a cortina entreaberta deixa entrar no quarto um estilhaço da golden hour que acontece lá fora enquanto eu durmo usando uma camisola que me deixa escapar um pedaço do peito
a luz solar alaranjada invasora da minha janela ultrapassa as fronteiras da roupa de cama e ocupa o outro lado da pálpebra desmanchando tudo que se conhecia até então
duvido dos meus contornos da largura do meu pulso do tamanho dos meus braços da área das minhas coxas de como ocupo a cama me espalho pela casa e pareço refletida no espelho do banheiro
o desaparecimento parece inevitável uma mulher escondida se dilui em seus pertences e se aproxima cada vez mais de uma coberta felpuda e confortável
a manada percorre tempo território espaço e numa lógica animal visita vilas cidades condados atravessa rios trilha estradas ocupa fazendas desviando de drones que tentam fazer o bando voltar pra casa sem nem perguntar o que eles acham disso
rota migratória retiro espiritual desejo por aventura simples teimosia fuga
não importa o nome
um cara branco vai escrever um texto no LinkedIn sobre a força de vontade desses bichos enormes e motivados
um jornalista brasileiro vai publicar a tradução de uma matéria gringa sobre esse intrigante mistério animal
e eu eu vou fazer um poema sobre a memória dos elefantes
se você gostou desse poema inédito, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium, Facebook, Twitter, Tinyletter e Instagram.
Acervo pessoal – “Paraquedas” – colagem analógica feita por mim
elas são trepidantes vibram com o movimento nada retilíneo nem uniforme do ar e da saliva nas cordas vocais
em um estalo da língua elas se espatifam no bafo produzindo um barulho baixo médio alto altíssimo dependendo da vizinhança nem os cães com seus ouvidos biônicos sensíveis a qualquer mini-estrondo conseguem escutar
elas saem da boca como se fossem cogumelos cuspidos pulando de finquete numa piscina metade cheia metade vazia
depois do pulo quem manda é atmosfera ela pode destroçar um bom paraquedas derramando pedaços pela casa inteira ou fazer planar uma maçã contra a gravidade
a palavra é sempre um risco
se você gostou desse poema inédito, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium, Facebook, Twitter, Tinyletter e Instagram.
esse post foi feito em comemoração ao Dia Mundial da Poesia.no Instagram você pode acessar uma versão mais visual desse trabalho.
Colagem analógica por Thaís Campolina – Acervo Pessoal
ninguém queimou livro nenhum rasgaram alguns poucos eram sobre direitos humanos e foi na surdina no silêncio no conforto de uma biblioteca
os livros ocupavam sua morada prateleira de direito provavelmente em ordem alfabética para serem desordenados pelo leitor que não respeita as regras e devolve para prateleira o que lê na mesa
dessa vez a desordem que veio não foi um grifo ansioso feito por uma lapiseira foram páginas e mais páginas rasgadas inclusive a que tinha uma foto que dizia
Imagem do quadro “Three figures” após ataque do segurança entediado
três figuras sem rosto encaram um homem em seu primeiro dia de trabalho
o homem tem rosto e parece entediado
nunca sabe para onde as três figuras olham
parte do trabalho de um profissional da segurança da arte envolve medir a distância das mãos das bolsas e dos olhos dos planos, ele diria se quisesse se justificar para o fantasma de Anna Leporskaya
mas ele não diz nada
mesmo demitido e ameaçado de ter que quitar uma multa e ainda pegar três meses de cadeia na Rússia
ele apenas não diz nada
exatamente como as três figuras sem rosto que ganharam temporariamente olhos continuam fazendo mesmo ostentando essas novíssimas bolinhas de gude transparentes na cara.
essas bolinhas discretas feitas sob medida por um estranho homem de 60 anos.
esses olhos-bolinha desenhados pelas mãos criativas de um homem que se recusa a se explicar.
esse homem que andou por todo um museu empunhando uma perigosa caneta esferográfica.
esse criminoso que está sempre pronto para rabiscar olhinhos e carinhas felizes onde conseguir chegar com sua BIC ou semelhante russa
um homem que jura não ter nada a dizer
talvez porque no lugar de rabiscar bocas ele escolheu abrir olhos
Não me lembro direito da primeira vez que li a frase “Sexy sem ser vulgar”, mas de quando comecei a ironizar e responder, ao menos mentalmente, a tudo com um simples “Vulgar sem ser sexy”, eu me recordo muito bem.
