“A Casa dos Espíritos”: a ficção pode contar muito da realidade também

Foto de Leia Mulheres Divinópolis

Aprendi ainda criança a diferença de estórias e histórias. O termo que começa com vogal, considerado arcaico para muitos mesmo quando eu estudei sua existência, servia para designar as coisas folclóricas, as narrativas populares, os “causos” e contos ficcionais, enquanto a história com H e sem plural era sobre o estudo do passado, a ciência que tenta entender o hoje a partir do que um dia se deu, o estudo dos fatos reais.

Hoje usamos história para tudo, podendo colocar no plural para falar principalmente de ficção. O que me parece acertado, porque às vezes o que chamaríamos de estórias com E são narrativas essenciais para entender o que diz a história com H. Essa história que parte de documentos oficiais, das narrativas mais importantes e que às vezes vem de uma parcela mínima de uma população e é usada para falar de todo um tempo e contexto.

“A Casa dos Espíritos”, primeiro e mais famoso romance de Isabel Allende, é uma dessas obras que, apesar de ser ficcional, ajuda o leitor a entender o que se passou em um país durante parte do século XX. A partir de um drama familiar, a autora expõe o Chile como ele foi, ainda que parta de uma narrativa que vem de participantes de uma certa elite. Violências, disputas, desigualdades, são todas expostas, enquanto Isabel Allende trabalha também ideias abstratas como a força do amor, dos afetos, das trocas, da delicadeza e generosidade, sem esquecer de antagonizar tudo isso com horror do ódio e da negação da realidade.

O romance tem uma narrativa marcada por uma exposição crítica de fatos sociais e históricos do Chile, como a Ditadura Militar e o acirramento de ânimos causado pela desigualdade e a manipulação e uso do poder e do dinheiro pela elite. E, apesar do realismo cru de certas passagens, como o uso e a violência do corpo das mulheres mais pobres por parte dos patrões, há também muita magia. Essa magia que é colocada como marca da literatura latino-americana, apesar da força do cristianismo na região.

Espíritos, previsões, superstições, sabedorias ancestrais, mapas astrais, toda essa espiritualidade solta, que tenta ser livre de dogmas, aparece na obra como uma manifestação da necessidade de se manter além daquela violência terrena. No meio de tanto sangue e dor, a magia e as histórias fantásticas parecem ser uma maneira de manter algo maior vivo, algo próximo do amor. Algo que parece faltar nesse mundo que no livro se manifesta como o mais próximo do real possível e critica e expõe o que foi o Chile.

Isabel Allende nos entrega uma obra que nos faz pensar nos laços familiares, na complexidade dos afetos e como as disputas que ocorrem dentro de casa são uma manifestação do resto do mundo ao redor. Esse mundo ao redor que parece estar sempre pronto para explorar corpos ditos femininos e fazer mais uma tragédia latino-americana acontecer.

“A Casa dos Espíritos” tem uma força especial porque a mera existência dessa história ficcional serve como lembrança de um período histórico que ainda sofre com tentativas de disputas de narrativas. Esse é um livro que evoca a importância da memória, tanto no sentido privado, quanto público, da cultura e do repúdio ao autoritarismo e exploração a partir da desigualdade, inclusive a entre homens e mulheres.

Nesse sentido, esse clássico nos ajuda a pensar no passado ditatorial da América Latina e do Brasil e, infelizmente, também no que se passa hoje, em maio de 2020. Estamos cada vez mais distantes do que aprendemos a chamar de democracia. Parece ter restado apenas uma espécie de carcaça democrática que vive da continuidade daquilo que ainda não foi aparelhado e da possibilidade de denúncia midiática. O resto parece já ter ido embora ou estar em processo de.

É impossível não pensar se vamos ficar “só” nisso ou se nesse afã de entregar tudo ao estrangeiro, militares e elite iremos chegar até as torturas, ameaças e desaparecimentos de novo, além dos que acostumamos a ver dentro do regime democrático como um vestígio de nossa história. E também é impossível não pensar nas consequências que a omissão proposital a respeito do coronavírus e o negacionismo científico sobre a pandemia podem causar.

Me parece até que, mesmo sem qualquer aparição, Clara ou seus espíritos estão tentando falar com todos nós, nos colocando alertas ao que pode vir acontecer ao nos lembrar do que já aconteceu. Tudo a partir do livro, que mostra até onde a força do ódio pode chegar e nos faz refletir sobre o quanto certos governos, como o de Bolsonaro, parecem ter como premissa deixar morrer. E o quanto eles agem ativamente para fazer essa agenda acontecer além da doença que nos encerra em casa no momento. Sempre com ameaças de serem mais ativos ainda. Com ameaças que parecem um retorno ao passado que eles adoram negar enquanto o homenageiam. Um passado que é lembrado de forma literária e crítica por Isabel Allende nessa obra publicada em 1982, quando tudo isso ainda era bem recente e próximo e as narrativas estavam em plena disputa.


