Questão de sorte

Riho Kroll

Acabei de ler uma matéria no Nexo que diz que homens são mais resistentes a usar máscaras no dia a dia e cumprir o isolamento social necessário para combater a pandemia, porque tendem a acreditar que não serão contaminados pelo coronavírus e, caso forem, se recuperarão mais facilmente. O irônico dessa história é que a taxa de letalidade entre eles é maior do que entre mulheres. Um engano desses jamais aconteceria comigo e eu juro que dessa vez isso não tem nada a ver com uma certa hipocondria minha. Só tem a ver com cisma.

Desde que a pandemia começou, eu tenho pensado cada vez mais no temor de ter gastado com outras coisas menores toda a minha sorte, essa coisa mágica e inexplicável que até o mais cético às vezes sente que rolou ou faltou. Agora, justamente por esse gasto anterior totalmente impensado e impulsivo, eu estou mais desprotegida do que nunca. Tenho medo da minha reserva de sorte ter zerado, de não ter nada na despensa para me proteger do azar. Esse pensamento não é bem uma novidade, mas agora ganhou contornos mais mórbidos. Eu sinto que o esvaziamento da minha sorte parece ter acontecido bem antes, já que em todo concurso que eu tento eu não vejo qualquer atuação dela. Antes, a falta dela atuava pelo meu fracasso, agora eu temo que ela não apareça para proteger a minha vida ou a vida dos meus.

Eu, você, todo mundo, precisa de sorte quando vai ao supermercado ou na farmácia ou mesmo deixar o lixo na rua ou trabalhar. A gente precisa estar no corredor certo e bem longe, quando alguém espirrar ou tossir ou conversar ou mexer errado na máscara e depois tocar nas maçanetas do prédio e produtos todos. A gente precisa de sorte para continuar, porque, além de tudo, a gente também tem que lidar com esse governo que foca sempre na cloroquina, na Anitta e no autoritarismo.

Eu já ganhei dois sorteios no Instagram, uma viagem para o Hopi Hari, um mp3 e várias partidas de jogos de tabuleiro, baralho e outros formatos de games que envolvem um pouco ou um mucado bom de sorte em sua lógica. Fora a fase que eu gostava de jogar bingo online pelo Jogatina. Cada vitória ali pode ser revertida por uma onda de azar que vai me colocar frente a frente com um contaminado assintomático e bolsominion que se recusa a usar máscara de tecido na rua e se afastar de quem passa bem quando eu precisar sair para fazer qualquer coisa.

A última vez que eu achei que uma encomenda minha tinha sido extraviada ou furtada por algum vizinho, ela estava o tempo todo na caixa do correio. Fora que eu já perdi dois celulares, uma vez em um táxi muito antes de apps existirem e os taxistas serem rastreáveis facilmente e outra vez em um restaurante numa cidade que eu não vivia, e nas duas vezes, milagrosamente, os aparelhos voltaram para as minhas mãos são e salvos. E eu nem comento as vezes em que a sorte sequer foi percebida por mim ou que eu já esqueci. Eu pareço dever muito, muito, muito mesmo para sorte e não sei se quando criança eu a servi com trevos de quatro folhas o suficiente, porque eu lembro de procurar, procurar e procurar e encontrar quase sempre só os de três.

Esse papo todo me lembra que esses dias o tapetinho da porta do apartamento sumiu por mais quase três semanas e depois retornou, o que nesses tempos eu não sei se é sorte ou azar, porque ele pode ter retornado todo contaminado, apesar de que tudo indica que quem pediu emprestado o lavou junto com o meu chinelo ipanema que nem sequer chegou a sumir por uns dias. Por desencargo de consciência, eu evitei pisar nele durante 14 dias, mesmo saindo apenas para levar o lixo lá fora.

Só sei que eu tenho medo de faltar sorte bem agora, bem na hora que eu imagino que será a que mais preciso. Eu tenho medo de toda vez que marquei alguém em um sorteio nas redes sociais, eu tenha atuado para me colocar no centro do furacão sem qualquer proteção mística, ainda que eu nem sequer acredite nisso. Eu tenho medo, porque a minha regra é sempre pensar na pior possibilidade e, caramba, como todas as chances que se apresentam agora parecem ser ruins.