“Vulgar sem ser sexy” se tornou uma espécie de grito de guerra interno meu, a frase conforto que eu pensava toda vez que sentia um incômodo com o que me era empurrado como obrigação feminina e sonhava com as ideias de liberdade e intimidade.
O que chamam de vulgaridade sempre me pareceu muito mais humano do que o elegante, o culto, o feminino ideal. Mais verdadeiro, algo da essência humana, o segredo que todos realmente dividem, o de sermos bichos (ou que a Sandy também caga).
Eu amei, porque esse é um livro que mostra e explora a beleza e o horror de sermos o que somos, de não nos levarmos tão a sério e da intimidade das portas abertas. Mila é uma mulher que tem como poética o humor, o comum, a banalidade, a risada rasgada e a boa e velha cachorrada.
Terminei a leitura lembrando que as primeiras mensagens que eu troquei com a poeta na rede social Instagram foram sobre candidíase e me senti ainda mais próxima desse livro que conforta e faz rir todo mundo que usa calcinhas furadas, já tomou dipirona vencida, pensa na decomposição da barata que mata e mija demais por prezar sempre por boa hidratação (e Coca-Cola).
Esse texto foi publicado originalmente em meu perfil do Instagram durante um especial chamado #domingodabanalidade. Se você gostou, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium, Facebook, Twitter, Tinyletter, Apoia.se e Instagram. Compre o livro diretamente com a autora ou na editora Urutau.
No mesmo mês que “Poetas negras brasileiras: uma antologia” chegou em minha casa, o livro “A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios” da Gloria Anzaldúa veio parar em minhas nãos. A antologia foi lida primeiro, a partir do acaso que, com ajuda dos Correios, impôs a esses dois livros diferentes datas de chegada, mas Gloria Anzaldúa já estava ali comigo, acompanhando minha incursão nos vários universos poéticos catalogados por esse livro de poemas que, do miolo até a capa, reafirma a existência e a heterogeneidade da escrita feminina e negra e brasileira, essa escrita feita fora do que chamam de Norte do planeta por quem precisa colocar sua voz no mundo.
De Gloria Anzaldúa conheço pouco até então, apenas o texto “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, lido antes e depois da chegada desse pequeno tijolinho roxo editado pela A Bolha e traduzido pela poeta Tatiana Nascimento, e algumas outras citações esparsas, mas isso foi mais do que o suficiente para eu costurar essas duas leituras que agora me parecem tão complementares.
“Poetas negras brasileiras” tem como organizadora Jarid Arraes, escritora que desde a sua origem independente atua evidenciando as desigualdades do mercado editorial e do mundo da escrita em seu sentido mais amplo. Com esse livro, que une estreantes e também nomes consolidados, a editora do selo Ferina desconstrói estereótipos sobre a escrita feminina e negra e indica novos caminhos para quem escreve e quem lê, enquanto apresenta o livro e a palavra como ferramentas de expressão cultural e individual e também de luta e denúncia. Semelhança e diferença coexistem na obra como uma bandeira literária que aponta o óbvio ao leitor, ao crítico e à sociedade: a literatura não é feita só por homens brancos e a ideia de condição humana e universalidade não vem somente dessa perspectiva, ela vem das múltiplas possibilidades de encontro da alteridade com a identidade.
Gloria, em seu ensaio mais famoso, diz:
“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Para ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.”
E continua:
“O ato de escrever é um ato de fazer alma, uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu, aquele nós mulheres de cor pensamos ser “a outra” – a escura, a feminina.”
E depois, seguindo esse raciocínio, afirma:
“A escrita é uma ferramenta para adentrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver”.
Por mais diversos em temática, estilo e até estrutura que sejam os poemas das autoras negras brasileiras catalogados nessa antologia, todos eles me parecem ter sido escritos por essa força-motriz exposta pela Gloria nesses destaques. A escrita para grupos oprimidos é marcada pelo desejo de subjetivação perante o mundo que prega o individualismo homogêneo, enquanto nega a subjetividade de certos corpos, e é por isso que a publicação de obras como essa antologia importam tanto e tem dimensões políticas que mesclam o individual e o coletivo.
