“Os sete maridos de Evelyn Hugo”: uma ficção sobre os bastidores da velha Hollywood

Acervo Pessoal — Capa do livro versão TAG

“Acho que ser quem a gente é — de verdade, e por inteiro — sempre vai exigir nadar contra a corrente.”

Como é ser uma celebridade? Como é ser uma mulher celebridade na Hollywood dos anos 50, 60, 70? O que a fama te dá e te tira? Quão próximo e quão distante pessoas famosas estão de nós, reles mortais? Nesse livro de Taylor Jenkins Reid, traduzido para o português por Alexandre Boide, recebemos algumas respostas para essas perguntas, ainda que a partir de um romance ficcional.

“(…)se você disser para uma mulher que sua única qualidade é ser desejável, ela vai acreditar”

Evelyn Hugo é uma estrela, uma sex symbol, um ícone. Ela protagonizou filmes, ganhou um Oscar e viu seu nome se tornar personagem principal de escândalos e notinhas de casamento. Evelyn Hugo se casou sete vezes. Evelyn Hugo é tudo que as revistas de fofoca sempre desejaram acompanhar. Só que aos oitenta anos de idade e acompanhada de Monique Grant, uma jornalista escolhida a dedo, apesar de não ter muita notoriedade, ela quer contar sua verdadeira história.

“As pessoas não são muito solidárias e acolhedoras com uma mulher que põe a própria carreira em primeiro lugar.”

Quase como uma personagem de Sydney Sheldon, Evelyn Hugo surgiu do nada usando sua beleza, charme e vontade de se provar e viver uma vida diferente da pobreza que conhecia. Desde muito jovem, percebeu que ser desejada a colocava em risco, mas também podia proporcionar chances únicas, se ela aprendesse a jogar aquele jogo em que as peças poderosas são todas homens e as mulheres são meros peões.

Guiada pela ambição, a personagem da atriz é muito bem construída. Ainda que esteja no papel de narradora e seu relato apresente sua visão das coisas e a verdade que ela quer mostrar, o que é contado apresenta para Monique as facetas não tão glamourosas de Hollywood, como a objetificação, o incentivo à rivalidade feminina presente no meio, as mentiras, a manipulação, os jogos de poder, as estratégias de marketing e a escolha pelo silêncio. Como mero peão no jogo da fama, Evelyn até conseguiu se sair bem, mas nem tudo saiu tão barato assim.

“Ah, eu sei que o mundo prefere mulheres que não têm noção do próprio poder, mas estou de saco cheio disso.”

Como uma boa história de bastidores, a obra é instigante. Queremos saber quem é a verdadeira Evelyn Hugo, o que ela esconde, quem ela amou de verdade e o porquê dela ter escolhido Monique Grant como sua biógrafa. A história nos envolve totalmente, talvez por causa do recurso de intercalar cenas do presente com a narração das memórias da atriz ou até mesmo com notinhas de fofoca. Mas, muito mais do que estrutura, o que provavelmente nos atrai na obra é a complexa construção das duas personagens principais e o fato de que o livro nos ajuda a criar uma nova ideia, talvez mais realista, do que as mulheres que conhecemos como as mais bonitas da história do cinema podem ter vivido.

 

Arte de capa de Joana Figueiredo para a Editora Paralela

A trajetória de Evelyn Hugo em relação aos desafios e avanços do século XX e do início do XXI — SPOILERS A PARTIR DAQUI — ESTEJA AVISADO

Muito além da fama, da objetificação, do casamento e da ambição feminina, “Os sete maridos de Evelyn Hugo” trata de temas como bissexualidade, homossexualidade, carreira, dinheiro, violência doméstica, sexo e poder.

Ainda que Evelyn Hugo seja uma personagem ficcional e tenha conquistado quantias de dinheiro inimagináveis para a maioria de nós, sua trajetória nos faz refletir sobre as antigas regras vigentes no século XX e que, a partir de muita luta, começaram a ser quebradas.

Evelyn talvez tenha pensado que assim que atingisse a fama, estaria minimamente protegida dos destinos comuns das mulheres de sua época, mas se enganou. Apesar de tudo que pôde alcançar por causa da fama e o dinheiro, a pressão para cima dela em relação aos casamentos, filhos, carreira e beleza existiu e acabou funcionando como uma forma de colocar ela e todas as outras mulheres no seu devido lugar. Controlá-la era impedi-la de mostrar que a vida poderia ser diferente. Puni-la também.