Por isso, eu não saio de casa, uso máscara de tecido e descorongo tudo que chega nesse lar e acho que todo mundo deveria fazer o mesmo também, porque o sortudo pode perder a sorte e o azarado pode ter muito azar ainda para gastar. Tudo é questão de sorte, ou azar, e para essas coisas não há regras.

O aleatório pode te pegar pela sacolinha do delivery de pizza que você entrega ou pega. O vírus bactéria filha da puta micróbio do caralho pode resolver fazer sua morada provisória ali e, como num jogo de dados, se o resultado for 1 ou 2, ele pode te contaminar na hora mesmo você tendo muito cuidado, se der 3 ou 4, ele pode te pegar porque você deu um beijinho no gatinho ou cachorrinho ou mesmo uma criança que se escondeu lá dentro brincando sem você ver, mas se der 5 ou 6 dessa vez você está livre, porque nessa sacolinha, bem nessa, não tinha nada de vírus. Sorte. Ou azar. Mesmo se você não der a bobeira de não descorongar o que devia desconrogar, a verdade é que a gente não tem controle de nada. A gente só tenta diminuir as possibilidade de tirar os piores dados e torce para dar certo.


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Sobre o medo de perder dinheiro e pertencer ao passado

Josh Appel

Toda vez que faço compras online, eu fico muito tensa com medo de algo acontecer e eu não receber meu produto em casa. Não gosto de achar que perdi dinheiro. Nem imagino como deve ser investir na bolsa e conviver com variações diárias de perdas, mesmo que às vezes tenha ganhos. Muitos ganhos. Ganhos que provavelmente eu nunca vou ter, porque não invisto na bolsa e dinheiro para poder fazer isso com tranquilidade me parece uma ficção. Na verdade, especulação. Gostou da piada ruim? Fiz para te fazer pensar que talvez eu entenda o suficiente para ser pessimista tendo trinta anos e vivendo o capitalismo tardio. Me parece desperdício de tempo, energia e grana. Quem quer arriscar perder grana? Sei lá. Quem quer aprender ganhar dinheiro com tragédia? Todo mundo? Me parece errado correr esses riscos, financeiros e morais.

Mesmo nos meus dias mais loucos, eu devo ser conservadora nos meus costumes bancários. Se bem que nem tanto. Eu amo conta digital, carteiras que oferecem cashback quando você gastar e essas praticidades novas. Teve uma época que até segui o Picpay nas redes sociais e bem recentemente tentei edital cultural de banco tradicional. Na verdade, eu até sei o que é LCI, fundo de investimento e corretora. Eu já até investi dinheiro, pouco, claro, mas é porque não dá para deixar na poupança também, entende?

Eu só não gosto de achar que vou perder dinheiro. Quando faço uma compra online, eu morro de medo que o produto desapareça no mundo e eu não consiga reembolso, ou até consiga, mas só depois de tempo demais de espera e dúvida. Tem hora que o temor muda e se torna um medo de esquecer de pedir o reembolso porque passei muita raiva, troquei muito e-mail, li e ouvi mil vezes que o produto foi enviado e eles não podem se responsabilizar por mais nada além daquilo. Talvez eu me assuste com a possibilidade do tempo passar e eu esquecer para que precisava daquilo quando tocarem o interfone me avisando que minha encomenda chegou. Na verdade, eu tenho receio mesmo é de acabar apagando o e-mail que eu precisava para confirmar o número do meu pedido ou ter errado na hora de preencher o meu próprio endereço. Ou algo assim.

Eu não sou muito organizada, sabe? E nada que eu faça me impede de receber muito spam e eu já acatei que o meu destino é ter sempre uma Caixa de Entrada caótica. Eu também tenho medo de pagar o boleto. Ou pagar repetido. Inclusive já paguei uma vez e vi minha conta seguinte vir abatida depois de uma conversa tranquila com uma atendente de telemarketing com sotaque pernambucano que nem me julgou por ser tão lerda.

