breve memorial de uma vida alugada

já não me lembro mais a exata cor dos azulejos do meu antigo banheiro

carrego comigo uma saudade estranha dos azulejos azuis do banheiro que chamei de meu durante mais de cinco anos. minhas sinapses tentam preservar cada quadradinho pregado na parede. durante o esforço de mantê-los nítidos, junto da pia, do bidê, da privada, das saboneteiras e outros detalhes — todos esses em seus devidos lugares e no tom de azul escuro correto — penso nas padarias que deixei para trás. 

disse adeus para a Sabinão, para Arte do Trigo, para a Dupão e para a produção panificadora da rede de supermercados Verdemar e isso me lembra que a cozinha do apartamento que eu morava até mês passado também era de ladrilho, como o banheiro que sinto tanta falta. 

nunca comi pão e nem bolo olhando para os raminhos de trigo dispostos em azulejos ao lado do filtro de barro que me seguiu de volta para Divinópolis. talvez se essa parte do apartamento fosse de um amarelo bonito, eu diria, inspirada em minha de novo conterrânea Adélia Prado, que essa cozinha estava constantemente amanhecendo. mas essa cozinha era de um azulejo amarelo feio que passou batido e nunca conseguiu inspirar um poema meu, nem minhas papilas gustativas. ainda bem que sempre estive rodeada de bons pães para isso.

e então penso nos pontos do transporte público do bairro, nas linhas 8102 e 8150, que me pegavam tão perto de casa sempre que eu precisava. e também nas vezes que eu descia longe, porque vim de 9410, esse ônibus que ficou inscrito em mim por trajetos anteriores ao dessa vidinha e vez ou outra me aparecia como solução mais fácil, embora não fosse. 

nesses dias, eu descia ruas acima e circulava pelo bairro todo, andando e buscando o caminho que fosse mais bonito, tivesse menos morro e não me levasse para mais longe. costumava escolher o caminho do melhor pão, mesmo que no fim sempre desviasse para me esbaldar na sorveteria.

depois do sorvete, não consigo me ver mais no pretérito imperfeito e, de repente, estou pulando de uma sorveteria para outra, enquanto busco o melhor sabor de cada uma delas. alimentada, me desloco em segundos até uma agência dos Correios, a certa, aquela dos atendentes legais que nunca encrencaram com meus envios em impresso módico. visto uma roupa nova, mais recente até que minha mudança, enquanto ando nos corredores da Feira dos Produtores procurando a farofa que gosto de comer com feijão, compro uvas sem sementes no varejão, ando, corro e troto na rua de bares e restaurantes do bairro e penso, mais uma vez, que a Avenida José Cândido está muito perto e muito longe dali, e acabo andando mais devagar do que devia entre aqueles que bebem uma cervejinha no fim da tarde por mais uma semana. 

no meio da caminhada, paro para almoçar um surubim no espeto, janto sushi, procuro algum self-service para o almoço seguinte. e volto a pensar nas sorveterias. e também nos prédios azulejados que vi ao lembrar todos esses trajetos. nenhum desses prédios era feito de azulejos tão azuis quanto aos do meu antigo banheiro. que pena!

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três poemas belo-horizontinos

frango frito

ouço pombos e passarinhos
gatos caçadores na janela
cachorros ansiosos com o barulho
de calçados familiares subindo as escadas
duas obras ou mais na vizinhança
um despertador que se esgoela 

bicicletas carros ônibus 
dividem espaço
com pessoas e carroças
e sacolinhas de supermercado 
apinhadas de lixo

a música parece a de sempre
mas é diferente
alguém matou os galos e as galinhas
que piavam e cantavam
a alguns metros daqui
em plena capital mineira

***

somos animais que migram no verão

já tentei
meditação yoga 
corrida krav magá
caminhada ansiolítico
terapia chás
mas é só olhar para o mar
que faço as pazes comigo

o problema é
moro em BH

(me desculpem 
as capivaras 
o jacaré da pampulha
cada dia mais gordo e tranquilo 
a lagoa não é suficiente: 
serve melhor aos meio-maratonistas)

***

inventário cidade nova

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***

esses poemas fazem parte do meu livro “eu investigo qualquer coisa sem registro”, obra que foi selecionada para publicação no concurso Poesia InCrível de 2021. se você gostou desses poemas, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram para não perder a data do lançamento que vem aí.