A protagonista dessa história lidou com agressões domésticas e com o peso de ter que esconder sua sexualidade e o amor que vivia de todos. No primeiro caso, todos estavam prontos para fingir não ver as marcas de violência e, no segundo, qualquer mínimo indício poderia fazer sua carreira e de quem a apoiava vir por água abaixo.

“Ser desejada significava a obrigação de satisfazer os outros”

Por mais que fosse famosa, ela era apenas mais uma peça que poderia proporcionar lucro para alguém. O que lembra o #MeToo e as denúncias de mulheres, muitas atrizes famosas, de violência sexual. Tudo muito recente, mostrando que Hollywood ainda joga com a vida e a dignidade das mulheres como bem entende e sempre está pronta para acabar com carreiras femininas para salvar as masculinas.

O armário

O amor da vida de Evelyn, a sex symbol, a mulher que os homens desejavam e as mulheres queriam ser, foi também atriz. Esconder o relacionamento foi um desafio para ambas, porque estar em Hollywood envolvia ter que promover ideais de amor heterossexual, lindo, limpo e feliz. E ela, como objeto de desejo, jamais poderia se mostrar dessa forma.

“Ser bissexual não significa ser infiel […] Uma coisa não tem nada a ver com a outra.”

A atriz, para conseguir o que queria, preencheu todas as suas dúvidas com a certeza de que era preciso esconder, ludibriar, viver aquilo sempre de maneira secreta. Isso também teve um preço.

Nesse sentido, a escolha da autora de citar os sentimentos de esperança que a Revolta de Stonewall evocou nos personagens e como foi feita a decisão deles de apoiar aquele momento a partir do dinheiro e não com uma saída pública do armário foi muito certeira. Especialmente para mostrar o pragmatismo envolvido.

“Imagina se todas as mulheres solteiras do planeta exigissem alguma coisa em troca de seus corpos. Vocês seriam as donas do mundo. Um exército de pessoas comuns. Só homens como eu teriam alguma chance contra vocês. E isso é a última coisa que esses cretinos querem: um mundo comandado por gente como eu e você.”

Violência doméstica

“Em briga de marido e mulher não se mete a colher” é um ditado muito popular no Brasil e que reproduz uma ideia que vai muito além do nosso território. O que acontece dentro de um casamento não é da conta dos outros, mas a regra só vale no caso de manter a violência doméstica naturalizada e escondida e as mulheres seguindo as regras. Como o casamento é sempre colocado como um sonho, função e responsabilidade feminina, tudo fica nas costas delas. Qualquer sinal de fracasso, inclusive a própria violência, é lido socialmente como sinal das falhas femininas.

Evelyn Hugo sente esse peso comum a todas as mulheres ainda hoje e também o da indústria que a emprega e está mais interessada em vender o casal feliz, lindo e queridinho da América do que em protegê-la. A indústria do cinema aqui assume o papel que muitas vezes é da família da vítima, dos parentes do algoz e até o da própria igreja ou mesmo delegacias e judiciário.

Evelyn Hugo se silenciou sobre o que passou e anos mais tarde descobriu que outra atriz que casou com seu ex-marido passou pelo mesmo ao ouvir um doloroso “por que você não me avisou?”. É impossível não pensar em como todo o contexto de competição de mulheres contribuiu para que elas não tenham trocado esse tipo de informação e na importância de manter essa lógica de rivalidade para garantir que os homens continuem podendo tudo, mesmo em espaços que mulheres parecem ser tão poderosas.

As mulheres retratadas na obra fazem tudo para se sobressair. E esse tudo pode envolver até trabalhar com o próprio agressor por querer muito fazer um filme. Decisão que pode incomodar, mas que parece ter sido colocada pela autora para expor quem é essa personagem e o que ela faria para manter seus segredos bem guardados e realizar seus desejos.

“Todo mundo acaba se vendendo por uma coisa ou por outra.”

Motivações

Depois de conhecer os detalhes dessa história, entendemos melhor o que Evelyn Hugo quer ao contá-la nessa altura da vida. Ela quer que sua trajetória passe a ter um significado político, ainda que para isso tenha que admitir falhas, covardias, silêncios, manipulações, dúvidas e arrependimentos. Apesar de tanta exposição, a personagem narra sua vida para a Monique conforme a imagem que quer passar e também como analisa suas próprias memórias.

