Mulheres negras escrevem o mundo

No mesmo mês que “Poetas negras brasileiras: uma antologia” chegou em minha casa, o livro “A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios” da Gloria Anzaldúa veio parar em minhas nãos. A antologia foi lida primeiro, a partir do acaso que, com ajuda dos Correios, impôs a esses dois livros diferentes datas de chegada, mas Gloria Anzaldúa já estava ali comigo, acompanhando minha incursão nos vários universos poéticos catalogados por esse livro de poemas que, do miolo até a capa, reafirma a existência e a heterogeneidade da escrita feminina e negra e brasileira, essa escrita feita fora do que chamam de Norte do planeta por quem precisa colocar sua voz no mundo.

De Gloria Anzaldúa conheço pouco até então, apenas o texto Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”, lido antes e depois da chegada desse pequeno tijolinho roxo editado pela A Bolha e traduzido pela poeta Tatiana Nascimento, e algumas outras citações esparsas, mas isso foi mais do que o suficiente para eu costurar essas duas leituras que agora me parecem tão complementares.

“Poetas negras brasileiras” tem como organizadora Jarid Arraes, escritora que desde a sua origem independente atua evidenciando as desigualdades do mercado editorial e do mundo da escrita em seu sentido mais amplo. Com esse livro, que une estreantes e também nomes consolidados, a editora do selo Ferina desconstrói estereótipos sobre a escrita feminina e negra e indica novos caminhos para quem escreve e quem lê, enquanto apresenta o livro e a palavra como ferramentas de expressão cultural e individual e também de luta e denúncia. Semelhança e diferença coexistem na obra como uma bandeira literária que aponta o óbvio ao leitor, ao crítico e à sociedade: a literatura não é feita só por homens brancos e a ideia de condição humana e universalidade não vem somente dessa perspectiva, ela vem das múltiplas possibilidades de encontro da alteridade com a identidade.

Gloria, em seu ensaio mais famoso, diz:

“Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva dessa complacência que temo. Porque não tenho escolha. Porque preciso manter vivos o espírito de minha revolta e a mim mesma. Porque o mundo que crio na escrita compensa aquilo que o mundo real não me dá. Ao escrever, eu organizo o mundo, ponho nele uma alça em que posso me segurar. Eu escrevo porque a vida não satisfaz meus apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que outros apagam quando eu falo, pra reescrever as histórias mal-escritas que eles contaram de mim, de você. Para ficar mais íntima comigo mesma e contigo. Pra me descobrir, pra me preservar, pra me fazer, pra ter autonomia.”

E continua:

“O ato de escrever é um ato de fazer alma, uma alquimia. É uma jornada em busca do eu, do cerne do eu, aquele nós mulheres de cor pensamos ser “a outra” – a escura, a feminina.”

E depois, seguindo esse raciocínio, afirma:

“A escrita é uma ferramenta para adentrar esse mistério, mas também nos protege, nos dá uma margem de distância, nos ajuda a sobreviver”.

Por mais diversos em temática, estilo e até estrutura que sejam os poemas das autoras negras brasileiras catalogados nessa antologia, todos eles me parecem ter sido escritos por essa força-motriz exposta pela Gloria nesses destaques. A escrita para grupos oprimidos é marcada pelo desejo de subjetivação perante o mundo que prega o individualismo homogêneo, enquanto nega a subjetividade de certos corpos, e é por isso que a publicação de obras como essa antologia importam tanto e tem dimensões políticas que mesclam o individual e o coletivo.

Ancestralidade e filiação, afetos e sexualidade, identidade, racismo, trajetória, dúvidas, amor romântico e a falta dele e até mesmo as angústias contemporâneas que se relacionam com as redes sociais são alguns dos assuntos trabalhados por algumas das mais de 70 poetas negras que fazem parte desse trabalho. Vale destacar que a curadoria de Jarid reuniu autoras de 18 anos a 70 anos e tentou abarcar todo o Brasil, com nomes oriundos inclusive de cidades do interior, mas infelizmente falhando em não conter representantes das regiões Sul e Norte do país*.

