talvez ainda dê tempo de reiniciar

Mathew Schwartz

uma manchete sobre uma ameaça de golpe paira na tela lado a lado com segredos e dicas para:

a) comprar o melhor celular
b) investir o auxílio emergencial
c) economizar dinheiro
d) melhorar a nota no Serasa
e) se tornar um empreendedor
f) dormir bem
g) cortar carboidratos
h) emagrecer
i) se manter produtivo

não tem nada sobre ganhar dinheiro dormindo
ninguém acredita mais nisso
mas ainda tem quem creia em cloroquina cápsulas de vitamina D anitta
e em um certo Messias

no pé da página
as notícias dizem:
bilionários cada vez mais ricos
extrema pobreza em ascensão
violência doméstica também

clique aqui se você está ciente e não quer continuar


Esse poema foi selecionado para antologia antifascista da Hecatombe, selo da Urutau. Para saber mais sobre a publicação que vai vir, convido todos a acompanharem as redes sociais da editora.

#EmDefesaDoLivro: discutindo a tributação proposta pelo Guedes

Photo by Aaron Burden

A proposta de reforma tributária encabeçada pelo Paulo Guedes, ministro da Economia do governo Bolsonaro, tem sido apresentada toda fatiada, confusa e sem perspectivas de mudanças positivas. Se há anos se fala da necessidade de simplificar as regras tributárias e a proposta em questão busque, ao menos teoricamente, isso, por que então a apresentação das proposições tem acontecido em partes, tornando difícil o acompanhamento por parte do povo? Por que a simplificação da tributação sobre o consumo tem sido colocada agora como uma solução de todos os problemas sendo que sequer inclui qualquer comentário sobre ICMS e ISS? Por que esse é o foco, sendo que a regressividade do nosso Sistema Tributário é muito criticada há tempos? Se historicamente muito se discute sobre a importância de diminuir a tributação sobre o consumo no Brasil, por que o ministro da Economia na prática propõe justamente o oposto disso? O que pode estar por trás da ideia de Guedes de acabar com a desoneração do livro? Por que essas questões importam na hora de falar em defesa do livro?

Arrecadação, tributação sobre o consumo e desigualdade

Uma das marcas do Sistema Tributário Brasileiro é sua regressividade, que significa que, na prática, quem tem mais, paga menos proporcionalmente*. Além de questões como a falta de tributação sobre lucros e dividendos distribuídos a acionistas de empresas e a não instituição do imposto sobre grandes fortunas já previsto na Constituição, o Brasil, ao tributar em peso bens e serviços, faz com que as pessoas mais pobres não consigam escapar da tributação ao fazer compras essenciais e usufruir de serviços necessários, ainda que haja uma desoneração de itens da cesta básica, enquanto quem tem mais dinheiro segue vivendo numa situação de conforto tributário fortalecido inclusive com benefícios fiscais de origem e intenção duvidosa.

Essa distorção é causada por n fatores e é um problema porque bate de frente com o caráter distributivo que a tributação deveria ter, especialmente em um país como o Brasil. Para combater a desigualdade, a tributação deve focar na propriedade e renda da parcela mais rica da população, não no consumo geral e irrestrito que faz com que todos, ricos e pobres, paguem os mesmos tributos ao consumir. A alta tributação sobre o consumo é criticada até mesmo por tornar nossa economia mais engessada. Não tem como falar em aumentar arrecadação e tornar o sistema menos desigual sem mexer na tributação da herança, da doação, dos barcos, aeronaves, dividendos e outras manifestações de renda diferenciada.

Os tributos, assim como os benefícios fiscais, possuem, além do caráter fiscal e arrecadatório, a possibilidade de apresentarem efeitos e características extrafiscais. Quando o governo aumenta, diminui ou mesmo isenta a tributação sobre o cigarro ou alguns produtos importados, por exemplo, essa pode ser uma tentativa de afetar o consumo dos produtos atingidos pela majoração ou minoração. Dessa forma, o governo pode incentivar o consumo de produtos específicos, enquanto praticamente inviabiliza a compra de outros. Sendo assim, a tributação é uma questão que vai muito além da arrecadação em si, sendo usada inclusive como um desestímulo para se consumir algo.