Evelyn Hugo é uma ficção

Como atriz, Evelyn construiu uma personagem para apresentar ao público, enquanto vivia sua vida. Essa mulher, além de ícone, era humana, com tudo que isso significa. Assim como Monique Grant, a amamos e a odiamos, porque a conhecemos na intimidade. Mas seria Evelyn tão assertiva e decidida quanto ela quer que a gente pense que é? Nunca saberemos.


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Ela disse: os bastidores da investigação jornalística que impulsionou mundialmente o #MeToo

Um livro para entender melhor o que estava em jogo na publicação da reportagem que impulsionou o #MeToo.

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Uma reportagem publicada no início de outubro de 2017 pela New York Times expôs, com bastante consistência, os assédios sexuais cometidos durante décadas pelo produtor Harvey Weinstein e a maneira que acordos extrajudiciais com cláusulas de confidencialidade foram utilizados para obter o silêncio por parte de suas vítimas, todas elas relacionadas a ele profissionalmente. A publicação dessa matéria, e de diversas outras que vieram a seguir, iniciou um debate que ganhou o mundo e teve um impacto especial nos EUA.

A denúncia do comportamento de Harvey Weinstein e outros homens poderosos e a quebra do silêncio de mulheres das mais diversas áreas permitiu que a sociedade começasse a tirar de debaixo do tapete relatos e denúncias que serviram para expor o quanto homens, das mais diversas áreas, incluindo negócios, tecnologia, política e cinema, aproveitam o poder que possuem para explorar e pressionar sexualmente as mulheres que os cercam.

Essas histórias demoraram tempo demais para serem contadas. E, a partir da leitura do livro “Ela disse”, escrito por Jodi Kantor e Megan Twohey, jornalistas vencedoras do Prêmio Pulitzer, podemos entender melhor o porquê.

A saga narrada pelas autoras da reportagem inicial sobre Harvey Weinstein mostra o quanto o produtor usava seu poder e influência, financeiros e não-financeiros, para conseguir acordos extrajudiciais com cláusulas de confidencialidade e barrar possíveis reportagens e investigações jornalísticas sobre ele. Fica evidente que isso funcionou por tanto tempo também porque as mulheres e suas denúncias sempre foram negligenciadas em nossa sociedade. Afinal, ao menos no mundo pré #MeToo, ele era um homem difícil e elas deviam saber — e aceitar — isso.

A obra nos ajuda a entender o quanto a investigação, escrita e publicação dessa matéria foi um processo demorado, perigoso e delicado, especialmente entre jornalistas e fontes. Enquanto elas pesquisavam, conversavam com mulheres e buscavam documentos, o cerco do ex-produtor e seus acobertadores se fechava em torno delas, colocando vítimas e jornalistas numa situação passível de intimidação.

Ninguém queria falar on the record sobre o caso. Medo, culpa, raiva, vergonha, vontade de fugir e, claro, cláusulas de confidencialidade eram obstáculos. Ninguém queria falar sozinha ou ser uma das primeiras a abrir o jogo publicamente. As jornalistas, entretanto, sabiam que precisavam de alguma declaração oficial para conseguir dar substancialidade à denúncia. E elas conseguiram e as matérias que vieram a seguir mostraram que quando uma fala, outras também se encorajam a falar.

Além do caso em si, o livro trata também de momentos pré e pós publicação da primeira matéria contra o produtor, colocando outros casos em evidência, como as acusações contra Trump e ao juiz Brett Kavanaugh. Tratar essas três histórias em conjunto permite que o leitor contextualize a força dessas denúncias e também compreenda melhor o backlash misógino que as sucederam.

Em um dos melhores momentos da leitura, o leitor se depara com o relato dos bastidores de uma conversa organizada pelas jornalistas com diversas mulheres denunciantes de homens por assédio sexual. A troca narrada ali envolveu atrizes e ex-assistentes do mundo do showbizz e também mulheres comuns como Kim Lawson, atendente de uma rede de fast food, e Christine Blasey Ford, a mulher que denunciou sozinha Brett Kavanaugh e enfrentou uma sabatina no Senado para tentar barrar que o seu algoz se tornasse parte da Corte Suprema dos EUA. É nessa parte que a gente entende, de verdade, o poder da primeira matéria e a importância do fenômeno #MeToo para as mulheres. Apesar dos pesares, o silêncio foi quebrado e todas essas mulheres, por mais diferentes que sejam, entenderam que não estavam sozinhas e precisavam agir por elas e pelas outras. Exatamente como Ashley Judd, atriz, ativista e uma das primeiras a denunciar o ex-produtor, acreditava desde o início.