Com poemas de nomes como Conceição Evaristo, Bianca Gonçalves, Cristiane Sobral, Mel Duarte, Lubi Prates, Mika Andrade, Nina Rizzi, Tatiana Nascimento, Cecília Floresta e o da própria organizadora, a obra surge já mostrando que o enorme talento dessas poetas negras não é exceção. Entre as poetas que eu ainda não conhecia, destaco o que vi de Thamires P., Silvia Barros, Pétala Souza, Nicole de Antunes, Mayara Ísis, Marina Farias, Mariana Madelinn, Maria Vitória, Luna Vitrolira, Juliana Berlim, Jhen Fontinelli, Gessica Borges, Eliza Araújo, Débora Gil Pantaleão, Kiusam de Oliveira, Jovina Souza e Andrezza Xavier no livro. Há um mar de mulheres negras fazendo literatura em terra firme mesmo quando o mundo, na prática, ainda insiste em dizer que esse não é um lugar para elas.

*O livro foi construído a partir de uma chamada nas redes sociais e, apesar do esforço da organizadora em mudar isso, a ausência de autoras dessas regiões provavelmente veio da limitação desse formato.

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“Fique comigo” e a dor de uma mulher nigeriana

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Chinua Achebe é considerado um dos maiores nomes da literatura do século XX. Sua trajetória como romancista, poeta, crítico literário e intelectual o tornou conhecido no mundo inteiro, inclusive por sua atuação como mediador de conflitos políticos de sua região. Seu trabalho como escritor, além de inspiração, acabou fazendo o mercado literário tão europeizado e estadunidense se abrir um pouco para a literatura produzida na Nigéria.

Quase 85 anos depois do nascimento de Chinua e 28 anos depois de Wole Soyinka ganhar Nobel de Literatura em 1986, Chimamanda Ngozi Adichie ganhou o mundo após ter um trecho de uma de suas palestras citado numa música da Beyoncé. Com a Nigéria de novo sendo observada como um ótimo berço literário, escritoras como Buchi Emecheta, Sefi Atta e Ayòbámi Adébáyò também conseguiram um espaço internacional sendo publicadas em vários outros países. Dentre as várias obras recentes que tornaram a Nigéria conhecida entre os fãs brasileiros de literatura, “Fique Comigo”, da nigeriana Ayòbámi Adébáyò, é um destaque.

Nesse romance, o leitor acompanha Yejide em sua jornada para se tornar mãe e todas as questões familiares, pessoais e culturais que afetam suas decisões, sentimentos e reflexões a respeito. A narração do livro é dividida entre ela, a protagonista, e Akin, seu marido, ambos contando a história do casamento deles, a partir de suas impressões, segredos, arrependimentos, sofrimentos e enganos.

Além dos assuntos da vida privada, a obra também aborda de maneira tangencial acontecimentos políticos e sociais que envolveram a Nigéria durante a década de 80 e, inclusive, cita Chinua Achebe, mostrando a importância dele para a sociedade nigeriana. Além disso, muito do contexto político e social narrado por Ayòbámi se relaciona com o livro “Hibisco Roxo” da Chimamanda e essa conexão torna ambas as leituras ainda mais ricas.

“Fique comigo” explora o quanto as pressões sociais relacionadas ao machismo são capazes de destruir mulheres, homens e relações, especialmente quando a família é colocada como algo central por todos, apesar de ser uma instituição que se importa mais com a maneira que seus membros são vistos pela sociedade do que em cuidar e acolher os seus. Os papéis de gênero tão reforçados pelas famílias de Yejide e Akin machucam todos, especialmente Yejide, que, marcada pela solidão, tende a aceitar tudo com medo de perder o pouco que conseguiu.

Doloroso, aflitivo e envolvente, esse romance explora temas como maternidade, casamento, poligamia, masculinidade, luto, solidão e machismo. Ler a história de Yejide e Akin é se permitir viver uma imensa gama de emoções, sendo a raiva talvez uma das predominantes, porque a obra expõe uma faceta da cultura nigeriana que é muito cruel com as mulheres.