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Fale delas

Arquivo pessoal — foto do livro “Wonder Women” — Adquira seu exemplar aqui.

Tenho certeza que você já ouviu alguém dizer que mulheres nunca descobriram ou inventaram nada e que o sexo frágil não participou de momentos de guerra ou de desenvolvimento científico. Isso é uma mentira.

Numa tentativa de desqualificar o feminino, muitos ignoram as mulheres que, apesar da conjuntura desfavorável, conseguiram romper barreiras e ter seus feitos documentados e o contexto de subjugação patriarcal que perdura por séculos e começou a mudar de forma mais concreta somente há cerca de cem anos.

O livro “Wonder Women — 25 mulheres inovadoras, inventoras e pioneiras que fizeram a diferença”, escrito por Sam Maggs e ilustrado por Sophia Foster-Dimino, fala de mulheres que quebraram padrões e fizeram história, mas que são desconhecidas pela maioria das pessoas.

Ao narrar a trajetória de cada uma delas, Sam Maggs usa uma linguagem divertida e, com humor, faz pontuações importantes sobre a realidade da época em que cada uma viveu.

Muitas vezes a própria história contada já evidencia a desigualdade e os desafios que as mulheres enfrentavam. A luta para adentrar numa faculdade e cursar o ensino superior tangencia a história das notáveis Elizabeth e Emily Blackwell, por exemplo. O Efeito Matilda acontece quando as contribuições científicas feitas por mulheres são atribuídas a homens e isso é exposto quando se fala em Lisa Meitner, física nuclear austríaca, e Alice Ball, química e pesquisadora médica dos EUA. Outras formas de discriminação aparecem também nas histórias de espiãs, inventoras e aventureiras. Ler essa obra é se deparar com os obstáculos que mulheres foram obrigadas a lidar por séculos e com a luta de cada uma para viver como protagonista de sua própria vida diante desse contexto.

Quantas histórias de mulheres incríveis se perderam porque a sociedade machista atribuiu seus feitos a um homem? Quantas foram esquecidas devido a invisibilidade das obras de seu gênero? Quantas deixaram de acontecer por causa da exclusão das mulheres de diversos espaços? Quantas mulheres foram apagadas também por causa de sua cor? E de sua sexualidade? Inúmeras e as engrenagens que fazem a história parecer ser feita apenas por homens, brancos e héteros segue funcionando. Como podemos dificultar que esse mecanismo siga da mesma forma?

Fale das mulheres que conhecemos os nomes e das que desapareceram nos meandros da história. Fale das descobertas, invenções e conquistas que foram feitas por mãos femininas. Fale delas. Espalhe o quanto o mundo tentou apagar o que foi realizado por elas e, mesmo com tudo ao seu favor, nunca conseguiu por completo. Celebre a coragem das que abriram as portas para todas. Crie narrativas para preencher as lacunas ficcionais de séculos de obras em que mulheres eram só musas. Fazer isso não é buscar apagar as contribuições dos homens, é apenas uma tentativa de visibilizar o que deixou e ainda deixa de ser visto por causa da dominação masculina e branca.


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Onde estão as mulheres em nossas referências?

Arquivo Pessoal — foto do livro “Histórias de ninar para garotas rebeldes” — Adquira seu exemplar aqui.

Quantas mulheres nomeiam ruas, parques, avenidas, praças e viadutos na sua cidade? Quantos desses nomes você consegue lembrar sem esforço?

Moro em Belo Horizonte há alguns anos e consegui pensar na Avenida Tereza Cristina, na rua Stela de Souza, no viaduto Henriqueta Lisboa e em bairros com nomes de mulheres da religião, como Santa Tereza e Santa Efigênia. Todos os primeiros nomes que vieram na minha mente eram masculinos, como Afonso Pena, Bias Fortes, Augusto de Lima, Cristiano Machado, Silviano Brandão e Raul Soares. Só depois me lembrei dos bairros Jaqueline, Maria Helena e Juliana.