Enquanto eu escrevia essa resenha, o julgamento criminal do ex-produtor Harvey Weinstein acontecia. A sentença desse caso tinha o condão de mostrar o poder da voz das mulheres ou o quanto ainda precisaríamos caminhar para finalmente sermos ouvidas.

Depois de cinco dias de júri em Nova York, ele foi condenado por dois dos cinco crimes que foi acusado e ainda enfrentará outro julgamento de agressão sexual na Califórnia. Alguns detalhes do processo demonstram que o #MeToo e todos os debates fomentados por feministas nos últimos tempos começou a transformar a forma que a sociedade vê as vítimas de violência sexual e mulheres no geral, mas ainda há um longo caminho pela frente. Um exemplo disso é que quando a defesa acusou que as vítimas mantiveram contato com Harvey após a “suposta” violência e e que elas eram responsáveis pelas escolhas que fizeram para promover suas carreiras, a promotoria soube mostrar o quanto essa argumentação era irrelevante e ignorava relações de poder.


Tradutoras da obra: Débora Landsberg, Denise Bottmann, Isa Mara Lando e Julia Romeu.


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Cat Person e outras histórias: o lado sombrio das relações

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Kristen Roupenian é uma das autoras convidadas para a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Evento que acontecerá do dia 10 a 14 de julho desse ano. Seu nome foi o primeiro a ser anunciado na agenda do evento, mesmo ela sendo uma estreante no mundo dos livros.

Sua importância se deu porque a autora protagonizou um fenômeno da literatura contemporânea após sua história “Cat Person” se tornar viral ao ser publicada na revista “The New Yorker” no final de 2017. O conto de Kristen foi um dos mais acessados da biografia da publicação e moveu debates intermináveis na internet durante dias, despertando, inclusive, até mesmo haters. A partir dessa história, muito se comentou sobre liberdade, consentimento, objetificação e trocas virtuais. Temas que receberam um baita holofote nos últimos anos graças aos debates feministas, especialmente a partir dos primeiros passos do #MeToo, episódio que se iniciou semanas antes da publicação do conto.

“Cat person” é especial por expor, em um texto cheio de camadas, aspectos quase invisíveis das relações de poder entre homens e mulheres. Em poucas páginas, a autora nos faz refletir sobre o quanto a paquera, mesmo marcada pela modernidade das mensagens de texto e de uma certa liberdade sexual feminina, ainda reproduz expectativas a partir de estereótipos de gênero e dominação masculina. Ainda há obrigações que mulheres acreditam ter por terem gerado uma certa expectativa e direitos que homens acham que merecem.

Essa história chegou ao Brasil traduzida pela Ana Guadalupe em um livro, publicado pela Companhia das Letras, que reúne mais onze contos escritos pela Kristen Roupenian. Em comum, todos falam sobre poder e tratam sobre aspectos sombrios da humanidade. Suas histórias, no geral, carregam em seu cerne uma estranheza e, em alguns casos, mesmo quando envoltos de realismo, características que dialogam com filmes de suspense psicológico e até terror.

A obra e estilo de Kristen nos deixam desconcertados, especialmente quando ela escreve sobre consentimento, a arte do flerte e todos os estereótipos envolvidos nisso. “Cara legal”, “Seu safadinho”, “Não se machuque” e “Vontade de morrer” são bons exemplos de como ela explora esse tema de uma maneira que incomoda e choca por expor as problemáticas que se fazem presentes nos relacionamentos humanos.

“Look at your game, girl” é uma narrativa que também merece destaque e mexe, principalmente, com mulheres. Nesse texto, a autora mostra como a violência rodeia o feminino desde que somos muito jovens e explora o medo que toda essa dinâmica causa na gente, evidenciando como essas histórias marcam nossas identidades. Esse conto, analisado a partir do contexto de toda a obra, ainda nos faz pensar no quanto as relações de poder são moldadas também pelos acontecimentos que circundam nossas vidas. O medo que nos acompanha talvez seja parte essencial do desequilíbrio de poderes nas relações amorosas e sexuais entre homens e mulheres.

“Cat Person e outros contos” tem como trunfo a maneira que Kristen Roupenian aborda as relações humanas, a complexidade de seus vínculos, seus perigos e o quanto o poder mexe com a humanidade, especialmente quando ninguém parece estar observando.


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“Falsa acusação”: a história de Marie é um exemplo do que é a cultura do estupro

Acervo pessoal — ilustrações feitas por mim — Adquira seu exemplar aqui.