Se você é um leitor ávido por histórias emocionantes e bem escritas, tem curiosidade sobre a literatura produzida fora do eixo EUA-Europa e se interessa em refletir sobre a condição da mulher no mundo, esse livro é uma ótima opção de leitura para você.


Tradução do livro: Marina Vargas


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“A vegetariana”: Han Kang, Coreia do Sul, autonomia e violência

Foto de Mônica de Godoy para o Leia Mulheres Divinópolis — Adquira seu exemplar aqui.

“A Vegetariana”, obra da sul-coreana Han Kang, ganhou o mundo após vencer o Man Booker International Prize 2016 com um romance dividido em três partes, cada uma delas com um narrador diferente. Yieonghye é a protagonista dessa história contada inicialmente pelo seu marido, depois pelo seu cunhado e, por último, por sua irmã.

A decisão de Yieonghye de deixar de comer carne é o que move, inicialmente, o enredo. Tudo parece começar ali, ao menos para os três narradores, e o livro se desdobra numa sucessão de acontecimentos decorrentes desse ato. O vegetarianismo em si não é o foco, ele funciona apenas como a engrenagem visível aos olhos dos outros desse processo que a protagonista passa e o livro aborda.

O marido

O marido estranha a escolha aparentemente abrupta pelo vegetarianismo, marcando em sua narração, que a personagem, até então, gostava de carne e cozinhava belos pratos a partir desse ingrediente. Ele fala isso inicialmente em tom de preocupação, mas logo se percebe que ele só se importa com as possíveis consequências do comportamento dela em sua vida.

O marido evidencia também o quanto vê a esposa como um ser sem vontades, que parece não se importar ou até gostar de servi-lo. Ele a considera uma mulher comum, de um jeito negativo, e fala que a escolheu justamente por isso. O vegetarianismo dela quebra a construção que ele fez sobre a própria esposa e seu próprio casamento. Ele se incomoda com essa repentina autonomia dela, busca uma intervenção familiar e segue ignorando Yieonghye como uma pessoa. Ele a vê como uma serva, inclusive sexual. O que não parece ser nem um pouco chocante para os demais personagens do livro.

Ele parece representar o homem-médio sul-coreano em seus desejos, reações e comportamentos. A construção dele soa como uma crítica aos que parecem tanto com ele. Por isso, em alguns momentos, o que ele conta cria cenas que se assemelham a uma esquete.

A família no todo

A intervenção familiar acontece de forma emocional a partir da mãe: ela oferece um dos pratos preferidos da personagem, comidas com ingredientes caros e chantagens emocionais. Isso tudo mais de uma vez. Já quando envolve o pai, a tentativa de controle se torna obviamente violenta. Ele tenta obrigar a personagem a comer carne por meio da força. Ela age contra isso violentando-se. Todos os membros da família parecem vê-la como um fardo bem antes disso acontecer, somente com a decisão dela de não comer carne, no caso, mas é o pai de fato age contra ela e mostra a figura autoritária e centralizadora que é.

A família, o tempo todo, trata o marido de Yieonghye como uma espécie de vítima dela. Eles entendem que ela é uma vergonha, um fardo, um incômodo para ele e deixam bem claro que ele detém o direito de abandoná-la.

O cunhado

Casado com a irmã da protagonista, ele é um artista que se coloca como um homem que não se importa em ver a esposa ser uma empresária de sucesso. Ele se vê como um cara muito diferente do marido da Vegetariana, mas é apenas uma outra versão daquele mesmo homem. Ele sexualiza, explora e violenta as mulheres que o cercam e usa as vulnerabilidades delas ao seu favor e com a desculpa de que é em nome da arte ou mesmo de si.

A irmã

A narração da irmã de Yieonghye amarra toda a história. A partir de suas lembranças, ela recorda a vida dela e de sua irmã desde a infância. Ela é a única que tenta entender a Vegetariana, olhar para ela de verdade, ainda que limitada pela raiva, pelo perdão talvez condicionado pelo cuidado que ela assume com todos, provavelmente por ser mulher, e pelo amor que sente.

