Lar

é uma casa muito engraçada
não tem nada meu
a não ser meu corpo
que espera
asilo

é uma casa muito engraçada
dessas que não aparentam ser
o lar de ninguém
mas muita gente mora
e não parece se sentir
morando

são casas muito engraçadas
todas essas que ficam
nos assentamentos
e com ar de provisoriedade
permanecem
enquanto nossas esperanças
nascem morrem brotam crescem são arrancadas
e doem
como doem

a casa que me cabe
está longe
vive no futuro
ficou no passado
encontra-se em território perigoso
um lugar estrangeiro
ou de ameaças, violências e memórias conhecidas

memórias que guardam o medo dos últimos dias
e o cheiro de chá, pão e fogo
que muito antes do adeus
tomava conta da cozinha
antes de qualquer bom dia

Esse poema foi inspirado nos relatos do livro “Longe de Casa” de Malala Yousafzai e escrito especialmente para o Dia Mundial do Refugiado.

O ódio que nos habita

Ilustração minha. Descrição: dois homens e uma mulher com expressão raivosa e a palavra ódio escrita de diversos tamanhos nos espaços vazios.

Sentir medo e sentir vontade de se vingar é uma reação natural. A questão é que a gente não pode requerer que o Estado se vingue por nós. Esses sentimentos não podem pautar políticas estatais e nem serem usados para justificar a barbárie.

Eu entendo o medo que nos faz sentir essa vontade de se vingar e todo esse ódio, mas ele não deve servir de argumento para política pública. Eu também sinto medo e apesar de eu não gostar disso, eu tenho que reconhecer que encontro parte desse ódio em mim também, mas ele está aqui, escondidinho pela razão.

O ódio mora dentro de nós, a gente tem é que decidir se ele vai nos guiar ou não. Escolher negar a presença dele na gente é perigoso porque é ter certeza que tudo que a gente sente não o reproduz, o que é falso. Principalmente quando vivemos num tempo que o que nos faz “cidadão de bem” é só conseguir enxergar o ódio no Outro, jamais em si mesmo.


Publicado originalmente na minha página do Facebook.