três poemas belo-horizontinos

frango frito

ouço pombos e passarinhos
gatos caçadores na janela
cachorros ansiosos com o barulho
de calçados familiares subindo as escadas
duas obras ou mais na vizinhança
um despertador que se esgoela 

bicicletas carros ônibus 
dividem espaço
com pessoas e carroças
e sacolinhas de supermercado 
apinhadas de lixo

a música parece a de sempre
mas é diferente
alguém matou os galos e as galinhas
que piavam e cantavam
a alguns metros daqui
em plena capital mineira

***

somos animais que migram no verão

já tentei
meditação yoga 
corrida krav magá
caminhada ansiolítico
terapia chás
mas é só olhar para o mar
que faço as pazes comigo

o problema é
moro em BH

(me desculpem 
as capivaras 
o jacaré da pampulha
cada dia mais gordo e tranquilo 
a lagoa não é suficiente: 
serve melhor aos meio-maratonistas)

***

inventário cidade nova

cinco marcas de ração coleiras brinquedos pipicat caixas de areia casinhas de cachorro peixes realistas com catnip dentro sachês e patês para pets linhas para costura agulhas alguma lã post its canetas lápis de cor giz de cera canetinhas vários tipos de papel pincéis kit aquarela tinta guache cola tesoura sem ponta cartolina caderno pastinhas coloridas pastas sanfonadas ecobags agenda planner papel de presente porta retrato squeeze enfeites de biscuit plantas de plástico canecas variadas dominó baralho jogo das varetas uno pilhas serviço de xerox impressão e scanner. quantas histórias mais guarda uma lojinha de bairro?

***

esses poemas fazem parte do meu livro “eu investigo qualquer coisa sem registro”, obra que foi selecionada para publicação no concurso Poesia InCrível de 2021. se você gostou desses poemas, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium,  Facebook,  Twitter,  Tinyletter  e  Instagram para não perder a data do lançamento que vem aí.

Pães em formato de bicho

Carlos Avelino/PBH

Um pão capivara passou na minha timeline do Twitter esses dias. Ele era tão bem feito que até orelhinhas tinha. Fofinho e coradinho, como uma capivara deve ser. Ele era feito de trigo, como os pães são. Ele me lembrou a minha infância.

Quase todo sábado, eu ia para casa dos meus padrinhos. Eu amava aquela casa. Ela era ampla, tinha uma romãzeira, plantas de todo tipo, flores, livros, revistas e muitos gatos. Não tenho certeza se minha tia já era instrutora de ioga, mas sei que ela me ensinava alguns movimentos nas horas vagas. Eu amava quando ela elogiava a minha flexibilidade e todas as posições com nome de bicho. Já meu tio, professor de biologia, sempre estava pronto para me dar uma informação nova sobre algum animal da natureza. Inclusive, toda vez que o tempo permitia, ele me levava para caminhar na beira do rio Itapecerica. “Em tupi-guarani, Ita significa pedra e pecerica lisa ou escorregadia”, ele sempre me dizia ou eu dizia a ele, porque tinha ouvido algo assim na escola. Já não sei mais. De longe, caminhando ao lado dele, eu via capivaras, pássaros, borboletas e um rio sofrendo com assoreamento, enquanto recebia algumas informações sobre reino, filo, classe, comportamento e reprodução de cada ser vivo avistado. E, fora tudo isso, eles gostavam de me ouvir falar. E, caramba, como eu falava!

Nessa casa, além da ioga, da biologia, dos gatos e dos livros, eu tinha acesso a um pão doce em formato de jacaré. Ele era enorme, tinha rabo, patas e até aquele levantadinho perto da testa onde os olhinhos ficam. Sendo esses olhinhos, no caso, vermelhos, feitos com aquela cereja-chuchu típica dos anos 90. Lembro que o coco ralado representava as escamas do bicho. Ele era lindo, delicioso, fora os olhos, e fazia totalmente a minha cabeça.

Meus pais nunca compraram pão jacaré pra mim. Ele representava um achado dos meus padrinhos, algo que somente eles podiam ter encontrado e comprado para me agradar. Esse pão era vendido numa padaria próxima da casa deles e era especial: somente podia ser comprado aos sábados. Talvez era até algo encomendado. Não sei. Só sei que vez ou outra, ao chegar na casa deles, já era levada até a padaria e aproveitava o momento para observar tudo. Eu não podia deixar escapar nenhum detalhe daquele bairro com Velho no nome, daquele morro todo, daquelas pessoas, daquela rua movimentada, daquela padaria que fazia pães de jacaré.

Queria absorver tudo ao meu redor, aproveitando aquela ilusão infantil de que andar ali representava alguma liberdade especial, bem aquela que é dada a todos que se colocam como aventureiros, desbravadores e conhecedores do mundo. De cima, já quase na padaria, eu olhava para a rua que continuava, pra mim infinitamente, e pensava na ponte, no rio, no fato de que minha casa estava bem do outro lado, além do horizonte. Em algum lugar naquela vastidão toda que era Divinópolis para a menina Thaís, devia haver jacarés que não eram feitos de pão. Tinha que haver.


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Metrópole

Se sua agenda parece impossível de ser cumprida, você não tem ideia de como é o planner da Metrópole

Nova York pelo desenho do artista holandês Stefan Bleekrode — Saiba mais sobre ele aqui.