Em 2011, durante um fórum sobre segurança e prevenção de crimes na Universidade de York, Toronto, um policial disse que as mulheres deviam evitar se vestir como vadias para não serem vítimas de estupro. A fala causou incômodo e foi contestada publicamente através de um ato em repúdio que contou com a participação de 3 mil pessoas.

O caso, graças ao protesto, ganhou o mundo. Mulheres de cidades dos Estados Unidos, Holanda, Portugal, Argentina, Índia, Coréia do Sul, Israel, Colômbia, Chile, México e Brasil também foram às ruas para questionar a forma que os crimes sexuais são tratados pela polícia, pelo judiciário e pela sociedade.

Essa movimentação toda ganhou o nome de “SlutWalk” (“Marcha das Vadias” no Brasil) e se incorporou ao calendário de luta de diversos lugares. O nome e alguns slogans do movimento receberam críticas — bem válidas, por sinal — de muitas feministas, mas é inegável que essa pauta ter tido esse efeito viral diz muito sobre o mundo que vivemos e o quanto a cultura do estupro precisa ser discutida e combatida mundialmente.

Também em 2011, Marie recebeu a notícia de que seu estuprador tinha sido preso após dois anos, sete meses e uma semana desde sua denúncia. Denúncia que foi considerada falsa e fez ela ser processada pelo Estado.

Marie confundiu detalhes de seu relato. Marie reagiu ao estupro de forma diferente do que algumas pessoas esperavam. Marie foi intimidada pela polícia que deveria apoiá-la e interrogada com um método usado para obter confissões de criminosos e acabou voltando atrás sobre a acusação que tinha feito. Ela disse que mentiu, mas dias depois tentou confirmar a denúncia novamente. Não a ouviram e ela foi denunciada por falsa comunicação de crime. Todas as provas do caso dela foram descartadas por isso.

“Falsa acusação — uma história verdadeira” nasceu a partir de um artigo vencedor do Prêmio Pulitzer de jornalismo investigativo e é um livro que aborda a cultura do estupro a partir da história de Marie e de outras vítimas de Marc O’Leary.

O trabalho feito pelos jornalistas T. Christian Miller e Ken Armstrong se divide em duas frentes: contar a história de Marie abordando o descaso que ela sofreu e os impactos disso em sua vida e expor como esse estuprador serial foi pego através de um trabalho investigativo e cooperativo liderado por duas detetives: Stacy Galbraith e Edna Hendershot.

Durante toda a obra, os autores apresentam dados, falas de especialistas e informações históricas sobre a abordagem do crime de estupro nos Estados Unidos.

Nossa sociedade, assim como a estadunidense, foi construída pautada no que homens falam sobre mulheres e, por muito tempo, o que eles disseram nos pintou como falsas, traiçoeiras, manipuladoras. Para eles, mentir sobre um estupro era o que vadias faziam após ceder à tentação do sexo. Séculos se passaram desde o primeiro homem a falar isso publicamente enquanto jurista nos EUA, mas a dúvida sobre quem é e o que quer a vítima de um estupro ainda prevalece quando a denúncia é feita.

Os jornalistas também relacionam a luta das mulheres com algumas conquistas básicas obtidas, enquanto expõem o quanto ainda é preciso mudar institucionalmente e culturalmente para que os números de subnotificação, processos e condenações se modifiquem.

Os mitos sobre estupro e sobre como mulheres agem e são na vida cotidiana ainda impactam em como elas são tratadas em todas as esferas de um processo legal e precisam cair por terra. Expor casos como o de Marie faz parte dessa luta, porque o silêncio que cerca a violência sexual torna as vítimas meras sombras e isso as coloca como um alvo fácil de desumanização.

“Tem algo estranho nesse caso” anda junto com o silenciamento histórico que acompanha as sobreviventes de estupro. Uma conversa franca sobre violência sexual é necessária para combater a manutenção desse imaginário popular sobre a vítima e o estuprador e a quebra do silêncio é parte desse processo de construção de uma nova visão sobre consentimento, violência, vítima e agressor.

A desumanização também está em assumir que todas as vítimas agirão de uma forma específica e duvidar de todas que não respondam ao que se espera conforme o senso comum. As estranhezas que podemos enxergar num relato fazem parte, muitas vezes, de como o cérebro reage ao trauma: o choque causado pela violência afeta a memória e isso dificulta que a narração do acontecido seja linear, por exemplo. As reações de distanciamento do fato podem ser apenas a forma que a pessoa encontrou para lidar com o que passou.

