
O encontro
Cidades afundam em dias normais, o mais novo romance da escritora, podcaster e ilustradora Aline Valek, foi tema de um encontro especial, com participação da autora e tudo, no meu clube de leituras, o Clube Cidade Solitária.
Durante o papo, fomos 18 pessoas no total, todas bem empolgadas para compartilhar e ouvir as relações e análises que outros leitores com repertórios tão diferentes. Cada comentário puxando o outro, ampliando a leitura de cada um, num movimento que incluiu a própria Aline, que trouxe para gente muitas informações sobre seu processo criativo no todo e também o envolvido diretamente na construção dessa história.
Em certo momento, a escritora compartilhou que esse livro começou a nascer a partir de uma caixa de fotos de pessoas desconhecidas que ela teve acesso. Vendo aquelas imagens sem sequência e sem demais informações, a ideia surgiu.
A narração desse processo me lembrou a descoberta do trabalho da fotógrafa Vivian Maier. Segundo o documentário Finding Vivian Maier, uma caixa de fotos de trabalhos dela foi arrematada por um caçador de tesouros em um leilão. Ao abrir a caixa e observar as imagens, ele suspeitou que aquelas fotos eram mais interessantes do que pareciam e, a partir desse momento, essa fotógrafa que passou a vida na invisibilidade do trabalho de babá começou a ser descoberta.
Esse filme se esforça para tentar contar a história da fotógrafa a partir do que foi sendo garimpado depois de sua morte. Além das caixas com suas fotos e demais pertences, o que restou de Vivian mora na memória de seus antigos e diversos patrões. O trabalho dos que hoje tentam lucrar a partir dessa fotógrafa muito talentosa é um pouco semelhante ao que tentamos fazer ao ler o livro da Aline, ainda que as fotografias presentes em suas páginas não sejam, digamos, visuais.
A dúvida
Como funciona a memória? A minha, a sua e também a nossa. Como se define o que vamos lembrar e o que vai desaparecer nesse lamaçal de rostos, causos, banalidades, violências e urgências cada vez mais frequentes, talvez frequentes demais para continuar a caber nessa palavra? Como a forma que lembramos afeta como vamos ver aquilo tudo agora e no futuro? Como lembrar e esquecer podem se relacionar tanto com buscar e perder? E quão grande pode ser o abismo entre lembrar e contar o que se lembrou?
Como uma cidade se forma, permanece e afunda? Como uma cidade é lembrada? Como uma cidade atravessa o tempo? E a vida de cada um? Como cada pessoa surge, permanece e desaparece? Como se conta a história de um povo?
Somos o que lembramos? E onde anda a verdade se cada um tem a sua?
Como se dá o processo da memória? E das relações? E da criação? A criação surge a partir da vontade de se expressar? De contar a nossa própria história? De elaborar o que se passou? De ser lembrado e de lembrar? De não deixar desaparecer alguma coisa? De não se deixar desaparecer e nem os seus? Como organizar lembranças pode parecer tanto um processo de colagem? Como cada cena pode parecer tanto uma fotografia? Como falar de tempo, processos, escola e adolescência pode nos fazer pensar tanto no Brasil?
O processo
Pensar na adolescência envolve encarar quem somos hoje e como nos tornamos essa pessoa. Pensar em tempo é se ver exposto às contradições do registro e do esquecimento. Pensar na dúvida é perceber que na maioria das vezes descobrir novas indagações é mais interessante ou, no mínimo, mais realista que qualquer resposta que podemos encontrar. Ler esse livro é pensar nesse misterioso processo que mescla o desejo de narrar, de fugir e de ficar.
Os dias normais
As histórias de Kênia, Tainara, Érica, Tiago, Rebeca e outros antigos moradores de Alto do Oeste são relatos individuais de uma cidade alagada em um processo lento e contínuo de abandono. O fim do mundo de cada um desses personagens — e o retorno curioso dessa terra tantos anos depois — foi somente mais uma manchete curiosa para o resto do país. Enquanto a cidade afundava, cada um fazia o que podia para não afundar junto, enquanto tentavam seguir suas vidinhas como antes. Ninguém de fora, estado ou não, deu as caras nesse processo que, de certa forma, foi sendo ignorado no dia a dia por todos que ali viviam. A tragédia virou costume, como de fato acontece no Brasil. A tragédia virou fonte de cliques e lucro, como também acontece todo dia.
Cidades afundam em dias normais, além de abordar temas como memória, amizade, adolescência, vida no interior e fotografia e outros processos, artísticos ou não, fala também sobre desalento, declínio e desesperança em um sentido coletivo. O que nos faz pensar também na chegada e permanência do fascismo, e é possível dizer que não deve haver nada mais brasileiro que esses sentimentos nesse momento.
Aline Valek escreveu uma obra que dialoga com nossas urgências e medos e a experiência de leitura dessa história nos ajuda a elaborar a prática de se viver em meio aos diversos fins do mundo que nos cercam. A gente busca respostas imediatas o tempo todo, mas talvez precisemos, primeiramente, entender de onde partimos. A professora Érica concordaria com isso, porque sabe que as memórias pertencem ao futuro. “Só se conta histórias para frente”.
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Leia também: “Buscando Vivian Maier”
Oi, Thaís!
Que conexões bonitas você estabeleceu a partir das discussões do clube de leitura. Obrigada por compartilhar! 🙂
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