Quando João nasceu, os médicos descobriram que ele veio ao mundo com um capacete natural acoplado ao seu corpo. Nas primeiras semanas, a consistência do elmo ainda em formação era tão frágil quanto a moleira de todos os outros bebês, mas logo isso mudou.
Aos seis meses, a cabeça dele já tinha se tornado mais resistente que um capacete de um motociclista. Aos quatro anos, cientistas comparavam a dureza dela com os materiais da escala Mohs e afirmavam que era questão de tempo para que essa parte específica do corpo de João tomasse o lugar do diamante no topo.
Com orgulho, a família o alimentava com comidas nutritivas e o obrigava a seguir à risca uma dieta feita para fortalecer os ossos e a carne. Queriam que a cabeça de João ficasse ainda mais firme.
Todo mundo dizia que nascer assim era coisa do destino e que em algum lugar do DNA do menino constava que ele devia seguir alguma carreira no campo da segurança pública. Seus pais concordavam, mas desejavam que o cérebro de João também chamasse atenção, já que não gostariam de ver o garoto ser usado em seu futuro emprego como uma simples isca por causa de seu capacete natural melhor que todos os artificiais. Por isso, desce cedo, eles o incentivaram a estudar muito para garantir um futuro de sucesso nos concursos públicos de alto escalão. Seu pai dizia para quem quisesse ouvir que João seria um ótimo delegado da Polícia Federal e sua mãe sonhava com seu menino estudando no Instituto Tecnológico da Aeronáutica para só depois alçar voos maiores.
Aos dezoito, ele não conseguiu evitar prestar o serviço militar mesmo com a sua vaga universitária garantida pela excelente nota no vestibular. Seu capacete natural virou assunto no meio e até o Ministro da Defesa quis conhecê-lo. Nesse dia, o homem prometeu para ele regalias e mais regalias por causa de seu talento nato para resistir bem a grande impactos.
Mas João era de fato muito cabeça dura, por isso largou sua vaga na instituição de ensino superior da aeronáutica e foi estudar artes cênicas para atuar em filmes de guerra hollywoodianos. Esse sim, seu grande sonho.
Ele saiu. Não sei para onde foi. Falou que ia me matar se ficasse mais um segundo na minha frente e foi embora deixando a porta escancarada comigo ainda no chão da sala. Fiquei deitada colocando sangue pelo nariz e vi o cara do 902 esperar o elevador e seguir em frente para seu leg day sem nem olhar para o lado.
Não sei porque ele se preocupa tanto em não deixar marcas óbvias se todos os vizinhos ouvem meus gritos há anos e não fazem nada. Ninguém se importa. Algumas vezes até eu deixei de me importar. Cheguei a pensar que ele devia me matar logo para eu ficar livre dessa merda.
Ai, ai, você vai realmente insistir para eu fazer b.o.? Outro? Contra o promotor amado da cidade do interior? Contra o cara conhecido por defender criancinhas de pedófilos? Não dá. Ele é um bam-bam-bam aqui e eu só uma mulher.
Sim, tenho certeza. Não vou passar fome e nem nada. Me planejei, sabe? Desviei uma boa grana dele para isso. Se ele vier atrás de mim, não vai me achar. Nesse avião já vou entrar com outro nome e chegando na Europa terei uma nova identidade me esperando. Seu relógio tá certinho? Já são onze da noite mesmo? É, tenho que chamar um táxi agora. Vai que ele volta mais cedo hoje. Não posso arriscar ficar mais.
Vem cá, me dá um abraço, vai. Não chore. Era isso ou continuar nessa merda.
Era uma noite qualquer de inverno, mas começou a chover. As pessoas, então, foram para suas janelas a fim de receber as águas vindas do céu e saudar a chuva milagrosa em pleno agosto. Algumas agradeceram em voz alta ao seu deus ou deusa toda poderosa, mas a maioria celebrou em silêncio, encarando as nuvens e sentindo o cheiro de terra ou asfalto molhado.
Os pingos, rápidos e pesados, acertavam a janela empoeirada que não via água há meses e esse movimento de água, vento, vidro e gente fez parecer que havia uma melodia acontecendo ao meu redor.
Deitei na cama para ouvir esse som como se fosse música. Fiquei assim por alguns minutos, mas a tranquilidade do momento foi destruída por latidos, miados ansiosos e estrondos cada vez mais altos. Era baque que não acabava mais. As casas pareciam estar sendo apedrejadas e os vizinhos, que antes agradeciam, agora gritavam de medo.
Meus gatos, muito assustados, se refugiaram comigo na cama e juntos dormimos com esperança que dessa vez fosse apenas granizo.
Acordamos com o som do meu despertador. O céu já estava limpo e o barulho dos carros e dos ônibus preenchia nossos ouvidos. Pela janela, vi algumas árvores caídas, carros amassados e montes de pedras de gelo começando a derreter e soube que sobrevivemos a mais um pequeno apocalipse, um desses que vira capa de jornal e às vezes inspira álbum de banda experimental.