Quando Paulo Guedes demonstra que quer ampliar ainda mais a tributação sobre consumo, atacando diretamente a isenção das contribuições especiais prevista na lei 10.865 de 2004 que atinge a venda e importação dos livros — e de diversos outros itens, sendo alguns desses bens também relacionados com questões de acesso — , ele não busca um aumento de arrecadação ou uma melhora do Sistema Tributário Nacional no sentido de torná-lo menos desigual, como ele alega estar fazendo. Apesar do ministro dizer que o livro é um produto da elite e taxá-lo é importante por isso, o que ele faz é tentar inviabilizar o mercado livreiro e desincentivar o consumo dos livros, enquanto defende a manutenção de uma política tributária falha e que prioriza quem ele diz atacar com essa proposta.

O livro, a elite, os direitos e as estratégias de usurpação de direitos

A imunidade tributária do livro, do jornal e do periódico e o papel destinado à sua impressão é um instituto jurídico histórico — nascido em 1946, por iniciativa de Jorge Amado, e reafirmado nas Constituições seguintes, incluindo a de 1988 — que proíbe a instituição de impostos sobre esses itens e pode ser interpretado inclusive como uma cláusula pétrea, tornando inconstitucional qualquer restrição, já que a imunidade cultural é relacionada com o direito à liberdade de expressão e a ideia de facilitar o acesso à cultura, à educação, ao conhecimento, à informação e à ciência, questões relacionadas aos direitos fundamentais previstos.

No mesmo ano que surge uma proposta de Reforma Tributária que ataca o livro, o STF aprovou uma súmula vinculante sobre a imunidade tributária cultural alcançar também os livros eletrônicos e seus componentes importados, reafirmando a importância que a Constituição, seus guardiões e o direito brasileiro dão para o incentivo à leitura, ao conhecimento, ao direito de expressão e à facilitação de acesso às informações e cultura.

O Brasil adota hoje a teoria tributarista que afirma a existência de cinco espécies de tributo: os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria, o empréstimo compulsório e as contribuições especiais. A imunidade cultural do livro o protege somente de impostos, sendo possível taxá-los com outros tributos, como as contribuições especiais, que, no caso, foram isentadas com a lei 10.865 de 2004, que agora está ameaçada.

A imunidade cultural do livro não é alvo direto de Guedes no momento — ele busca acabar com a isenção dos livros nas contribuições especiais — , mas é importante ser lembrada, porque esse ataque indica as intenções do atual Ministro da Economia e as estratégias que esse governo usa para defender seus interesses. Além das emendas constitucionais terem um processo legislativo mais complexo e dependente de mais votos para sua aprovação, o que dificulta que se mexa diretamente na imunidade que protege os livros dos impostos especificamente, há a interpretação de que esse instituto constitucional não pode ser restringido e é por isso que o foco do governo atual envolve mexer na questão do livro sem ter que lidar com essas dificuldades e, no momento, busca mudar a legislação infraconstitucional que isenta o livro de contribuições especiais. Mesmo sem afrontar diretamente a imunidade, Paulo Guedes sabe o quanto essa proposta já é uma forma de relativizar direitos e combater o que a Constituição tenta buscar ao definir o livro como imune aos impostos, além de saber o quanto soa ameaçador para o mercado livreiro.

Apesar disso, qualquer discussão sobre essas questões tributárias, como o fim da isenção prevista na lei 10.865 de 2004, envolve o legislativo no todo, o que cria obstáculos para que uma proposta como essa continue sem modificações, possibilitando que a gente lute, pressione e se aprofunde no debate da Reforma Tributária no todo. Até porque há toda uma campanha em defesa do livro se desenhando no momento.

Nesse sentido, é preciso atentar-se ao fato de que apresentar algo absurdo e improvável de ser aprovado no legislativo e depois voltar atrás é também estratégia para relativizar direitos. Caso a aprovação não venha ou ocorra uma desistência nesse sentido, eles vão querer que pareça negociação, que eles voltaram atrás, sendo que isso é só mais uma parte de um projeto maior que envolve o enriquecimento de poucos e a manutenção dos privilégios que mantém poucos no topo explorando, de maneira cada vez mais barata, pessoas, especialmente a partir do encolhimento da classe média e da renda dos mais pobres já em curso. Lembrando aqui que o Paulo Guedes tinha a intenção de acabar com a desoneração dos itens de cesta básica, mas “desistiu” pela impopularidade da medida, mas que, infelizmente, quando se fala em cultura, a sociedade brasileira ainda tende a pensá-la como algo menor, próximo até da futilidade.

