Desconforto

Obrigada, Canva

Calço os sapatos. Podia ser um par de tênis, de alpargata, meus queridos chinelos ou mesmo minha sapatilha que dá calo, mas dessa vez são sandálias de salto alto. Ouvi da moça do RH que ninguém vai me levar à sério sem sapatos como esses. De alpargata, pareço uma menina, segundo ela. Uma menina de incríveis 30 anos, eu penso.

Tec, tec, tec. Eu ando pela casa conferindo se deixei ração o suficiente para os gatos. Tec, tec, tec. Volto para o quarto para pegar minha pasta. Tec, tec, tec. Me direciono para a porta.

Joselino estranha o barulho que faço ao andar e nem se aproxima para se esfregar nas minhas pernas como sempre faz, mas mia baixinho, porque sabe que só voltarei dez horas depois. Juanita sobe na mesa e oferece a cabeça para eu acariciar antes de sair. Quando me aproximo, vejo seus olhos atentos aos meus passos. Nem ela aguenta o barulho desses sapatos.

Assim que entro na empresa, visto meu casaquinho. Sento. Ajeito a mesa. Checo e-mails. Bebo uma xícara de café. Confirmo minha agenda. Redijo um contrato. O tec, tec, tec dessa vez é barulho do teclado. Separo uns documentos, estudo o que eles dizem e me preparo para reunião do dia.

O homem mais velho da mesa me pergunta se eu sou filha do dono da empresa. Não, eu não sou. Meus pés doem por causa dessa maldita sandália, mas eu ainda não sou levada à sério. Filha, esposa, amante. Todas essas possibilidades parecem mais certas para eles do que uma promoção por mérito.

Apresento nossos produtos e os documentos que comprovam o bom desempenho deles no mercado. Exponho estatísticas e ressalto que conquistamos os primeiros clientes internacionais há poucos meses.

Ele troca de lugar e senta ao meu lado. Posiciono a papelada em sua frente para que ele possa ler os pormenores do contrato. Sorrio e espero.

Sinto algo na minha perna esquerda. Devo ter esbarrado em alguma coisa. O algo começa a subir. Cogito que seja uma barata. Olho para baixo e vejo a mão branca do velho subindo pela minha coxa. Me encolho toda. Ele ri e sobe ainda mais. Nojo.

Não consigo respirar direito, muito menos falar alguma coisa. De novo não. A mão dele continua em mim. Me culpo: “Se fosse uma barata, eu gritaria”. Olho para o nada, ainda paralisada, enquanto respiro fundo e junto toda a força que me resta. Com ela, me levanto, abandono a sala e sei que com isso perdi essa venda e alguma coisa em mim.

Me sinto anestesiada. Não noto mais os sons que faço ao andar, digitar ou mastigar e engulo a comida do meu restaurante preferido sem conseguir diferenciar o gosto dos alimentos.

Quando volto do almoço, meu chefe me chama para sua sala. “Esses clientes já eram certos, que merda você fez?”, ele berra. O andar inteiro ouve. Choro. Balbucio palavras. Nenhuma com sentido. Ele grita ainda mais comigo.

Respiro fundo e recomeço meu relato. Com a voz embargada, conto o que aconteceu. Meu chefe reage dessa vez sem gritaria e me manda ir para casa descansar. Mas antes de eu sair pela porta, ele faz questão de dizer: “Ele não ia fazer mais do que isso, dava para você ter aguentado e garantido o negócio”.

Saio da sala ainda aos prantos, pego minha bolsa e me direciono para o elevador. Ouço cochichos e todo mundo me olha como se eu tivesse feito uma cagada daquelas. A palavra incapaz parece estar escrita na minha testa. Não tenho dúvidas que continuariam me julgando dessa forma — ou pior — se soubessem como perdi a venda.

Os sinos da igreja me contam que são duas horas. Ouço as badaladas com uma atenção absurda. Me concentro em cada uma delas para fugir das memórias e pensamentos que vieram à tona. Tem algo errado comigo, concluo. Meu corpo me trai. Ele provoca os homens.

O ressoar dos sinos não é o suficiente. Dentro de mim, eu grito: “De novo não!”. O coração acelera, bate desritmado. Eu tento respirar fundo, olhar para as pessoas e imaginar suas vidas.

Vejo uma jovem de vinte e poucos anos. Ela tem o cabelo escorrido, diferente do meu, que é cacheado. Está de coturno, veste uma meia calça roxa, um vestido floral e uma jaqueta jeans preta. Esse é um look que eu usaria, penso. Ela parece bem.

Vejo também uma moça de dreads coloridos, calça jeans e camisete preta. Ela parece aflita com o tempo. Toda hora olha para a tela do celular e para o horizonte onde o ônibus alguma hora vai apontar. Ela está de mochila. Talvez atrasada para uma aula, algum estágio, uma prova. Não sei.

Não tem mais ninguém para olhar por perto. O ponto está vazio. Tento me concentrar então em quem passa. Eles andam rápido demais e eu volto a me perder nos pensamentos que tento a todo custo evitar. “Como eu me odeio” é um deles.

Um carro passa bem devagar e o homem dentro dele faz gestos sexuais e grita “Gostosas” para as três mulheres paradas sozinhas no ponto de ônibus.

Não aguento. Desabo. Reconheço as memórias que tento evitar. Vejo uma nova entre elas. Uma voz masculina ecoa na minha cabeça. Ela me chama de vagabunda, diz que tem algo de errado comigo e que eu provoco os homens. Ouço de novo “dava para você ter aguentado”.

As duas moças me olham chorar com solidariedade. Não me sinto digna desse apoio. Ambas se aproximam e falam que vai ficar tudo bem. Respiro fundo. Tento sorrir. A jovem de cabelo escorrido me oferece um abraço. Aceito. A moça de dreads diz “esses caras são nojentos”. Me ouço respondendo “uns desgraçados” e essa é a nova frase que começa a se repetir em minha mente, enquanto vejo elas entrarem no ônibus 9410.

O cheiro de churros domina o ponto de ônibus. Salivo. Corro atrás do carrinho, os sapatos de salto me atrapalham mais uma vez e eu os arranco dos pés. Descalça no centro da cidade, escolho se o recheio será doce de leite ou brigadeiro. O gosto da massa do churros se mistura com o salgado das minhas lágrimas.

Desgraçados.


Essa história foi publicada originalmente no meu perfil na plataforma Sweek e foi finalista no concurso literário SweekStars2018.


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Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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