A dificuldade que tive de lembrar nomes de mulheres ao pensar na ruas, avenidas e viadutos da minha cidade não se deu por eu conhecer pouco daqui ou por mero esquecimento, aconteceu porque elas são minoria. Apenas 16% das ruas da cidade de São Paulo têm nomes de mulheres. Uma pesquisa feita na Espanha em 2007 apontou que apenas 5% das ruas de lá tinham nomes femininos. Já na França, um levantamento feito pelo grupo feminista “Osez le Féminisme!” apontou que apenas 2,6% das ruas parisienses homenageavam mulheres notáveis.

A matéria “Nomes de rua dizem mais sobre o Brasil que você pensa” do Nexo afirma que nas rodovias, um tipo de logradouro que exige bem mais investimento, os nomes masculinos dominam com 98% e que ao analisar os trinta nomes femininos de ruas mais populares do Brasil, somente quatro não eram de religiosas. Já entre os trinta nomes populares masculinos, dezesseis não faziam referência à religião.

Os nomes dos logradouros são uma amostra do apagamento das mulheres como referências, das relações de poder e das forças envolvidas nas decisões políticas. Além da ausência de mulheres e pessoas negras, no geral, vemos também a manutenção de nomes de bandeirantes, que dizimaram indígenas, e de torturadores e ditadores.

Os nomes presentes no espaço público são, em peso, masculinos. Percebe-se como eles são escolhidos de acordo com uma narrativa que privilegia a elite, composta principalmente por homens brancos, e seus ideais da época. Santas, mães e esposas são bem presentes entre as poucas homenageadas por representarem o ideal de mulher que eles apoiam, essa mulher que praticamente só se pode ser branca. Nossas referências não são necessariamente nomes de ruas, mas elas são parte de um todo machista, racista e elitista. Um todo que nos influencia. Afinal, quem são as nossas referências?

Gandhi, Nelson Mandela, John Lennon, Einstein, Tiradentes, Che Guevara, Jesus, Marx, Zumbi e diversos outros nomes masculinos são lembrados toda vez que fazem essa pergunta. Quando lembram de mulheres, falam a maioria das vezes de santas, mães e avós. As nossas referências podem não ser as mesmas dos nomes das ruas, mas ainda reproduzem a mesma lógica de que o espaço público é deles.

A maioria das pessoas cresce sem pensar que a ausência de nomes de mulheres na história é fruto da falta de oportunidades dadas a elas e da invisibilidade dada pela história aos seus feitos. Apesar do machismo — e o racismo e as questões de classe — terem negado educação e acesso para tantas, ainda assim muitas conseguiram ser escritoras, artistas, cientistas, fazer descobertas e lutar por melhorias. Principalmente no século XIX e XX, mas não só.

Conhecer e divulgar nomes de mulheres que fizeram parte da história, mas que são constantemente esquecidas, é importante porque as crianças que crescem sem essas referências acabam acreditando que o papel da mulher é o de subalterna, especialmente no caso de mulheres racialmente oprimidas que continuam sendo referenciadas na nossa cultura dessa maneira mesmo quando se passa a discutir temas como mulheres nos negócios com mais frequência. Que mulheres são essas englobadas por esse termo, né? Isso prejudica a autoestima das meninas e faz ambos os gêneros acreditarem que elas são menos capazes que eles.

Se os nomes que as crianças conhecem como inteligentes, marcantes, desbravadores e criadores são só de homens, as meninas nunca acharão que são boas o suficiente, enquanto os meninos seguirão acreditando que eles podem chegar lá. Se elas recebem menos estímulos que meninos para conhecerem coisas novas e para determinadas áreas, elas são afastadas dessas possibilidades.

Uma pesquisa, publicada na Science, afirma que meninas, a partir dos seis anos, têm dificuldade de acreditar que são brilhantes, apesar de achar isso dos meninos. Outra pesquisa apresenta a informação de que professores dão notas melhores para meninas se eles não sabem que elas são meninas. Ambos estudos mostram como os estereótipos de gênero influenciam na vida e na autoestima delas. Lembrando aqui que há pesquisas que mostram que estereótipos de raça também afetam a maneira que os professores olham para crianças: Crianças negras são mais vistas como “bravas” do que crianças brancas e esse estereótipo atinge mais meninas negras que meninos negros.

Já na infância encontramos obstáculos específicos do nosso gênero e somos, desde muito novas, ensinadas a duvidar de nós mesmas. Uma dúvida que carrega em seu cerne o medo de falhar e acabar servindo como uma prova de que nosso gênero não é bom em algo.

Com a internet e tantas mulheres falando sobre representatividade, autoestima e machismo, surgiu uma necessidade e curiosidade coletiva por conhecer mais histórias de mulheres. As italianas Elena Favilli e Francesca Cavallo perceberam isso e reuniram no livro “Histórias de ninar para garotas rebeldes” uma centena de nomes admiráveis de diversas áreas de atuação.