Sendo assim, reafirmar a solidez e importância do instituto da imunidade, ainda que ela não seja o alvo direto da reforma, é uma maneira de defender o livro, porque expõe o quanto esse ataque é parte de um jogo político que envolve jogar para a torcida bolsonarista, enquanto tenta enfraquecer a imunidade cultural e o mercado do livro e da cultura para futuras ameaças, além de invisibilizar outras questões problemáticas da Reforma Tributária que está sendo proposta.

É preciso defender o livro hoje. Esse ataque não é gratuito, não é só para agora, é uma tentativa de criar brechas para investidas — no presente e no futuro — contra o livro, a cultura e a educação e os direitos de acesso dos mais pobres a tudo, enquanto reafirma o caráter anticientífico, anticultura e a favor da homogeneização desse governo e apoiadores.

Quando Guedes e seus apoiadores afirmam que o livro é um produto da elite e por isso precisa ser taxado, isso é colocado como se houvesse um enfrentamento dos privilégios de parcela da população por parte deles, quando na verdade se segue ignorando que manter o sistema tributário regressivo só aumenta a desigualdade. Até porque a imunidade que o governo busca relativizar e a isenção que ele quer acabar são tentativas de tornar o livro um produto mais acessível para a população no geral e, historicamente, surgiu como uma estratégia para garantir liberdade de expressão e dificultar a censura. Se Bolsonaro e seu Ministro da Economia estivessem interessados em tornar o livro um artigo acessível para todos, eles não tentariam acabar com essa desoneração e apresentariam projetos de lei e políticas públicas que buscassem fortalecer de fato, ainda que de maneira indireta por questões de competência constitucional, bibliotecas públicas e programas de aquisição de livros para escolas, universidades e outros espaços. O interesse desse governo é perpetuar a ideia de que livros, leitura e conhecimento são para poucos e não são para pobres, enquanto negam dados que comprovam o interesse da classe C, D e E pela leitura e ignoram que a literatura, a cultura e o conhecimento são para todos, ainda que exista obstáculos de acesso que devem ser combatidos. Eles querem que as pessoas, com o orçamento cada vez mais restrito graças às políticas e o próprio sistema que eles defendem, olhem para o livro com cada vez mais distância, enquanto são alimentadas com a raiva que eles manifestam por esse objeto, vide a afirmação de Bolsonaro sobre livros didáticos terem muita coisa escrita, e também pela ideia falsa e elitista de que ler não é para elas.

Fora que essa investida contra o livro é uma maneira de atacar a possibilidade de publicação e alcance de vozes que comumente são colocadas como minoritárias, tanto no sentido de grupos vulneráveis por opressões como raça e gênero, quanto no de ideias que batam de frente com o neoliberalismo e fazem importantes denúncias. Esse é um ataque contra o pluralismo de ideias, a bibliodiversidade, contra a imaginação, contra o ato de criar e a liberdade de expressão das vozes dissidentes. Fator que é importante de ser lembrado, já que Bolsonaro e seus apoiadores costumam estar do lado de tentativas de censura e ataques à cultura que vão além da literatura e o Brasil, nos últimos anos, viu o debate sobre autoria e diversidade avançar.

Inviabilizar o mercado do livro é uma maneira de garantir que, a partir de benefícios fiscais ou outras políticas, apenas algumas obras sejam lidas, publicadas e vendidas. E que cada vez menos pessoas possam acessar o que fuja do que eles querem incentivar, já que o próprio Guedes afirma que resolveria a questão de acesso doando livros para os pobres simplesmente, sem qualquer explicação de como isso aconteceria.

E o mercado do livro? E o futuro? E a Reforma Tributária?

O mercado editorial envolve vários profissionais além do escritor e o editor, como todos aqueles que fazem parte do processo de tradução, diagramação, revisão, preparo, impressão, distribuição, marketing e venda. Se o livro já é caro hoje, especialmente em relação ao salário médio do brasileiro, o aumento da carga tributária sobre ele afastará as pessoas ainda mais da leitura, da cultura e também da escrita, impressão e publicação, porque é impossível ignorar os profissionais envolvidos nessa cadeia de produção na hora de precificar uma obra. O preço do livro aumentará ainda mais e a possibilidade de comprar um exemplar ficará ainda mais difícil para a maioria das pessoas, especialmente porque Paulo Guedes, Bolsonaro e toda a trupe agem a favor da manutenção de privilégios de poucos em todas as instâncias. Nesse sentido, é importante lembrar que o mercado editorial tem sofrido com dificuldades e encolhido cada vez mais nos últimos anos, com a pandemia do coronavírus atingindo em peso o faturamento das livrarias de rua.