A irmã faz uma investigação interna sobre sua família, quem Yieonghye foi e agora é e também sobre si mesma para tentar entender e lidar com aquela sucessão de acontecimentos. Essa é a parte mais misteriosa do livro, aquela que não dá respostas, apenas cria mais perguntas.

A vegetariana, sua autonomia e a violência

A única voz da personagem está no relato dos narradores sobre os sonhos que a perseguem. Ela não narra a própria história. Tudo que a motiva ou desmotiva fica como um mistério que a gente tenta desvendar junto com a irmã da personagem, sendo que mesmo a irmã narra por uma ótica própria que também apaga Yieonghye, ao menos de alguma forma.

Não narrar a própria história é ter retirada, mais uma vez, a sua autonomia, que parece ser algo que foi podado na personagem durante toda a vida. A violência que Yieonghye nega, ao se tornar vegetariana e depois ao se recusar a comer, é o que sempre a cercou e a impactou. Ela fez parte daquele mundo que poda, controla e violenta e a negação surge dessa tomada de consciência que parece ter vindo a partir dos pesadelos que a atormentam.

Com a leitura, a gente percebe que parte da violência que a cerca e a impacta é exercida principalmente homens e que isso é quase invisível justamente pela naturalização de determinados comportamentos e o que é esperado de cada gênero, de cada relação. Han Kang, com essa obra ficcional que mescla características fantásticas e até de terror com cenas comuns, conta muito sobre o que é ser mulher na Coreia do Sul e aborda também questões como casamento, família, trabalho e sociedade.


Tradutora da obra: Jae Hyung Woo


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Desconforto

Obrigada, Canva

Calço os sapatos. Podia ser um par de tênis, de alpargata, meus queridos chinelos ou mesmo minha sapatilha que dá calo, mas dessa vez são sandálias de salto alto. Ouvi da moça do RH que ninguém vai me levar à sério sem sapatos como esses. De alpargata, pareço uma menina, segundo ela. Uma menina de incríveis 30 anos, eu penso.

Tec, tec, tec. Eu ando pela casa conferindo se deixei ração o suficiente para os gatos. Tec, tec, tec. Volto para o quarto para pegar minha pasta. Tec, tec, tec. Me direciono para a porta.

Joselino estranha o barulho que faço ao andar e nem se aproxima para se esfregar nas minhas pernas como sempre faz, mas mia baixinho, porque sabe que só voltarei dez horas depois. Juanita sobe na mesa e oferece a cabeça para eu acariciar antes de sair. Quando me aproximo, vejo seus olhos atentos aos meus passos. Nem ela aguenta o barulho desses sapatos.

Assim que entro na empresa, visto meu casaquinho. Sento. Ajeito a mesa. Checo e-mails. Bebo uma xícara de café. Confirmo minha agenda. Redijo um contrato. O tec, tec, tec dessa vez é barulho do teclado. Separo uns documentos, estudo o que eles dizem e me preparo para reunião do dia.

O homem mais velho da mesa me pergunta se eu sou filha do dono da empresa. Não, eu não sou. Meus pés doem por causa dessa maldita sandália, mas eu ainda não sou levada à sério. Filha, esposa, amante. Todas essas possibilidades parecem mais certas para eles do que uma promoção por mérito.

Apresento nossos produtos e os documentos que comprovam o bom desempenho deles no mercado. Exponho estatísticas e ressalto que conquistamos os primeiros clientes internacionais há poucos meses.

Ele troca de lugar e senta ao meu lado. Posiciono a papelada em sua frente para que ele possa ler os pormenores do contrato. Sorrio e espero.

Sinto algo na minha perna esquerda. Devo ter esbarrado em alguma coisa. O algo começa a subir. Cogito que seja uma barata. Olho para baixo e vejo a mão branca do velho subindo pela minha coxa. Me encolho toda. Ele ri e sobe ainda mais. Nojo.