Marie foi estuprada por um desconhecido que invadiu sua casa, mas a maioria dos estupros são cometidos por conhecidos da vítima. Em casos em que a denúncia recai em ex-namorados, colegas e afins, a credibilidade de quem denuncia é ainda mais baixa. Isso nos faz pensar em como o problema é ainda maior do que o exposto em “Falsa acusação”.

A história contada no livro funciona como um alerta sobre o quanto a cultura do estupro está impregnada em nossa sociedade e como ela colabora para a revitimização das pessoas, especialmente mulheres, que sofreram violência sexual. Uma mensagem nada inovadora, ao menos no meio feminista, mas que precisa ser reiterada enquanto for necessário.

Seis anos separam a Marcha das Vadias do #MeToo e as discussões sobre culpabilização da vítima, consentimento e misoginia institucional seguem buscando uma transformação que virá a partir da informação, do debate e da contestação do machismo e da misoginia.

Que a gente quebre o silêncio e conteste o tratamento que nos é dado ao denunciar casos concretos ou falarmos sobre o assunto. Que a raiva que sentimos ao conhecer casos como o de Marie nos mova para a mudança.


Tradutora da obra: Daniela Belmiro.


Observação: A história do livro foi adaptada em formato de série pela Netflix. Unbelievable é o nome da obra audiovisual em questão.


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#EleNão: as mulheres fazem política e história

Belo Horizonte — Letícia Vianna/Bhaz

Antes, durante e depois

No final de semana anterior ao primeiro turno da eleição de 2018, milhares de pessoas tomaram as ruas de diversas cidades do país e do mundo para se manifestarem contra o presidenciável Jair Bolsonaro e tudo que ele representa.

O movimento #EleNão começou a partir da criação de um grupo no Facebook chamado “Mulheres contra Bolsonaro”, se tornou uma hashtag e, por fim, ocupou também as ruas.

O rápido crescimento do grupo chamou a atenção da mídia e isso atraiu a ira dos fãs do candidato. Através de ameaças e invasões hacker, eles tentaram calar as mulheres. O resultado disso foi a multiplicação de grupos como esse em toda a rede, ações virtuais e a organização da maior manifestação popular dirigida por mulheres na história do Brasil*.

Antes do grupo, a rejeição feminina ao candidato já aparecia nas pesquisas eleitorais. Depois dele, essa rejeição ganhou força, rostos e passou a fazer questão de marcar presença no debate político, apesar do medo de represálias.

Na semana que antecedeu a data marcada para a mobilização, se viu um certo alarmismo nos grupos das mulheres contra o candidato. As ameaças, os xingamentos, os atos pró Bolsonaro sendo marcados na mesma data e a, ainda recente, invasão do grupão, que agora contava com mais de 3 milhões de participantes, intimidava. Mas isso não foi o suficiente para esvaziar as manifestações e elas foram descritas pelas participantes como diversas, alegres, acolhedoras, emocionantes e cheias de vida.

“Se cuida, se cuida, se cuida seu machista, a América Latina vai ser toda feminista” é uma dessas músicas que sempre aparecem nos atos, mas que dessa vez me tocou diferente. Me senti acolhida, esperançosa e forte no meio de mulheres de lilás que entregavam flores de papel colorido com pétalas #EleNão e me emocionei ao ver tantas pessoas se abraçarem, se cumprimentarem, enquanto carregavam no peito adesivos e estampas que exibiam que estavam do meu lado na luta por um mundo mais igualitário, justo e digno. Mesmo sendo tão diferentes de mim em tantos aspectos.

As mulheres foram a maioria, como o esperado, e também as protagonistas. Idosas, jovens adultas, adolescentes e até crianças cantaram “hoje eu acordei e ecoava ele não, ele não, não, não”, segundo o ritmo da Bella Ciao, o hino antifascista italiano.

O ambiente ao meu redor celebrava o afeto, a pluralidade e a alegria e, após sentir isso tudo no peito, eu percebi que essa energia e essa esperança são essenciais para combater o medo e o autoritarismo. “Se não posso dançar, não é minha revolução” disse Emma Goldman e eu repito essa frase hoje porque sei que essa liberdade está em risco e a nossa luta é também uma celebração do mundo que queremos viver.

Belo Horizonte — Letícia Vianna/Bhaz

#EleNão, #ElasSim

Tudo isso me fez pensar em como as mulheres continuam uma minoria na política representativa, mas ganham cada vez mais espaço nas ruas e nas redes.