Fora isso, é importante dizer que a taxação do livro com a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) — nome do tributo que juntará a PIS/PASEP e a CONFINS numa alíquota única de 12% — inviabilizará a sobrevivência de diversas editoras, livrarias e também escritores e outros profissionais do livro. A alíquota proposta é bem maior que o percentual que os escritores recebem com a venda de cada exemplar de suas obras mesmo em grandes editoras, por exemplo. Se essa proposta passar, veremos a crise do livro se agravar, criando mais desemprego e menos acesso a um item essencial para quem acredita em livre expressão e vê a efabulação como uma necessidade humana que precisa ser satisfeita, como diz Antonio Cândido em seu famoso ensaio sobre direito á literatura. E se ela não passar, muito por causa da pressão que exerceremos agora, não devemos encarar essa desistência como uma negociação, uma bondade deles, um sinal de racionalidade e nem aceitar que essa possível renúncia seja usada para justificar outras medidas que seguirão deixando o Sistema Tributário brasileiro nesse mesmo lugar de mantenedor de desigualdades.

Se a gente quer defender o livro e todos os direitos que se relacionam a ele, é preciso olhar para o todo e combater esse tipo de política econômica e social que parte sempre para a supressão de direitos, porque essa ofensiva contra o livro só demonstra o quanto a fruição da cultura, incluindo aqui a literatura, é um direito humano que precisa ser preservado e ampliado, especialmente quando se torna foco de governos que não toleram o diferente e atacam a literatura pelo seu potencial subversivo, humanizador e denunciante. Toda a discussão sobre o acesso ao livro também envolve questões estruturais da sociedade brasileira que são constantemente reiteradas por essa política fiscal que se posiciona a favor de manter os ricos e poderosos pouco tributados e tem sido reforçada pelo Guedes nessa proposta que agora debatemos.


*É interessante destacar que a tributação sobre o consumo afeta especialmente as mulheres, por elas serem as principais responsáveis pelas compras da família e também porque serviços e produtos, como sabonetes, absorventes, desodorantes, shampoos e afins, que constam como destinados às mulheres costumam ser mais caros sem qualquer motivo específico para isso. Além de tudo, a situação piora quando se analisa o caso da mulher negra, que lida com isso e ainda vive disparidades bem específicas no mercado de trabalho que fazem com que ela receba menos que mulheres brancas e homens no geral. (Mulheres brancas recebem menos que homens brancos). A desigualdade alimentada pela tributação regressiva contribui para a feminilização da pobreza.


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Por que pregar abstinência sexual não é uma política pública eficiente?

Damares Alves, chefe do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Promover a abstinência sexual não funciona como política pública para evitar gravidez na adolescência e nem o contágio de doenças sexualmente transmissíveis entre jovens. O estudo de casos como o dos Estados Unidos no período Bush mostram a ineficiência desse tipo de programa. Até mesmo Damares Alves, enquanto ministra, admitiu que não há pesquisas que embasam a proposta como ela foi feita, mas ainda assim essa é uma medida que costuma ser bem vista por muitos e a gente precisa parar para pensar no porquê disso.

Damares Alves, por meio de seu discurso, se coloca como a única e verdadeira defensora das crianças e adolescentes. Ela manipula as pessoas a partir disso e tenta convencer a população de que defender qualquer coisa diferente da promoção da abstinência total é estimular que crianças e adolescentes transem. Ela aproveita a preocupação comum de pais e cuidadores com o presente e o futuro de seus filhos para defender como política pública algo que não encontra amparo científico, enquanto ignora questões essenciais ao debate como machismo, lgbtfobia e, principalmente, os altos números de casamentos infantis ou precoces, casos de exploração sexual e de estupro de vulnerável.

Com a frase “Se provarem que vagina de menina de 12 anos está pronta para ser possuída, paro de falar”, a ministra defendeu o seu programa de maneira completamente desonesta. Ao dizer isso, ela, a partir do sensacionalismo, tentou colocar quem é contra a abstinência sexual total como política de governo como defensor da pedofilia, sendo que a educação sexual, sempre dada de acordo com a idade dos alunos, funciona justamente como uma forma de proteger crianças e adolescentes de estupros, especialmente nos casos em que eles acontecem dentro de casa, entre familiares e vizinhos, ou mesmo fora, em locais com ares de confiabilidade e presença de figuras de poder, como padres e pastores.