Nada me dá segurança numa compra online. Nada. E isso me faz me sentir meio negacionista, meio meu pai, meio como se eu me tornasse cada dia uma boomer, ou pior, uma millennial-boomer. Nada me dá mais medo do que isso, ainda que eu saiba que o tempo passa e quem nasceu no século XIX já deve estar rindo de mim usando o celular. Nem tiktok eu tenho instalado.


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“A Casa dos Espíritos”: a ficção pode contar muito da realidade também

Foto de Leia Mulheres Divinópolis

Aprendi ainda criança a diferença de estórias e histórias. O termo que começa com vogal, considerado arcaico para muitos mesmo quando eu estudei sua existência, servia para designar as coisas folclóricas, as narrativas populares, os “causos” e contos ficcionais, enquanto a história com H e sem plural era sobre o estudo do passado, a ciência que tenta entender o hoje a partir do que um dia se deu, o estudo dos fatos reais.

Hoje usamos história para tudo, podendo colocar no plural para falar principalmente de ficção. O que me parece acertado, porque às vezes o que chamaríamos de estórias com E são narrativas essenciais para entender o que diz a história com H. Essa história que parte de documentos oficiais, das narrativas mais importantes e que às vezes vem de uma parcela mínima de uma população e é usada para falar de todo um tempo e contexto.

“A Casa dos Espíritos”, primeiro e mais famoso romance de Isabel Allende, é uma dessas obras que, apesar de ser ficcional, ajuda o leitor a entender o que se passou em um país durante parte do século XX. A partir de um drama familiar, a autora expõe o Chile como ele foi, ainda que parta de uma narrativa que vem de participantes de uma certa elite. Violências, disputas, desigualdades, são todas expostas, enquanto Isabel Allende trabalha também ideias abstratas como a força do amor, dos afetos, das trocas, da delicadeza e generosidade, sem esquecer de antagonizar tudo isso com horror do ódio e da negação da realidade.

O romance tem uma narrativa marcada por uma exposição crítica de fatos sociais e históricos do Chile, como a Ditadura Militar e o acirramento de ânimos causado pela desigualdade e a manipulação e uso do poder e do dinheiro pela elite. E, apesar do realismo cru de certas passagens, como o uso e a violência do corpo das mulheres mais pobres por parte dos patrões, há também muita magia. Essa magia que é colocada como marca da literatura latino-americana, apesar da força do cristianismo na região.

Espíritos, previsões, superstições, sabedorias ancestrais, mapas astrais, toda essa espiritualidade solta, que tenta ser livre de dogmas, aparece na obra como uma manifestação da necessidade de se manter além daquela violência terrena. No meio de tanto sangue e dor, a magia e as histórias fantásticas parecem ser uma maneira de manter algo maior vivo, algo próximo do amor. Algo que parece faltar nesse mundo que no livro se manifesta como o mais próximo do real possível e critica e expõe o que foi o Chile.

Isabel Allende nos entrega uma obra que nos faz pensar nos laços familiares, na complexidade dos afetos e como as disputas que ocorrem dentro de casa são uma manifestação do resto do mundo ao redor. Esse mundo ao redor que parece estar sempre pronto para explorar corpos ditos femininos e fazer mais uma tragédia latino-americana acontecer.

“A Casa dos Espíritos” tem uma força especial porque a mera existência dessa história ficcional serve como lembrança de um período histórico que ainda sofre com tentativas de disputas de narrativas. Esse é um livro que evoca a importância da memória, tanto no sentido privado, quanto público, da cultura e do repúdio ao autoritarismo e exploração a partir da desigualdade, inclusive a entre homens e mulheres.

Nesse sentido, esse clássico nos ajuda a pensar no passado ditatorial da América Latina e do Brasil e, infelizmente, também no que se passa hoje, em maio de 2020. Estamos cada vez mais distantes do que aprendemos a chamar de democracia. Parece ter restado apenas uma espécie de carcaça democrática que vive da continuidade daquilo que ainda não foi aparelhado e da possibilidade de denúncia midiática. O resto parece já ter ido embora ou estar em processo de.