A obra foi idealizada por elas, mas só virou realidade por causa de uma campanha de financiamento coletivo. “Histórias de ninar para garotas rebeldes” foi o livro que arrecadou o maior valor na história do financiamento coletivo e contou com apoiadores de mais de 70 países. Esse recorde mostra que as pessoas têm percebido a importância de tirar a cortina da invisibilidade da história das mulheres e que muitos sentem falta de conhecer mulheres incríveis. O que é incrível, mas também nos faz pensar em como essa pauta pode ser facilmente capturada pelo capitalismo e por grupos com interesses antifeministas, principalmente a partir das escolhas de homenageadas.

Rainhas, atletas, cientistas, ativistas, escritoras, artistas e até piratas e espiãs recheiam as páginas da obra. Cada nome tem sua história e feitos contada começando com um “era uma vez”, num tom que aproxima o público infantil. Além dos textos, há também a participação de ilustradoras de diversos países.

Um livro encantador que, na minha opinião, peca no título. As histórias contidas nele servem para ninar crianças rebeldes, não só meninas. Sei que meninas são as maiores interessadas numa obra que fortalece a autoestima delas e também imagino que a intenção das autoras é que a obra seja para todas as crianças. Acredito, inclusive, até que há muitos meninos tendo contato com o livro por iniciativa de seus pais, porém, um título como esse reforça a ideia de que há coisas para meninas e coisas para meninos e que conhecer a história de mulheres notáveis não é algo importante para eles, sendo que é essencial que eles também tenham referências femininas para crescerem vendo mulheres como iguais.


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Ainda bem que eu estava de botas

Fotografia editada de uma ilustração minha. Arquivo pessoal.

Morar no centro de uma cidade grande é lidar diariamente com a possibilidade de encontrar bichos como ratos, baratas e pombos de tamanhos irreais e, ao interagir com eles, viver uma infinidade de histórias que unem algumas características da ficção científica, do gênero terror e, vamos ser sinceros, da comédia também.

Uma dessas histórias aconteceu em algum dia chuvoso há cerca de dois anos atrás. Eu descia a Guajajaras com rapidez, porque temia que aquela chuvinha aumentasse e a sombrinha meio quebrada que me protegia não fosse o suficiente. Enquanto eu andava, eu ouvi um “crec” ao pisar. Olhei para baixo esperando ver a haste de um óculos quebrado ou algo assim, mas eu encarei algo que parecia mais com um pesadelo.

No “crec”, eu me percebi em cima de algo feito de grades, provavelmente um bueiro, e baratinhas bem pequenas saíam desesperadas de dentro dele. Na pisada, eu matei umas duas, mas elas eram muitas e com a água da chuva entrando pelas grades, elas trepavam no primeiro lugar que viam, que a partir de agora eram minhas pernas, felizmente protegidas por uma legging. Elas não paravam de subir e a única reação possível foi correr balançando as pernas e pisando com força até meu prédio. Ao chegar, falei para o porteiro “Ainda tem barata em mim?” Não tinha. Fiquei aliviada por estar de botas e segui para o elevador.

O outro caso que eu vou contar mostra que às vezes as aparências enganam, especialmente quando está chovendo, seus óculos estão fracos e você tem um coração predisposto a amar bichos.

Mais uma vez chovia e eu vi um pischer gordo correndo perto dos carros na São Paulo. Achei que podia ser um animal perdido e quis resgatá-lo e fui atrás dele até ele entrar debaixo de um carro parado. Abaixei chamando o bichinho com uma voz macia, tentando acalmá-lo, e me deparei com a maior ratazana que já vi na vida fazendo um barulhinho nada amigável.

O tamanho dela era inconcebível! Só podia ser fruto de mutações por contato com algum tipo de material químico que foi jogado fora de forma irresponsável ou resultado de testes genéticos de laboratório. Qualquer outra opção não tem como fazer sentido.

Me assustei, dei uns passos para trás e me afastei, enquanto via uma mulher, que com certeza enxergava melhor que eu, rir porque ela sempre soube que o bichinho que atraiu minha atenção era uma ratazana de tamanho inacreditável.

A grande lição que podemos tirar disso tudo é que não importa se o mineiro nasceu na zona rural ou urbana, se ele mora numa cidade que só tem uma igrejinha e uma praça ou na capital, o que faz um bom mineiro é a capacidade de fazer qualquer coisa virar um “causo”, inclusive encontros com esses bichos de cidade grande.


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