Colagem analógica triplicada e editada no Canva por Thaís Campolina – Acervo Pessoal
à toa e preocupada exploro minha casa como se fossem vivos os móveis e as paredes
um demônio me provoca ⠀ ⠀ ⠀ ⠀ ⠀⠀⠀ ⠀ ⠀ e eu respondo oi entregando que estou perto da janela da cozinha cinco segundos depois curiosa e ávida por um pão olho direto para o inferno esperando a vertigem desse sumidouro
a oxigenação do cérebro continua a mesma a pulsação também meus cotovelos dobrados esbarram na toalha de mesa me fazendo sentir na pele o carinho de um mundo de farelos esquecidos
nessa voragem não há tontura nem taquicardia eu sei que estou onde deveria estar
usando bons binóculos frente ao espelho do banheiro consigo olhar de volta e me ver a qualquer tempo caçando no escuro mais alimento
o abismo sou eu e ai de mim se não continuar a nadar
Colagem de autoria de Thaís Campolina — Acervo Pessoal
PRÊAMBULO
esse poema entra em vigor na data de sua publicação ele não diz nada que você não saiba mas estabelece prazos novos procedimentos especiais e tira o conforto criminoso de um ou outro homem que vê essas palavras reunidas e só se assusta quando nota um nome feminino que ousa publicar poemas-lei
CAPÍTULO I
saiu um poema no diário oficial ele mesmo se chama de porcaria
CAPÍTULO II
daqui para trás somente leis que criam direitos para o povo são permitidas
de hoje em diante tudo será diferente depois não diga que não leu as letras miúdas
CAPÍTULO III
morrer será proibido viver mais ainda eu não faço ideia de onde você vai enterrar seu pai
talvez no seu quintal ou no lote da esquina
aqui não aqui não pode já tem morto demais o cemitério está lotado todo dia morre vinte trinta cinquenta e cinco e nosso espaço comporta nem dez
CAPÍTULO IV
já notou como a estrutura de uma lei pode ser subvertida
pode virar até arte um poema moderno ruim um papo sobre escrita não criativa uma colagem de palavras muito consultadas em qualquer dicionário
um poema-lei todo dividido em artigos longos que não dizem nada demais e incisos que fingem trazer [concretude] ao que é feito para ser ~abstrato~
DISPOSIÇÕES GERAIS
a lei é metafísica o poema também o concreto e o real dependem de um encaixe especulativo nada perfeito
o que dizem estrofes & versos parágrafos & incisos e muitas alíneas sobre fatos & verdades que são só suas?
Não me lembro direito da primeira vez que li a frase “Sexy sem ser vulgar”, mas de quando comecei a ironizar e responder, ao menos mentalmente, a tudo com um simples “Vulgar sem ser sexy”, eu me recordo muito bem.
“Vulgar sem ser sexy” se tornou uma espécie de grito de guerra interno meu, a frase conforto que eu pensava toda vez que sentia um incômodo com o que me era empurrado como obrigação feminina e sonhava com as ideias de liberdade e intimidade.
O que chamam de vulgaridade sempre me pareceu muito mais humano do que o elegante, o culto, o feminino ideal. Mais verdadeiro, algo da essência humana, o segredo que todos realmente dividem, o de sermos bichos (ou que a Sandy também caga).
Eu amei, porque esse é um livro que mostra e explora a beleza e o horror de sermos o que somos, de não nos levarmos tão a sério e da intimidade das portas abertas. Mila é uma mulher que tem como poética o humor, o comum, a banalidade, a risada rasgada e a boa e velha cachorrada.
Terminei a leitura lembrando que as primeiras mensagens que eu troquei com a poeta na rede social Instagram foram sobre candidíase e me senti ainda mais próxima desse livro que conforta e faz rir todo mundo que usa calcinhas furadas, já tomou dipirona vencida, pensa na decomposição da barata que mata e mija demais por prezar sempre por boa hidratação (e Coca-Cola).
Esse texto foi publicado originalmente em meu perfil do Instagram durante um especial chamado #domingodabanalidade. Se você gostou, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe também pelo Medium, Facebook, Twitter, Tinyletter, Apoia.se e Instagram. Compre o livro diretamente com a autora ou na editora Urutau.