Era verão e eu queria sentir o vento fresco do início da noite bater em meu rosto. Escancarei a janela, respirei fundo e deixei o ar preencher meus pulmões, enquanto encarava o prédio ao lado. Passei os olhos pelos apartamentos iluminados e me deparei com dois corpos pendurados e sem cabeça.
Senti meu corpo tensionar, tremer e quase cheguei a suar frio e então percebi que eram apenas dois ternos suspensos num cabide fora do armário.
Me apeguei a esta terra. Cheguei aqui pensando que logo voltaria para minha cidade natal e abandonaria a vontade de conhecer um mundo além daquele que me circundou por anos, mas me enganei. Era um medo infundado de quem nunca saiu do casulo. Agora cá estou eu querendo fixar morada numa terra em que não se pisa descalço. Bem eu que passei a infância com o pé encardido de tanto andar na terra vermelha.
Quando cheguei e o medo inicial passou, eu pensei que iria querer conhecer o mundo todo e passar no máximo uns dois anos em cada lugar. Achei que eu tinha um espírito meio nômade, meio aventureiro de quem ficou tanto tempo num lugar só que nunca mais soube parar. Só que eu parei. Comecei a me encantar pela construção dos prédios, pelos grafites pichados nas paredes, pelos caminhos que fazia e pela praticidade de morar perto do supermercado, padaria, papelaria, lanchonete e bar. Tem até uma loja de aquários na minha nova rua! Dá pra acreditar nisso?
Cheguei aqui num ônibus que chamam de “cata Jeca”, zombaram um pouco do meu sotaque e das palavras que uso. Falaram até que era como se eu falasse como se vivesse em outro século, fraga? Tento me adaptar, adiciono umas gírias que conheci aqui no final das frases, faço isso pra mostrar que quero me enturmar. Tenho ido bem. Algumas coisas que falo passaram a fazer parte do vocabulário de quem convive comigo e eu gosto dessa troca. Cada diálogo aqui tem sido uma curta apresentação de um pouco dos nossos diferentes mundos. O urbano encontra o interior na sala 1001 do Edifício Lobo.
Quem mora aqui nota minha vontade de conhecer tudo e resolve ir onde nunca foi mesmo morando há vinte e cinco minutos de ônibus do lugar. Apresento para eles meus causos, meu sotaque, minhas palavras diferentes e até mesmo a curiosidade de explorar a cidade que eles vivem. Ao me acompanharem, eles voltam a perceber a própria cidade que estava esquecida por representar o cotidiano. Vejo isso acontecer e espero voltar para onde nasci no natal para ver o que eu não conseguia ver por estar perto demais.
Uma cidade já é um mundo grande demais para conhecer de uma vez. Uma das maiores cidades do país então… Decidi ficar, fiquei e agora fico de vez.
Aos quinze anos fui visitar a casa em que cresci e a descobri muito diferente. Os cômodos eram bem menores do que eu me lembrava. Os armários acoplados dos quartos não eram enormes pedaços de madeira escura trabalhada e que intimidavam pelo seu tamanho. Esses armários, na minha memória, eram tão imponentes que pareciam sustentar as paredes, o teto, a casa. Agora não havia nada de intimidador neles. Estavam velhos, com aparência de fragilidade até. Pareciam tão fracos que era como se tivessem encaixado painéis de madeira esculpidos como guarda-roupa entre as paredes. “Foram só cinco anos, como pode tudo ter mudado assim?”, eu me perguntava.
Eu não esperava encontrar tudo igual. Eu sabia que haveria um estranhamento, que eu me sentiria uma estranha ali. Só que eu imaginava que a percepção seria outra, que eu sentiria a casa mais ampla do que de fato ela foi, que tudo aparentaria ser bem maior sem as nossas presenças marcadas pelos objetos que possuíamos.
Depois de revisitar os cômodos do interior, fui para o quintal. Pela porta da cozinha, avistei onde ficavam os canteirinhos. Ali, meus pais plantavam cebolinha, manjericão, salsinha, couve, pimentas e até umas ervas para chás. Tanta vida coube ali, mas agora só se via um espaço com terra tão pequeno que fazia o verde da minha memória parecer quase um bosque. Só que dessa vez eu já não buscava mais comparar minha memória com a realidade. Não era mais isso que me movia. Eu já sabia que seria decepcionante ver essa parte da casa sem qualquer planta viva. O que eu queria mesmo era saber como estava o quartinho dos fundos que me aterrorizava durante a infância.
Desci a rampa. Ela não tinha nada do grande tobogã que fez parte de tantas das minhas brincadeiras. Apesar das minhas pernas terem continuado curtas, atravessei com poucos passos o caminho que um dia me pareceu longo e quando vi já estava na porta do quartinho.