Além disso, sabendo que na legislação brasileira há o tipo penal do estupro de vulnerável, que presume como violência sexual qualquer ato sexual com menores de 14 anos, o discurso de Damares Alves se mostra ainda mais manipulador. Legalmente, antes dessa idade não há sexo com consentimento, há abuso sexual presumido, logo já se defende a abstinência sexual de pessoas que se encontram nessa fase da vida.

Quando o próprio governo, a partir da figura da Damares, sugere uma atividade educativa que envolve uma fita adesiva que passa colando entre os estudantes para afirmar que depois de um tempo a menina*, especialmente a menina, não “cola” com ninguém, fica evidente o machismo e o anticientificismo que envolve a defesa dessa política de governo. A partir dessa declaração, se percebe o quanto eles buscam cercear o exercício da sexualidade feminina não só enquanto adolescente. Eles querem promover o ideal de casamento mesmo, ignorando as estatísticas brasileiras sobre casamento precoce e suas consequências.

A popularidade de propostas como essa se sustenta na má-fé de seus defensores e na propagação de desinformações comuns ao tema. A sexualidade em si é um tabu inclusive para adultos e justamente por isso Damares Alves explora a temática a partir do senso comum moralista, machista e religioso e usa isso para promover seus interesses, ignorando estatísticas e o alcance do problema.

Com um discurso agressivo contra quem discorda da promoção da castidade como política pública, quem defende essa agenda oferece uma resposta superficial que não soluciona nada, apenas empurra para debaixo do tapete um problema que, ao não ser trabalhado como deve, tende a se agravar. Sem o cuidado necessário, o estímulo da abstinência misturada com o papo de alma gêmea presente no discurso da ministra pode acabar reverberando em um aumento de casamentos precoces, por exemplo.

A educação sexual é provavelmente o principal e melhor caminho para evitar a gravidez na adolescência e a transmissão de doenças sexualmente transmissíveis porque, além de informar sobre o funcionamento e cuidado do corpo, as transformações da adolescência, os métodos contraceptivos e as doenças sexualmente transmissíveis, ela também ensina sobre consentimento e estupro, o que dá ferramentas para as vítimas denunciarem seus algozes e contribui para construção de uma sexualidade saudável para jovens, independente do gênero.

Falar “não transe”, sem qualquer outro aprofundamento ou informação, não ajuda em nada, porque essa frase colocada assim só contribui para alimentar o tabu do valor da virgindade feminina, a culpa, o pecado, o desejo pelo proibido e, claro, a desinformação e a perpetuação do silêncio que envolve casos de estupro.

Informar, falar sobre e debater sexualidade e gênero levando em conta questões além da biologia em si, sem imposições ou terrorismos, é o que ajuda adolescentes a entenderem as responsabilidades com o outro e consigo mesmos necessárias para a construção e exercício de uma sexualidade saudável. Isso, na maioria das vezes, influencia na decisão dos jovens em adiar o início da vida sexual e permite que eles aprendam a se proteger de gravidezes, doenças e até mesmo violências quando ou caso decidirem transar — ensinamentos que podem ser úteis até mesmo antes desse momento chegar.

A castidade como foco de uma política pública falha porque isola o assunto de quem mais precisa falar sobre, deixando jovens sem acesso às informações essenciais para o início de uma vida sexual segura. Assim, a pornografia e os mitos sobre o sexo ganham espaço entre adolescentes e até mesmo adultos. O impacto de uma política pública como essa se perpetua além da menoridade porque reafirma lugares comuns sobre sexo, desinformação e silêncio. É a vitória do “não, porque sim” frente à construção de uma sexualidade responsável e respeitosa. É a escolha por criar mais uma barreira de acesso aos direitos sexuais e reprodutivos. Escolha essa que já está sendo feita em outros âmbitos, como no pedido de eliminação, por parte do Brasil, de qualquer tipo de referência sobre “educação sexual” e “direitos reprodutivos” nos documentos da ONU e OMS.