É impossível não pensar se vamos ficar “só” nisso ou se nesse afã de entregar tudo ao estrangeiro, militares e elite iremos chegar até as torturas, ameaças e desaparecimentos de novo, além dos que acostumamos a ver dentro do regime democrático como um vestígio de nossa história. E também é impossível não pensar nas consequências que a omissão proposital a respeito do coronavírus e o negacionismo científico sobre a pandemia podem causar.

Me parece até que, mesmo sem qualquer aparição, Clara ou seus espíritos estão tentando falar com todos nós, nos colocando alertas ao que pode vir acontecer ao nos lembrar do que já aconteceu. Tudo a partir do livro, que mostra até onde a força do ódio pode chegar e nos faz refletir sobre o quanto certos governos, como o de Bolsonaro, parecem ter como premissa deixar morrer. E o quanto eles agem ativamente para fazer essa agenda acontecer além da doença que nos encerra em casa no momento. Sempre com ameaças de serem mais ativos ainda. Com ameaças que parecem um retorno ao passado que eles adoram negar enquanto o homenageiam. Um passado que é lembrado de forma literária e crítica por Isabel Allende nessa obra publicada em 1982, quando tudo isso ainda era bem recente e próximo e as narrativas estavam em plena disputa.


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O Diário de Nisha: a Partição pelos olhos de uma menina

Além das notícias, muitas vezes bem superficiais, pouco conhecemos sobre as relações conflituosas entre Índia, Paquistão e a região de Caxemira. Ainda que essa animosidade entre povos, territórios e países possa colocar a vida de muitas pessoas em risco até hoje, as informações que chegam até a maioria de nós são insuficientes até mesmo para desenvolver empatia por qualquer das partes envolvidas. Tudo que acontece nessa região parece longe demais da gente. Embora nossa sociedade consiga se sensibilizar por tragédias e histórias tão distantes quanto, mas protagonizadas por outros personagens, esses geralmente europeus ou seus descendentes.

A verdade é que para sentir essa proximidade é preciso saber mais sobre o que se passa, de verdade, no cenário dessas histórias que, narradas de maneira tão distante pela mídia tradicional, parecem ser ficcionais de um jeito ruim. Falta, na maioria das vezes, conhecer o contexto e um pouco mais sobre os personagens. E, para isso acontecer, se faz necessário voltar ao passado e analisar os acontecimentos que influenciaram nos problemas atuais. Nesse caso, saber um pouco mais sobre a Partição se torna essencial, porque esse momento afetou e muito a história e o presente do sul da Ásia e tem relação direta com as consequências de anos de colonização inglesa.

A região onde se localiza hoje a Índia, o Paquistão e Bangladesh era uma só e passou 200 anos sob o domínio britânico, apesar das revoltas da população. A Partição aconteceu em 1947, após o fim da colonização, quando a Índia, maioria hindu, e o Paquistão, maioria muçulmana, se separaram e deram origem a dois países, a uma onda de violência e a um dos principais episódios de migração em massa da história mundial.

Estudiosos consideram que a interferência dos ingleses nas comunidades durante o processo de colonização e de descolonização desequilibrou a convivência entre os grupos que compunham aquele território, o que afetou como a população se via e percebia uns aos outros. Esse processo, junto com outras questões como as reações de lideranças, catalisou a animosidade entre hindus e muçulmanos durante o processo de criação dos dois estados soberanos em questão e deu origem a esse marco histórico carregado de dor, trauma e sangue.

Essas novas fronteiras, que agora já possuem mais de 70 anos de existência, ainda latejam. A Partição e o que aconteceu para e a partir dela afetou histórias individuais, familiares e de comunidades inteiras e isso reverbera desde então.

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“O Diário de Nisha”, obra de Veera Hiranandan, traduzida para o português por Débora Isidoro, é tão importante, ainda que seja uma obra de ficção, por contar uma história de uma família nesse contexto e possibilitar que os leitores das mais diversas idades entendam melhor esse momento histórico e as consequências dele na vida das pessoas.