Nos últimos anos, temos sido protagonistas da maior parte das mobilizações do país, mas ainda assim continuamos vendo mulheres serem usadas como laranjas de partidos políticos que precisam de candidaturas como essas para cumprirem a cota feminina e um desdém pelas opiniões políticas das mulheres.

Durante o período de mobilização do #EleNão, por exemplo, vi muitos homens, inclusive alguns que se posicionam contra o fascismo, tratando as mulheres envolvidas nesse movimento com paternalismo. Alguns chegaram até mesmo a desprezar a importância da organização das mulheres como fato político, acusaram as participantes de seguir modismos e tentaram tutelar a massa feminina insatisfeita. Outros preferiram insinuar que a iniciativa do grupo e dos atos “Mulheres contra o Bolsonaro” partiu de homens como os candidatos Haddad, Ciro e até Alckmin. Todos esses expuseram o quanto têm dificuldades reais de verem mulheres como agentes de qualquer coisa.

Na mesma esteira, li também defensores do #EleNão falarem que essa seria a primeira hashtag a entrar nos livros de história do Brasil. Uma frase como essa parece um elogio e até seria se não tivéssemos diversos exemplos anteriores de mobilizações femininas de grande impacto.

As vozes femininas — e, principalmente, feministas — ecoaram no Brasil e no mundo nos últimos anos**. Vimos a primavera feminista florescer no Brasil com a hashtag #MulheresContraCunha, por exemplo. Essa mobilização merece um destaque especial por ter também o caráter de rejeição ao fato do cara ser misógino, LGBTfóbico e péssimo enquanto político. Um dos motivadores desse repúdio coletivo foram os projetos de lei de autoria de Cunha e outros deputados que buscavam dificultar o direito ao aborto legal para vítimas de estupro. Um deles, o que tentava revogar a Lei 12.845, tem como um dos autores Jair Bolsonaro.

Além do #ForaCunha feminino, vimos também mulheres compartilharem relatos de violência sexual com as hashtags #PrimeiroAssedio, #MexeuComUmaMexeuComTodas, #ChegaDeFiufiu, #MeToo e outras e provocarem um debate público sobre a misoginia, estupro, assédio, culpabilização da vítima e silêncio.

Sei que muitos podem dizer que esse fenômeno transformador da quebra do silêncio sobre violência sexual não tem caráter histórico e eu rebato dizendo: “só porque trata de uma questão que atinge principalmente as mulheres não seria importante o suficiente para figurar em um livro de história?”.

Esse esquecimento*** de mobilizações femininas e a surpresa de alguns em ver um fato político ser capitaneado por mulheres diz muito sobre o porquê de estarmos nas ruas, nas redes e nos bairros, mas ainda custarmos atingir 30% de candidaturas femininas e sermos eleitas.

As mulheres se encontram como protagonistas quando a mobilização parte delas. Fora isso, elas precisam competir por espaço entre os que se colocam como os detentores por direito dele. Por isso, dizer #EleNão junto com tantas mulheres das mais diferentes vertentes políticas significa também dizer que a política é um espaço feminino.

Quando tomamos as ruas porque consideramos um candidato misógino, LGBTfóbico, racista, autoritário, agressivo e incapaz, a gente incomoda todo um sistema que nos coloca como subalternas aos nossos maridos, pais e namorados. Esse incômodo acontece porque ainda é considerado subversivo uma mulher ter ideias próprias e defendê-las através de organização e resistência.

Rio de Janeiro — SILVIA IZQUIERDO AP

*Um levantamento feito por um usuário do Facebook chamado Jonas Medeiros mostrou que 366 cidades marcaram atos. Três deles foram impedidos de acontecer pela justiça.

**O feminismo negro ganhou muito espaço nesses anos também e mobilizações contra o genocídio do povo negro chamaram atenção. #OndeEstáAmarildo, #QuemMatouMarielleFranco? e #LiberdadeParaRafaelBraga são alguns exemplos de movimentações nesse viés.

***A presença das mulheres na política não é algo recente e o fenômeno de invisibilidade e esquecimento relacionados com essa seara também não. Dona Leopoldina, conhecida como esposa de D. Pedro I, por exemplo, esteve envolvida na articulação da independência do país, apesar de não ser lembrada por isso. Em diversos movimentos da história, nós tomamos frente de movimentos que são contados em muitos livros de forma que dá a entender que foram feitos por homens. Alguns exemplos são: Revolução Francesa, Revolução Russa e Comuna de Paris. Não saber sobre o passado político das mulheres contribui para os movimentos das mulheres serem vistos como uma grande novidade ainda hoje. Para quem cresce sem conhecer, por exemplo, as sufragistas, o ativismo político feminino parece fora do lugar. O apagamento do nosso passado contribui para que os movimentos femininos de hoje sofram com tanto descrédito.