No mais, além de aulas e campanhas de educação sexual, é essencial que as políticas públicas sobre sexualidade levem em conta o efeito da falta de oportunidades no imaginário social que coloca filhos e casamento como um meio de atingir uma certa autonomia, especialmente para meninas e mulheres. Informação sem perspectiva não é o suficiente. É preciso que as políticas públicas interajam entre si e expandam a ideia de futuro que muitos jovens possuem. Combater a miséria, por exemplo, é essencial para isso. Somente ações coordenadas e abrangentes que envolvam aulas de educação sexual baseada em evidências e debate protegerão meninas e meninos da naturalização desse processo que envolve, muitas vezes, pessoas maiores de idade que se aproveitam justamente da falta de conhecimento, maturidade e horizonte de crianças e adolescentes para conseguir o que querem. Seja pelo casamento ou pela exploração e violência sexual.


*O uso do termo “menina” nessa fala vem de novo reiterar no imaginário social que a ideia de que ser contra a abstinência sexual como política pública é defender a pedofilia.


O lugar da mulher para a ofensiva conservadora

No primeiro dia da legislatura dos deputados federais, Márcio Labre (PSL-RJ), um estreante, propôs um projeto de lei que dispõe sobre a proibição do comércio, propaganda, distribuição e implantação pela Rede Pública de Saúde de micropílulas, pílulas do dia seguinte, implantes anticoncepcionais e DIU com a justificativa de que tais produtos são abortivos*.

A atitude de Márcio Labre é parte de uma ofensiva conservadora que encontra no legislativo um terreno fértil para prosperar. Ele agora se soma a um grupo expressivo de deputados que usam a bandeira anti-aborto para promover seus ideais de mulher e religião com um projeto que consegue ser ainda mais agressivo que os famigerados Estatuto do Nascituro e a PEC 181/15, conhecida como “Cavalo de Troia das Mulheres”. O deputado, ao tentar proibir o acesso a contraceptivos, leva ao extremo a bandeira do controle do corpo das mulheres. A criminalização do aborto não é o suficiente, Márcio quer restringir ainda mais a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade com uma limitação absurda relacionada a qual método contraceptivo elas poderão escolher usar. Com o PL 216/2019, o parlamentar busca dificultar que mulheres detenham o poder de tentar evitar uma gravidez de forma ativa.

A camisinha não é um dos itens listados por ele, mas seu uso costuma estar atrelado a uma cooperação masculina. Apesar da camisinha ser o contraceptivo mais indicado, já que também protege contra as doenças sexualmente transmissíveis, seu uso sofre resistência por parte de homens, principalmente dentro de relacionamentos, o que torna os contraceptivos como a pílula do dia seguinte e o DIU essenciais para que mulheres possam ter um controle maior sobre seus corpos e possíveis gravidezes. O anticoncepcional padrão também não foi listado pelo autor do projeto, porque ele não o considera “micro abortivo”, mas as restrições elencadas no PL já impactariam bastante os direitos sexuais e reprodutivos de quem possui útero e capacidade de engravidar. A escolha feminina de como se prevenir de uma gravidez seria muito afetada, principalmente das mulheres que não podem utilizar o anticoncepcional padrão por causa do risco de trombose e outras doenças.

A maioria dos projetos de lei e emendas constitucionais nesse viés buscam dificultar ou mesmo proibir o aborto nos casos legais (estupro, risco de morte e anencefalia). Com Labre não foi diferente. Além do projeto que tem vários contraceptivos como alvo, ele também propôs o PL 260/2019, que diz em seu primeiro artigo que:

“ É proibido o aborto de fetos humanos, pelas próprias gestantes ou por ação de terceiros, em qualquer hipótese, independentemente do estágio da gravidez ou do tempo de vida do nascituro, admitida somente, por única exceção, a possibilidade de abortar quando a continuação da gravidez trouxer comprovação e inequívoco risco de vida para a gestante.”

No primeiro dia de legislatura, o estreante do PSL deixou claro que a mulher, para ele, é um mero receptáculo ao se colocar contra o aborto em caso de gestação fruto de estupro e buscar a proibição da pílula do dia seguinte, medicamento não abortivo, que impacta diretamente na garantia legal de amparo médico e psicológico para vítimas de estupro. Entre outras coisas, a lei 12.845/13** prevê a pílula do dia seguinte como parte do atendimento de vítimas de violência sexual com o objetivo de evitar que haja gravidez e a pessoa tenha que passar pela decisão de abortar ou não.