Veera, que cresceu nos EUA, mas possui raízes em outras culturas, se inspirou na história da família de seu pai para escrever. Ele, com apenas nove anos, saiu de Mirpur Khas e foi para Jodhpur junto com seus familiares durante a Partição, assim como a protagonista do livro. A infância tímida e observadora e o fato de Veera ser filha de pai hindu e mãe judia, enquanto Nisha tem como pai um homem hindu e uma mãe muçulmana, são outras semelhanças entre personagem e autora.

O livro é narrado de forma epistolar por uma menina de 12 anos. As cartas que ela escreve no diário que ganhou de um empregado de sua família, que é muçulmano como sua mãe, são destinadas a ela. A mãe de Nisha, entretanto, não está viva. Ela faleceu faz tempo e as cartas que contam tanto sobre a Índia e o Paquistão são, principalmente, um meio que a personagem encontrou para se expressar e lidar com essa ausência.

Durante a trama, vemos as consequências dessa divisão de territórios e povos se infiltrarem na realidade de uma família e, nós, como leitores, acompanhamos cada momento com o coração apertado e conhecemos, pelo diário da protagonista e imaginação da autora, algo que vai muito além do conteúdo jornalístico, histórico ou mesmo enciclopédico sobre esse episódio.

A narrativa, além de um diário de uma pré-adolescente e um relato de um conflito, é também sobre a condição humana. Nisha não só passa por uma viagem migratória forçada e perigosa, ela lida com quem ela é e descobre mais sobre si, suas relações e vive um embate entre passado, representado pela mãe e suas raízes muçulmanas, e futuro, que é totalmente incerto, especialmente diante da Partição.

Nesse sentido, a culinária se transforma para a menina, tão calada e tímida, em um meio de refúgio, comunicação, conexão e manifestação de afeto. Aquela comida tão colorida, temperada e com raízes, aparentemente diversas, se transforma na voz dela perante as pessoas que a cercam. Os vários pratos que ela come e prepara nos dá meios para que imaginemos melhor o mundo que cerca Nisha e o que ela quer manter junto dela. Assim vemos chapatis, parathas, biryanis, rasmalais, sai bhajis e muitas outras iguarias comuns da região se tornarem uma espécie de novo lar e algo que representa as ligações daquela família.

Vale ressaltar que Amil, irmão da protagonista, é quase um oposto dela e ainda assim um de seus maiores companheiros. Ele não é quieto, fala bastante, não presta atenção nas aulas e prefere desenhar, enquanto ela, por outro lado, é estudiosa e fala pouquíssimo. Nisha admira seu irmão por ser quem é, ao menos na maior parte do tempo, e defende seus talentos. Amil sofre com as expectativas do pai médico, que a gente imediatamente pensa que se dá daquela forma por questões de gênero. Nesse sentido, acaba impossível não imaginar como seria a vida de Nisha se ela fosse como Amil.

“O Diário de Nisha” conta uma história que se passa sete décadas atrás, mas que contém valiosas lições para o mundo contemporâneo. Nós precisamos olhar para as migrações forçadas, para os refugiados um a um, pensar em Direitos Humanos, promover a dignidade da pessoa humana e também investigar, para evitar que aconteçam ou remediar seus efeitos, as origens desses deslocamentos, que hoje se manifestam, inclusive, por questões relacionadas ao colapso climático.


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Lar

é uma casa muito engraçada
não tem nada meu
a não ser meu corpo
que espera
asilo

é uma casa muito engraçada
dessas que não aparentam ser
o lar de ninguém
mas muita gente mora
e não parece se sentir
morando

são casas muito engraçadas
todas essas que ficam
nos assentamentos
e com ar de provisoriedade
permanecem
enquanto nossas esperanças
nascem morrem brotam crescem são arrancadas
e doem
como doem

a casa que me cabe
está longe
vive no futuro
ficou no passado
encontra-se em território perigoso
um lugar estrangeiro
ou de ameaças, violências e memórias conhecidas

memórias que guardam o medo dos últimos dias
e o cheiro de chá, pão e fogo
que muito antes do adeus
tomava conta da cozinha
antes de qualquer bom dia

Esse poema foi inspirado nos relatos do livro “Longe de Casa” de Malala Yousafzai e escrito especialmente para o Dia Mundial do Refugiado.