Ele estava fechado. Eu já tinha aberto a porta dele antes, mas dessa vez tinha algo diferente. O meu medo de infância rememorado e o vazio de toda a casa aumentou seu ar de mistério.
Durante todo o tempo que vivemos ali, meus pais guardaram ferramentas, potes, vassouras, rodos, vasos, material de jardinagem, cadeiras de bar, enfeites de natal, baldinhos e até minha bicicleta e meus patins nesse espaço. Tudo que não cabia bem dentro da minha casa ia parar ali e formava uma bagunça daquelas. Entrar no quartinho era necessário, algo do dia-a-dia, mas ainda assim sempre fiz com pressa e receio. Toda vez que era preciso transpor aquele limite simbolizado pelo batente, eu sofria, e uma vez lá dentro, eu temia não mais voltar.
Por isso, eu escancarava a porta, colocava algo para garantir que ela ia se manter aberta e entrava correndo e voltava de lá com o que eu deveria buscar em minhas mãos. Quase sempre minha bicicleta ou meus patins, que ficavam apoiados bem na entrada, mas que ainda assim me faziam entrar ali por tempo o suficiente para temer.
Não sei dizer quanto tempo fiquei ali apenas encarando a maçaneta. As lembranças infantis são capazes de aterrorizar mesmo o mais seguro e cético adulto, imagine então uma adolescente de quinze anos que foi visitar sua antiga casa sozinha antes que ela fosse pintada para ser colocada à venda.
Abri a porta, entrei e notei que o quartinho tinha diminuído como todo o resto. Só que ele sofreu a diminuição de forma mais intensa: o que antes me parecia uma sala que foi transformada num armário de coisas pouco usadas ou grandes demais pra ficar dentro de casa se tornou uma dispensa grande.
Estranhei como era capaz de caber tudo aquilo que sempre vi ali dentro naquele lugar tão pequeno. Fiquei conferindo o espaço, enquanto lembrava onde a gente guardava tudo. Eu sentia o cheiro de tinta, as paredes ali já estavam recém pintadas. Não havia nada mais ali. Nenhum objeto, nem mesmo as marcas das prateleiras que eu esperava ver. Senti que todo aquele medo era coisa de criança.
Contemplei o quarto com o orgulho de quem venceu seus próprios medos. Finalmente tranquila, pude olhar para o todo com atenção e assim consegui ver algo que não tinha percebido ainda. Havia um buraquinho no chão bem onde as paredes se encontravam. “O quarto está recém reformado, como poderiam deixar passar isso?”, me perguntei enquanto chegava mais perto para conferir. Quando me abaixei para olhar, senti que o buraquinho não era só estranho, era poderoso. Ele inspirava o ar dali e o levava para o lugar nenhum. Eu sabia que se chegasse mais perto sentiria também que ele fazia um som bem específico quando puxava o ar. O som que eu lembro de ouvir sempre que entrava ali. O som que sempre me aterrorizou.
Gelei da cabeça aos pés e me virei em direção da porta. Nisso, senti a puxada do ar ficar mais forte e comecei a ouvir o som familiar ficar bem mais alto do que me lembrava. O lugar não parecia mais uma dispensa grande e sim um corredor. Eu olhava para os lados e via as paredes compridas e a porta mais longe do que eu imaginava. Consegui sair, mas no caminho — sim, agora já dava pra ter um caminho — eu cheguei a ver a porta fechando sozinha bem devagar com a força do buraquinho que sorvia o ar com cada vez mais força.
Fora dali, confusa e duvidando de tudo que tinha acabado de acontecer, reabri a porta e encarei o quartinho. Ele parecia inofensivo, exatamente como enxerguei antes. Ele tinha voltado ao seu tamanho normal e não havia nenhum sinal da corrente de ar bizarra que eu senti lá dentro e que me acompanhou até a saída.
Acreditei que tudo aquilo tinha sido só imaginação até meu olhar alcançar o buraquinho. Sua dimensão tinha mudado, quadruplicado na verdade. Agora ele era maior e ao ser notado voltou a sorver o ar como antes. Me afastei da porta e, já na rampa, a vi fechar sozinha, apenas com a fome daquele buraco. Fui embora com a impressão que a casa tinha ficado ainda menor e que ele nunca ia deixar de sorver.
Optei por nunca contar isso aos meus pais. Eu não queria ganhar o rótulo de louca. Achei que eu ia esquecer com o tempo. Não esqueci. Tentei criar teorias com base na ciência para explicar o que vivi ali. Não consegui. Pensei que um dia ia cair a ficha que foi só imaginação. Não aconteceu. Ainda não sei se o quarto se alimentava com as coisas que a gente deixava ali e naquele momento se rebelou por sentir a fome de alguns anos vazio ou se ele simplesmente viveu anos nutrido pelo meu medo guardado na memória e ao me ver chegar sozinha, com a casa toda vazia, decidiu que dessa vez ele ia me comer junto.