Além das notícias, muitas vezes bem superficiais, pouco conhecemos sobre as relações conflituosas entre Índia, Paquistão e a região de Caxemira. Ainda que essa animosidade entre povos, territórios e países possa colocar a vida de muitas pessoas em risco até hoje, as informações que chegam até a maioria de nós são insuficientes até mesmo para desenvolver empatia por qualquer das partes envolvidas. Tudo que acontece nessa região parece longe demais da gente. Embora nossa sociedade consiga se sensibilizar por tragédias e histórias tão distantes quanto, mas protagonizadas por outros personagens, esses geralmente europeus ou seus descendentes.
A verdade é que para sentir essa proximidade é preciso saber mais sobre o que se passa, de verdade, no cenário dessas histórias que, narradas de maneira tão distante pela mídia tradicional, parecem ser ficcionais de um jeito ruim. Falta, na maioria das vezes, conhecer o contexto e um pouco mais sobre os personagens. E, para isso acontecer, se faz necessário voltar ao passado e analisar os acontecimentos que influenciaram nos problemas atuais. Nesse caso, saber um pouco mais sobre a Partição se torna essencial, porque esse momento afetou e muito a história e o presente do sul da Ásia e tem relação direta com as consequências de anos de colonização inglesa.
A região onde se localiza hoje a Índia, o Paquistão e Bangladesh era uma só e passou 200 anos sob o domínio britânico, apesar das revoltas da população. A Partição aconteceu em 1947, após o fim da colonização, quando a Índia, maioria hindu, e o Paquistão, maioria muçulmana, se separaram e deram origem a dois países, a uma onda de violência e a um dos principais episódios de migração em massa da história mundial.
Essas novas fronteiras, que agora já possuem mais de 70 anos de existência, ainda latejam. A Partição e o que aconteceu para e a partir dela afetou histórias individuais, familiares e de comunidades inteiras e isso reverbera desde então.

“O Diário de Nisha”, obra de Veera Hiranandan, traduzida para o português por Débora Isidoro, é tão importante, ainda que seja uma obra de ficção, por contar uma história de uma família nesse contexto e possibilitar que os leitores das mais diversas idades entendam melhor esse momento histórico e as consequências dele na vida das pessoas.
Veera, que cresceu nos EUA, mas possui raízes em outras culturas, se inspirou na história da família de seu pai para escrever. Ele, com apenas nove anos, saiu de Mirpur Khas e foi para Jodhpur junto com seus familiares durante a Partição, assim como a protagonista do livro. A infância tímida e observadora e o fato de Veera ser filha de pai hindu e mãe judia, enquanto Nisha tem como pai um homem hindu e uma mãe muçulmana, são outras semelhanças entre personagem e autora.
O livro é narrado de forma epistolar por uma menina de 12 anos. As cartas que ela escreve no diário que ganhou de um empregado de sua família, que é muçulmano como sua mãe, são destinadas a ela. A mãe de Nisha, entretanto, não está viva. Ela faleceu faz tempo e as cartas que contam tanto sobre a Índia e o Paquistão são, principalmente, um meio que a personagem encontrou para se expressar e lidar com essa ausência.
Durante a trama, vemos as consequências dessa divisão de territórios e povos se infiltrarem na realidade de uma família e, nós, como leitores, acompanhamos cada momento com o coração apertado e conhecemos, pelo diário da protagonista e imaginação da autora, algo que vai muito além do conteúdo jornalístico, histórico ou mesmo enciclopédico sobre esse episódio.
A narrativa, além de um diário de uma pré-adolescente e um relato de um conflito, é também sobre a condição humana. Nisha não só passa por uma viagem migratória forçada e perigosa, ela lida com quem ela é e descobre mais sobre si, suas relações e vive um embate entre passado, representado pela mãe e suas raízes muçulmanas, e futuro, que é totalmente incerto, especialmente diante da Partição.
Nesse sentido, a culinária se transforma para a menina, tão calada e tímida, em um meio de refúgio, comunicação, conexão e manifestação de afeto. Aquela comida tão colorida, temperada e com raízes, aparentemente diversas, se transforma na voz dela perante as pessoas que a cercam. Os vários pratos que ela come e prepara nos dá meios para que imaginemos melhor o mundo que cerca Nisha e o que ela quer manter junto dela. Assim vemos chapatis, parathas, biryanis, rasmalais, sai bhajis e muitas outras iguarias comuns da região se tornarem uma espécie de novo lar e algo que representa as ligações daquela família.
Vale ressaltar que Amil, irmão da protagonista, é quase um oposto dela e ainda assim um de seus maiores companheiros. Ele não é quieto, fala bastante, não presta atenção nas aulas e prefere desenhar, enquanto ela, por outro lado, é estudiosa e fala pouquíssimo. Nisha admira seu irmão por ser quem é, ao menos na maior parte do tempo, e defende seus talentos. Amil sofre com as expectativas do pai médico, que a gente imediatamente pensa que se dá daquela forma por questões de gênero. Nesse sentido, acaba impossível não imaginar como seria a vida de Nisha se ela fosse como Amil.
“O Diário de Nisha” conta uma história que se passa sete décadas atrás, mas que contém valiosas lições para o mundo contemporâneo. Nós precisamos olhar para as migrações forçadas, para os refugiados um a um, pensar em Direitos Humanos, promover a dignidade da pessoa humana e também investigar, para evitar que aconteçam ou remediar seus efeitos, as origens desses deslocamentos, que hoje se manifestam, inclusive, por questões relacionadas ao colapso climático.
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