Cafarnaum: o universo brutal da miséria

Imagem de divulgação

Dirigido por Nadine Labaki, “Cafarnaum” conta a história de Zain, um menino de cerca de 12 anos que vive em Beirute em situação de pobreza e negligência e faz de tudo um pouco para conseguir sobreviver.

Vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes e considerado um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro junto com “Roma” e “Guerra Fria”, a obra aborda miséria e alteridade e também discute questões como maternidade, família, ausência do Estado, justiça, tráfico humano, imigração e até mesmo gênero.

Com “Cafarnaum”, a diretora Nadine Labaki, de origem libanesa, se torna a primeira mulher árabe a concorrer a estatueta na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, como diretora de uma obra com fotografia com ares documentais e atores não profissionais. Além da direção, Nadine faz uma ponta como uma personagem de pequena participação e é uma das pessoas que assinam o roteiro.

O menino quase homem

Quando Sahar (Haita ‘Cedra’ Izzam), irmã de Zain (Zain Al Rafeea), é vendida para se casar em troca de algumas galinhas — fato que o menino já sabia ser provável e por isso fez de tudo para esconder a menarca da irmã dos pais -, ele foge e passa a viver sozinho nas ruas da cidade. Mas mesmo antes de fugir de casa, o garoto, ainda tão novo, se vê obrigado a assumir diversas responsabilidades que se relacionam com a sua própria sobrevivência e dos seus. O cuidado com o futuro da irmã é uma amostra disso e a sua preocupação com o bem-estar do outro continua também na segunda parte do filme, apesar de seus pequenos delitos.

Zain assume esse papel, mas ainda é uma criança, brinca com armas de madeira na rua com um bando de meninos, quer ver desenho na televisão que não tem e ao fugir escolhe descer do ônibus em frente a um parque de diversão decadente. Essa decisão acontece após uma conversa com um velho fantasiado de Homem-Barata que sentou ao seu lado. Sua adultez precoce, presente durante todo o filme, contrasta com esse lado infantil que parece ter sido proibido pela realidade de se manifestar, mas ainda assim se apresenta em algumas situações.

O contraste entre o Zain que furta, trafica remédios, fala vários palavrões, xinga e brinca de armas de madeira com Sahar e Jonas, personagens da segunda fase do filme, nos ajuda a ver o quanto ele, sua família, Tigest e outros personagens vivem uma rotina violenta que os transforma. Sobreviver ali é se colocar como mais forte e a adultez e o comportamento agressivo do garoto se relacionam com o que se espera de um pequeno homem e também com a forma que as relações dele com os pais e com o mundo foram construídas.

Mães, pais e irmã: feminilidade e masculinidade em meio ao caos

Sahar, a mãe de Zain, e Tigest, mãe de Jonas, representam o destino feminino nesse contexto. Sahar vivia se esquivando sozinha — e também com a ajuda do irmão — da violência de gênero e das tentativas de exploração de seu corpo. Mesmo assim, acaba vendida para um homem mais velho em troca de galinhas. A mãe de Zain e Tigest dividem o peso da maternidade quando se tem pouco o suficiente até para a própria família. Uma, apesar de aceitar que a procriação é parte da vida, não consegue dar amor e o mínimo de dignidade para os seus vários filhos e em diversos momentos os trata como nada. A outra faz de tudo para conseguir alimentar seu bebê, dar amor e lida com um pai completamente ausente e um homem que tenta comprar seu filho.

O pai de Zain e Sahar é mais violento que a mãe e parece saber se comunicar apenas dessa forma. A mãe é quem intermedia a comunicação das crianças com ele em diversos momentos. Zain tinha tudo para ser como ele ou mesmo como sua mãe, mas com sua lucidez — ou seria ingenuidade? — infantil busca ser diferente por não ver sentido em viver como seus pais vivem. Essa busca não é consciente, é apenas uma procura por um destino que seja distinto daquele que apresenta como o único possível e ele não quer aceitar como seu.