De princesa à bruxa

Imagem de parte do kit press que recebi da Editora Leya — Acervo Pessoal — Adquira “A princesa salva a si mesma neste livro” aqui e “A bruxa não ai para a fogueira neste livro” aqui.

Se em a princesa salva a si mesma neste livro, Amanda Lovelace começa com um poema que homenageia o personagem Harry Potter e isso se relaciona com o conteúdo da primeira coletânea da autora, a referência à Katniss Everdeen em a bruxa não vai para a fogueira neste livro também não é por acaso.

Ao falar da personagem principal da trilogia Jogos Vorazes, Amanda diz que a garota em chamas a inspirou a inflamar o mundo. Com poesias que tratam sobre cultura do estupro, críticas aos padrões de beleza, violência, opressão histórica e luta, a poeta tenta acender uma chama dentro de cada uma de suas leitoras.

A trajetória de princesa à rainha do primeiro livro é sobre descoberta, amadurecimento e resiliência. Nela, a escritora de New Jersey expôs sentimentos, experiências, perdas e as violências que passou. Ela partiu de si e atingiu diversas pessoas que viveram situações parecidas.

Compartilhar histórias, principalmente essas que comumente são jogadas para debaixo do tapete, como a Amanda e muitas outras fizeram, encoraja outras pessoas a falarem de acontecimentos semelhantes e a reconhecerem o que viveram.

Seja através de poesia, contos, crônicas, artigos ou mesmo hashtags como #MeToo, #MeuPrimeiroAssedio e #MeuAmigoSecreto, vozes, principalmente femininas, estão sendo amplificadas e o que elas dizem mostram ao mundo o quanto a violência e o machismo ainda é, infelizmente, parte da vida das mulheres.

Durante a leitura de a bruxa não vai para a fogueira neste livro é impossível não pensar nesse momento que vivemos. As mulheres descobriram que outras também passam e passaram por situações semelhantes às que elas vivenciaram e que isso não é por acaso. Há um sistema de dominação por trás de tantas coincidências.

Quando Amanda escreve sobre as mulheres que vieram antes de nós e foca, principalmente, nas bruxas queimadas em fogueiras, a gente se lembra que o sistema que abafa tantas vozes hoje fez o mesmo no passado.

A intertextualidade, muito presente no trabalho da autora, é usada também para nos fazer pensar em todo esse sistema. Obras e personagens ficcionais, como June, de O conto da Aia, são lembradas em poemas. Todos os nomes presentes dessa forma no livro se relacionam com resistência. Inclusive o de Emma Sulkowick, que não é uma escritora ou uma personagem ficcional, mas é lembrada por Amanda por ter carregado durante anos um colchão por todo o campus universitário como um protesto contra os estupros que acontecem nas universidades e como eles são tratados pelas instituições.

A performance feita por Emma recebeu o nome de “Carry that weight” e se relaciona com sua própria vivência. Ela sofreu um estupro, denunciou, o caso foi arquivado pela universidade e ela seguiu todo o curso sendo obrigada a conviver com quem a violentou. Ao andar com o colchão em que ela sofreu a violência pelo Campus, Emma compartilhou com o mundo sua história como um manifesto.

a bruxa não vai para a fogueira neste livro reúne muito do que descobrimos coletivamente nos últimos anos e convida quem lê para mudar esse sistema que segue vitimando mulheres por serem mulheres. A obra cita exemplos de força, como June e a ativista Emma, e pode ser lida como um manifesto poético. Nela, o fogo é colocado como a matéria-prima para a transformação. Ele representa a raiva, a luta e a resistência.

De princesa à bruxa. Que o futuro nos reserve uma transformação que mude a realidade das mulheres que vivem nesse mundo.


No dia 11/07/18, a Editora Leya promoveu um encontro com leitoras. Conversamos sobre muita coisa, entre elas, sobre a importância de poetas como Amanda Lovelace. Além do bate-papo entre editoras e leitoras, rolou também uma live com a autora de a princesa salva a si mesma neste livro e a bruxa não vai para a fogueira neste livro. O conteúdo é em inglês e está disponível no Facebook da editora. Confira a live aqui.


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