Sempre chego nas aulas de yoga mais cedo às quartas-feiras. O trânsito descomplicado, a velocidade do ônibus, a hora que saio do trabalho, o elevador já me esperando no andar, e todo o resto confluem para que eu consiga um tempo para respirar, bem no meio da semana. Toda coincidência parece mágica, mas uma que envolve tantos fatores só pode ser coisa do demo ou dos deuses.

Fui criada em lar católico, então nem de brincadeira consigo nomear esses 20 minutos sagrados de adiantamento de hora do diabo, como meus amigos adoram fazer. Apesar disso, gosto de cometer várias heresias, como falar de astrologia, entoar mantras e dizer que descobri a deusa Metrópole quando a dádiva da quarta-feira surgiu em minha vida.

Toda vez que o ônibus chega na hora exata, a Metrópole mexeu os pauzinhos para isso. Quando o despertador não toca e mesmo assim você acorda na hora certa, pode ser seu relógio biológico ou ela fazendo seu trabalho. Sabe quando você faz um caminho, diferente ou não, bem no horário de pico e não há muito trânsito? Não foi o waze, app nenhum te dá essa sorte toda. Se caiu um toró assim que você chegou em casa, a Metrópole te queria seco. O acaso cotidiano é presente dela. Ela é a deusa dos pequenos e raros milagres diários das grandes cidades. Pena que é uma só.

Se sua agenda parece impossível de ser cumprida, você não tem ideia de como é o planner da Metrópole. Só a parte de Belo Horizonte consta 1,433 milhão de linhas, uma para cada pessoinha que mora aqui de acordo com o censo de 2010.

Metrópole não trabalha com um destino definido ao nascer. Seus estagiários observam as pessoas, notam as possibilidades de encontros e desencontros e fazem relatórios que são repassados para a chefia, ela. Com as informações reunidas, ela faz mágica com o que tem no dia e só. Todos os funcionários estão sobrecarregados. É por isso que parece que ela se esquece da gente às vezes e há dias tão melhores que outros.

Quando sento na sala de espera da yoga, penso na Metrópole, seus estagiários e em todo o caos que ela governa. Sempre me pergunto se a deusa do cotidiano tem alguma folga, alguma noite em que pode sentar com seus gatos e tomar vinho enquanto lê um livro. Provavelmente não, já que está aqui e também em Tóquio, em Buenos Aires, Londres e Lagos.

De repente, eu nem me lembro mais dela e vou ler revista de fofoca, escrever umas baboseiras no caderninho que anda comigo, comer a trufa que comprei na hora do almoço e imaginar a vida de alguém que vi passar pela porta.

Quando percebo, o tempo acabou mais uma vez. São só vinte minutinhos.


Esse texto foi originalmente publicado na newsletter “Crônicas da Vida Alheia”, projeto que eu tinha com a Ana Squilanti. Agora eu tenho uma newsletter só minha. Se interessou? Clique aqui e assine.


Este texto foi publicado na iniciativa Mulheres que escrevem. Esse é um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre autoras e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras.

Decidi que fico

Desenho do artista Stephen Wiltshire

Me apeguei a esta terra. Cheguei aqui pensando que logo voltaria para minha cidade natal e abandonaria a vontade de conhecer um mundo além daquele que me circundou por anos, mas me enganei. Era um medo infundado de quem nunca saiu do casulo. Agora cá estou eu querendo fixar morada numa terra em que não se pisa descalço. Bem eu que passei a infância com o pé encardido de tanto andar na terra vermelha.

Quando cheguei e o medo inicial passou, eu pensei que iria querer conhecer o mundo todo e passar no máximo uns dois anos em cada lugar. Achei que eu tinha um espírito meio nômade, meio aventureiro de quem ficou tanto tempo num lugar só que nunca mais soube parar. Só que eu parei. Comecei a me encantar pela construção dos prédios, pelos grafites pichados nas paredes, pelos caminhos que fazia e pela praticidade de morar perto do supermercado, padaria, papelaria, lanchonete e bar. Tem até uma loja de aquários na minha nova rua! Dá pra acreditar nisso?

Cheguei aqui num ônibus que chamam de “cata Jeca”, zombaram um pouco do meu sotaque e das palavras que uso. Falaram até que era como se eu falasse como se vivesse em outro século, fraga? Tento me adaptar, adiciono umas gírias que conheci aqui no final das frases, faço isso pra mostrar que quero me enturmar. Tenho ido bem. Algumas coisas que falo passaram a fazer parte do vocabulário de quem convive comigo e eu gosto dessa troca. Cada diálogo aqui tem sido uma curta apresentação de um pouco dos nossos diferentes mundos. O urbano encontra o interior na sala 1001 do Edifício Lobo.

Quem mora aqui nota minha vontade de conhecer tudo e resolve ir onde nunca foi mesmo morando há vinte e cinco minutos de ônibus do lugar. Apresento para eles meus causos, meu sotaque, minhas palavras diferentes e até mesmo a curiosidade de explorar a cidade que eles vivem. Ao me acompanharem, eles voltam a perceber a própria cidade que estava esquecida por representar o cotidiano. Vejo isso acontecer e espero voltar para onde nasci no natal para ver o que eu não conseguia ver por estar perto demais.

Uma cidade já é um mundo grande demais para conhecer de uma vez. Uma das maiores cidades do país então… Decidi ficar, fiquei e agora fico de vez.


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