Zain julga seus pais, especialmente sua mãe, por seu nascimento e vida, mas as cenas no tribunal, na prisão e os planos aéreos que mostram a cidade evidenciam o quanto o problema é mais profundo que isso. A negligência que o atormenta não é uma questão individual ou que se relaciona somente com sua família, é parte e consequência de um todo.

O todo

O filme apresenta os inúmeros problemas sociais que se emaranham e criam um ciclo de abandono que parece não ter fim. A miséria é mais do que a simples falta de dinheiro e oportunidade e a obra de Nadine Labaki evidencia que não há soluções e nem julgamentos fáceis. Combater a pobreza envolve lidar com muito mais questões do que se imagina. Por exemplo, gênero.

A opressão feminina foi abordada pela libanesa em seu primeiro longa, “Caramelo”, e também em “E agora, aonde vamos?”, seu segundo trabalho. “Cafarnaum”, ao levantar esse tema mesmo que de forma indireta, mostra um interesse da diretora em expor as adversidades relacionadas ao ser mulher e também nos permite conectar pontos e entender que o caos exposto na narrativa é parte de um todo de opressões e violências que interagem entre si.

O fim (contém spoiler)

O filme termina com Zain sendo fotografado para fazer a sua identidade e, provocado pelo fotógrafo, ele sorri. Ele, agora, ao menos existe para o sistema. Uma vitória quase insignificante para a sua jornada, mas que ainda assim parece ser um novo começo ao olhar dele. Um fator novo que pode fazer a vida dele ser diferente do que sempre se desenhou.

Nadina Labaki dirigindo Zain Al Rafeea

Essa crítica foi originalmente publicada no Delirium Nerd, site colaborativo escrito por mulheres que trabalha com textos sobre comportamento, representação feminina e cultura, com destaque ao que é produzido por mulheres.


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Conto de Natal

Espero o ano todo pelas luzes de natal. Quando as casas, lojas e ruas começam a aparecer enfeitadas, me sinto como uma criança esperando o Papai Noel chegar com seus presentes.

Entre as tarefas do escritório, a montagem da árvore e a preparação das rabanadas, panetones e do famigerado pernil, encontro um tempo pra mim e me preparo para o dia em que me faço renascer. Hidrato o cabelo, esfolio a pele, pinto as unhas, tiro o tubinho preto do maleiro e lustro um par de sapatos de salto alto. Ao me verem tão arrumada na Ceia, acham que me enfeito toda para receber Jesus.

Enquanto espero todos chegarem, sempre com um terço nas mãos e murmurando orações quando alguém está olhando, termino a salada, afio as facas e testo o corte delas no Chester.

Sirvo as entradas logo para oferecer o jantar só após o Pai Nosso da meia noite. Belisco pouco e me recuso a beber em nome de Deus e todos riem da beata que sou. Lá pelas duas da manhã me ofereço para levar os últimos bêbados da família para casa. Quando essa via crúcis finalmente acaba chega a hora do meu feliz natal.

Sei bem onde ir. Observei as possíveis presas durante o ano todo. Escolho quem vai ser de acordo com a minha sorte. Esse ano tenho preferência por três nomes: Fernando, o galinha que abusa de meninas desacordadas, João Paulo, o marido violento da manicure da rua de cima, e Gustavo, um músico bosta que adora descer a mão em uma mulher.

A longa espera não estraga o momento. Sempre tem a surpresa de não saber quem vai ser o azarado da vez até um deles surgir no meu radar e o prazer e a adrenalina da faca rasgando a pele do sujeito.

Assim termino todos os meus anos como a heroína secreta de alguma mulher desesperada.


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Até nunca mais

Ele saiu. Não sei para onde foi. Falou que ia me matar se ficasse mais um segundo na minha frente e foi embora deixando a porta escancarada comigo ainda no chão da sala. Fiquei deitada colocando sangue pelo nariz e vi o cara do 902 esperar o elevador e seguir em frente para seu leg day sem nem olhar para o lado.

Não sei porque ele se preocupa tanto em não deixar marcas óbvias se todos os vizinhos ouvem meus gritos há anos e não fazem nada. Ninguém se importa. Algumas vezes até eu deixei de me importar. Cheguei a pensar que ele devia me matar logo para eu ficar livre dessa merda.

