o cisne elegante
de luz verde fraquinha
tão fraca que foi o que
me ensinou a deixar
o sono chegar
na hora certa

agora posso
simplesmente ligar
a luz do quarto
varar madrugada
lendo ferrante
se quiser

agora também posso
simplesmente deitar
e dormir

aprendi a sonhar
sem ajuda dos meus vagalumes
que foram queimando com o tempo
no fundo da gaveta da casa
que não moro mais

hoje ninguém manda mais em mim
mas também não tenho quem me compre
kinder ovo com ou sem separação de gênero
preciso fazer meu próprio brigadeiro de colher

todo mundo agora se diz muito
preocupado com minha glicose
acham que eu deveria viver de comer
só meus bichinhos luminosos

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