Ancestralidade e filiação, afetos e sexualidade, identidade, racismo, trajetória, dúvidas, amor romântico e a falta dele e até mesmo as angústias contemporâneas que se relacionam com as redes sociais são alguns dos assuntos trabalhados por algumas das mais de 70 poetas negras que fazem parte desse trabalho. Vale destacar que a curadoria de Jarid reuniu autoras de 18 anos a 70 anos e tentou abarcar todo o Brasil, com nomes oriundos inclusive de cidades do interior, mas infelizmente falhando em não conter representantes das regiões Sul e Norte do país*.
Com poemas de nomes como Conceição Evaristo, Bianca Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Duarte, Lubi Prates, Mika Andrade, Nina Rizzi, Tatiana Nascimento, Cecília Floresta e o da própria organizadora, a obra surge já mostrando que o enorme talento dessas poetas negras não é exceção. Entre as poetas que eu ainda não conhecia, destaco o que vi de Thamires P., Silvia Barros, Pétala Souza, Nicole de Antunes, Mayara Ísis, Marina Farias, Mariana Madelinn, Maria Vitória, Luna Vitrolira, Juliana Berlim, Jhen Fontinelli, Gessica Borges, Eliza Araújo, Débora Gil Pantaleão, Kiusam de Oliveira, Jovina Souza e Andrezza Xavier no livro. Há um mar de mulheres negras fazendo literatura em terra firme mesmo quando o mundo, na prática, ainda insiste em dizer que esse não é um lugar para elas.
*O livro foi construído a partir de uma chamada nas redes sociais e, apesar do esforço da organizadora em mudar isso, a ausência de autoras dessas regiões provavelmente veio da limitação desse formato.
ouço pombos e passarinhos gatos caçadores na janela cachorros ansiosos com o barulho de calçados familiares subindo as escadas duas obras ou mais na vizinhança um despertador que se esgoela
bicicletas carros ônibus dividem espaço com pessoas e carroças e sacolinhas de supermercado apinhadas de lixo
a música parece a de sempre mas é diferente alguém matou os galos e as galinhas que piavam e cantavam a alguns metros daqui em plena capital mineira
***
somos animais que migram no verão
já tentei meditação yoga corrida krav magá caminhada ansiolítico terapia chás mas é só olhar para o mar que faço as pazes comigo
o problema é moro em BH
(me desculpem as capivaras o jacaré da pampulha cada dia mais gordo e tranquilo a lagoa não é suficiente: serve melhor aos meio-maratonistas)
***
inventário cidade nova
cinco marcas de ração coleiras brinquedos pipicat caixas de areia casinhas de cachorro peixes realistas com catnip dentro sachês e patês para pets linhas para costura agulhas alguma lã post its canetas lápis de cor giz de cera canetinhas vários tipos de papel pincéis kit aquarela tinta guache cola tesoura sem ponta cartolina caderno pastinhas coloridas pastas sanfonadas ecobags agenda planner papel de presente porta retrato squeeze enfeites de biscuit plantas de plástico canecas variadas dominó baralho jogo das varetas uno pilhas serviço de xerox impressão e scanner. quantas histórias mais guarda uma lojinha de bairro?
uma manchete sobre uma ameaça de golpe paira na tela lado a lado com segredos e dicas para:
a) comprar o melhor celular
b) investir o auxílio emergencial
c) economizar dinheiro
d) melhorar a nota no Serasa
e) se tornar um empreendedor
f) dormir bem
g) cortar carboidratos
h) emagrecer
i) se manter produtivo
não tem nada sobre ganhar dinheiro dormindo
ninguém acredita mais nisso
mas ainda tem quem creia em cloroquina cápsulas de vitamina D anitta
e em um certo Messias
no pé da página
as notícias dizem:
bilionários cada vez mais ricos
extrema pobreza em ascensão
violência doméstica também
clique aqui se você está ciente e não quer continuar
Esse poema foi selecionado para antologia antifascista da Hecatombe, selo da Urutau. Para saber mais sobre a publicação que vai vir, convido todos a acompanharem as redes sociais da editora.