Ai, ai, você vai realmente insistir para eu fazer b.o.? Outro? Contra o promotor amado da cidade do interior? Contra o cara conhecido por defender criancinhas de pedófilos? Não dá. Ele é um bam-bam-bam aqui e eu só uma mulher.

Sim, tenho certeza. Não vou passar fome e nem nada. Me planejei, sabe? Desviei uma boa grana dele para isso. Se ele vier atrás de mim, não vai me achar. Nesse avião já vou entrar com outro nome e chegando na Europa terei uma nova identidade me esperando. Seu relógio tá certinho? Já são onze da noite mesmo? É, tenho que chamar um táxi agora. Vai que ele volta mais cedo hoje. Não posso arriscar ficar mais.

Vem cá, me dá um abraço, vai. Não chore. Era isso ou continuar nessa merda.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroRelógio. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Sweek, Wattpad, Tinyletter e Instagram.

Composição

Canva ❤

Era uma noite qualquer de inverno, mas começou a chover. As pessoas, então, foram para suas janelas a fim de receber as águas vindas do céu e saudar a chuva milagrosa em pleno agosto. Algumas agradeceram em voz alta ao seu deus ou deusa toda poderosa, mas a maioria celebrou em silêncio, encarando as nuvens e sentindo o cheiro de terra ou asfalto molhado.

Os pingos, rápidos e pesados, acertavam a janela empoeirada que não via água há meses e esse movimento de água, vento, vidro e gente fez parecer que havia uma melodia acontecendo ao meu redor.

Deitei na cama para ouvir esse som como se fosse música. Fiquei assim por alguns minutos, mas a tranquilidade do momento foi destruída por latidos, miados ansiosos e estrondos cada vez mais altos. Era baque que não acabava mais. As casas pareciam estar sendo apedrejadas e os vizinhos, que antes agradeciam, agora gritavam de medo.

Meus gatos, muito assustados, se refugiaram comigo na cama e juntos dormimos com esperança que dessa vez fosse apenas granizo.

Acordamos com o som do meu despertador. O céu já estava limpo e o barulho dos carros e dos ônibus preenchia nossos ouvidos. Pela janela, vi algumas árvores caídas, carros amassados e montes de pedras de gelo começando a derreter e soube que sobrevivemos a mais um pequeno apocalipse, um desses que vira capa de jornal e às vezes inspira álbum de banda experimental.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroMedo. Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Sweek, Wattpad, Tinyletter e Instagram.

Até que a morte nos separe

Canva ❤

“Até que a morte nos separe” foi a frase que finalizou os votos do meu casamento. Eu queria tirar esse trecho, por achá-lo mórbido, mas Renan fez questão de mantê-lo. “O que Deus uniu só acaba quando Ele quiser”, disse o homem que um dia amei com a anuência de um padre.

A morte veio nos separar anos depois. Renan morreu após comer camarões salteados na manteiga. Esse prato foi o que dividimos quando nos conhecemos. Nessa época, eu ainda podia me esbaldar. Em camarão ou em qualquer outra coisa. Depois, passei a ter uma alergia severa desse alimento e uma vida restrita a dois quartos, um banheiro e uma cozinha.

Renan me obrigava a preparar essa iguaria e isso era só mais uma das coisas que ele me forçava a fazer. O camarão salteado na manteiga não era um prato que ele consumia por romantismo e nostalgia, era somente parte de mais uma de suas ameaças. Enquanto comia, ele dizia: “Se eu quiser, te faço engolir esse pedaço, vadia”, e eu pensava que, um dia, ele terminaria sua refeição me vendo estrebuchar na sala de jantar até morrer.

Quando ele caiu morto, logo após o almoço, sorri pela primeira vez em anos. Não achei que esse dia chegaria. Pelo menos, não dessa forma. A morte sempre cercou nosso casamento e tudo indicava que eu iria primeiro e pelas mãos do meu então marido. Mas, entre nós, fui eu que sobrevivi. O que Deus uniu, eu separei com vidro triturado.


Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroDia. Posteriormente, ele foi eleito um dos finalistas no concurso SweekStars2018.


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