No mesmo mês que “Poetas negras brasileiras: uma antologia” chegou em minha casa, o livro “A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios” da Gloria Anzaldúa veio parar em minhas nãos. A antologia foi lida primeiro, a partir do acaso que, com ajuda dos Correios, impôs a esses dois livros diferentes datas de chegada, mas Gloria Anzaldúa já estava ali comigo, acompanhando minha incursão nos vários universos poéticos catalogados por esse livro de poemas que, do miolo até a capa, reafirma a existência e a heterogeneidade da escrita feminina e negra e brasileira, essa escrita feita fora do que chamam de Norte do planeta por quem precisa colocar sua voz no mundo.
De Gloria Anzaldúa conheço pouco até então, apenas o texto “Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, lido antes e depois da chegada desse pequeno tijolinho roxo editado pela A Bolha e traduzido pela poeta Tatiana Nascimento, e algumas outras citações esparsas, mas isso foi mais do que o suficiente para eu costurar essas duas leituras que agora me parecem tão complementares.
“Poetas negras brasileiras” tem como organizadora Jarid Arraes, escritora que desde a sua origem independente atua evidenciando as desigualdades do mercado editorial e do mundo da escrita em seu sentido mais amplo. Com esse livro, que une estreantes e também nomes consolidados, a editora do selo Ferina desconstrói estereótipos sobre a escrita feminina e negra e indica novos caminhos para quem escreve e quem lê, enquanto apresenta o livro e a palavra como ferramentas de expressão cultural e individual e também de luta e denúncia. Semelhança e diferença coexistem na obra como uma bandeira literária que aponta o óbvio ao leitor, ao crítico e à sociedade: a literatura não é feita só por homens brancos e a ideia de condição humana e universalidade não vem somente dessa perspectiva, ela vem das múltiplas possibilidades de encontro da alteridade com a identidade.
Gloria, em seu ensaio mais famoso, diz:
“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Para ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.”
E continua:
“O ato de escrever é um ato de fazer alma, uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu, aquele nós mulheres de cor pensamos ser “a outra” – a escura, a feminina.”
E depois, seguindo esse raciocínio, afirma:
“A escrita é uma ferramenta para adentrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver”.
Por mais diversos em temática, estilo e até estrutura que sejam os poemas das autoras negras brasileiras catalogados nessa antologia, todos eles me parecem ter sido escritos por essa força-motriz exposta pela Gloria nesses destaques. A escrita para grupos oprimidos é marcada pelo desejo de subjetivação perante o mundo que prega o individualismo homogêneo, enquanto nega a subjetividade de certos corpos, e é por isso que a publicação de obras como essa antologia importam tanto e tem dimensões políticas que mesclam o individual e o coletivo.
Ancestralidade e filiação, afetos e sexualidade, identidade, racismo, trajetória, dúvidas, amor romântico e a falta dele e até mesmo as angústias contemporâneas que se relacionam com as redes sociais são alguns dos assuntos trabalhados por algumas das mais de 70 poetas negras que fazem parte desse trabalho. Vale destacar que a curadoria de Jarid reuniu autoras de 18 anos a 70 anos e tentou abarcar todo o Brasil, com nomes oriundos inclusive de cidades do interior, mas infelizmente falhando em não conter representantes das regiões Sul e Norte do país*.
Com poemas de nomes como Conceição Evaristo, Bianca Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Duarte, Lubi Prates, Mika Andrade, Nina Rizzi, Tatiana Nascimento, Cecília Floresta e o da própria organizadora, a obra surge já mostrando que o enorme talento dessas poetas negras não é exceção. Entre as poetas que eu ainda não conhecia, destaco o que vi de Thamires P., Silvia Barros, Pétala Souza, Nicole de Antunes, Mayara Ísis, Marina Farias, Mariana Madelinn, Maria Vitória, Luna Vitrolira, Juliana Berlim, Jhen Fontinelli, Gessica Borges, Eliza Araújo, Débora Gil Pantaleão, Kiusam de Oliveira, Jovina Souza e Andrezza Xavier no livro. Há um mar de mulheres negras fazendo literatura em terra firme mesmo quando o mundo, na prática, ainda insiste em dizer que esse não é um lugar para elas.
*O livro foi construído a partir de uma chamada nas redes sociais e, apesar do esforço da organizadora em mudar isso, a ausência de autoras dessas regiões provavelmente veio da limitação desse formato.