Não consigo respirar direito, muito menos falar alguma coisa. De novo não. A mão dele continua em mim. Me culpo: “Se fosse uma barata, eu gritaria”. Olho para o nada, ainda paralisada, enquanto respiro fundo e junto toda a força que me resta. Com ela, me levanto, abandono a sala e sei que com isso perdi essa venda e alguma coisa em mim.

Me sinto anestesiada. Não noto mais os sons que faço ao andar, digitar ou mastigar e engulo a comida do meu restaurante preferido sem conseguir diferenciar o gosto dos alimentos.

Quando volto do almoço, meu chefe me chama para sua sala. “Esses clientes já eram certos, que merda você fez?”, ele berra. O andar inteiro ouve. Choro. Balbucio palavras. Nenhuma com sentido. Ele grita ainda mais comigo.

Respiro fundo e recomeço meu relato. Com a voz embargada, conto o que aconteceu. Meu chefe reage dessa vez sem gritaria e me manda ir para casa descansar. Mas antes de eu sair pela porta, ele faz questão de dizer: “Ele não ia fazer mais do que isso, dava para você ter aguentado e garantido o negócio”.

Saio da sala ainda aos prantos, pego minha bolsa e me direciono para o elevador. Ouço cochichos e todo mundo me olha como se eu tivesse feito uma cagada daquelas. A palavra incapaz parece estar escrita na minha testa. Não tenho dúvidas que continuariam me julgando dessa forma — ou pior — se soubessem como perdi a venda.

Os sinos da igreja me contam que são duas horas. Ouço as badaladas com uma atenção absurda. Me concentro em cada uma delas para fugir das memórias e pensamentos que vieram à tona. Tem algo errado comigo, concluo. Meu corpo me trai. Ele provoca os homens.

O ressoar dos sinos não é o suficiente. Dentro de mim, eu grito: “De novo não!”. O coração acelera, bate desritmado. Eu tento respirar fundo, olhar para as pessoas e imaginar suas vidas.

Vejo uma jovem de vinte e poucos anos. Ela tem o cabelo escorrido, diferente do meu, que é cacheado. Está de coturno, veste uma meia calça roxa, um vestido floral e uma jaqueta jeans preta. Esse é um look que eu usaria, penso. Ela parece bem.

Vejo também uma moça de dreads coloridos, calça jeans e camisete preta. Ela parece aflita com o tempo. Toda hora olha para a tela do celular e para o horizonte onde o ônibus alguma hora vai apontar. Ela está de mochila. Talvez atrasada para uma aula, algum estágio, uma prova. Não sei.

Não tem mais ninguém para olhar por perto. O ponto está vazio. Tento me concentrar então em quem passa. Eles andam rápido demais e eu volto a me perder nos pensamentos que tento a todo custo evitar. “Como eu me odeio” é um deles.

Um carro passa bem devagar e o homem dentro dele faz gestos sexuais e grita “Gostosas” para as três mulheres paradas sozinhas no ponto de ônibus.

Não aguento. Desabo. Reconheço as memórias que tento evitar. Vejo uma nova entre elas. Uma voz masculina ecoa na minha cabeça. Ela me chama de vagabunda, diz que tem algo de errado comigo e que eu provoco os homens. Ouço de novo “dava para você ter aguentado”.

As duas moças me olham chorar com solidariedade. Não me sinto digna desse apoio. Ambas se aproximam e falam que vai ficar tudo bem. Respiro fundo. Tento sorrir. A jovem de cabelo escorrido me oferece um abraço. Aceito. A moça de dreads diz “esses caras são nojentos”. Me ouço respondendo “uns desgraçados” e essa é a nova frase que começa a se repetir em minha mente, enquanto vejo elas entrarem no ônibus 9410.

O cheiro de churros domina o ponto de ônibus. Salivo. Corro atrás do carrinho, os sapatos de salto me atrapalham mais uma vez e eu os arranco dos pés. Descalça no centro da cidade, escolho se o recheio será doce de leite ou brigadeiro. O gosto da massa do churros se mistura com o salgado das minhas lágrimas.

Desgraçados.


Essa história foi publicada originalmente no meu perfil na plataforma Sweek e foi finalista no concurso literário SweekStars2018.


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