Os projetos de lei do parlamentar, caso sejam aprovados, buscam impor a gravidez indesejada e fruto de estupro a todo custo. Nem mesmo a profilaxia de gravidez seria um direito. Com isso, o direito do estuprador de se reproduzir estará acima da integridade e vida da vítima. Márcio quer fazer de tudo para obrigar mulheres a gestarem, independente se foi estupro ou não.

O controle do corpo da mulher e a caça de seus direitos reprodutivos é parte essencial de qualquer projeto de governo que tenha como base a religião, os bons costumes, o conservadorismo e o autoritarismo. A ficção nos mostra isso: “O conto de Aia”, escrito por Margaret Atwood, por exemplo, é uma história sobre um regime autoritário que se baseia e se sustenta no controle dos corpos femininos.

Isso se dá não só porque alguns acreditam que fazem o bem com suas posturas “pró-nascimento” e misóginas, mas porque atacar as liberdades femininas é sempre um caminho mais fácil para quem quer manter e ampliar seu poder. O machismo do mundo de hoje ainda clama por qualquer coisa que busque controlar as mulheres. Políticos interessados em popularidade e polêmica usam essas pautas, principalmente as que tem mais apelo como o aborto, para se colocarem como paladinos da justiça e se afirmarem perante a sociedade. Com base nisso, podem, por exemplo, justificar inércias, omissões, corrupções e votos contra o povo com o argumento de que o foco precisa ser pautas como essas.

Restringir a autonomia das mulheres é bandeira vista como necessária por uma parcela de pessoas, especialmente homens cis, que se definem como capazes a partir dessa ideia de que a mulher existe para complementar os homens. Concepção que serve como base para toda a divisão sexual do trabalho.

Os apoiadores de homens como Márcio Labre encaram esse tipo de projeto político como a chance deles voltarem a terem empregos bacanas, conseguirem sustentar uma casa, serem detentores de um pátrio poder que atinge mulheres e filhos. Eles querem o controle estatal para garantir que eles a obediência e submissão de mulheres e crianças.

O controle da capacidade reprodutiva feminina, por mais que seja pintado apenas como uma pauta moral, está relacionado com economia, emprego, mão de obra e é uma bandeira que faz tanto sucesso porque promete manter certos privilégios. O desejo de domínio do capital reprodutivo se dá por causa da necessidade de haver reprodução e cuidado da prole para manter certas estruturas, inclusive econômicas. A reprodução é tratada como algo além do desejo individual da mulher, ela tem uma função numa sociedade como a nossa. A transmissão da propriedade, por exemplo, se relaciona com filhos e esposo.

Quem defende isso vê o passado como meta a ser buscada. A bancada da Bíblia — e também da Bala e do Boi — usam a frustração com o presente e definições culturais da função de homens, mulheres, brancos, negros, indígenas, terra e propriedade, para conquistar votos e poder. Eles contam com os ressentidos com o avanço de pautas feministas para encher os bolsos.

O projeto de lei do deputado conservador da vez é um elemento de uma ofensiva que busca determinar que cabe às mulheres a função primordial de parir, cuidar, satisfazer e aos homens todo o resto. Esse resto, como tarefa masculina, é melhor pago, tem status profissional, trabalho formal, enquanto o que a mulher faz é vocação, destino biológico, milagre, bondade, sacrifício ou mesmo redenção de uma vida de pecados próprios ou de Eva ou Lilith.

Com grande parte do Legislativo e do Executivo combinados em promover um projeto político de promoção de desigualdade entre homens e mulheres, pautas como a disparidades salarial, desemprego e dificuldade para retornar ao mercado de trabalho após ter filhos, falta de creches públicas, e, principalmente, a tripla jornada de trabalho seguirão sendo colocadas como pouco importantes, apesar de serem tão significativas. A maternidade precisa ser obrigatória e carregada de sacrifícios e perda de autonomia para esses que dizem defender tanto a família.

O Brasil caminha a passos largos para se tornar um país teocrático e essa trajetória conservadora é uma busca pela manutenção de um status quo e de um poder que tem sua expansão como algo naturalmente autoritário. A consequência do avanço de pautas como essa é ainda mais mortes de mulheres na clandestinidade. O projeto político que ganha cada vez mais voz no país negligencia a vida, a saúde, a autonomia e a subjetividade de mulheres. A maternidade não pode ser compulsória.

*Micropílulas, DIU, implantes anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte não são abortivas. Sendo a última vítima de ataques anticiência rotineiros, apesar desse medicamento apenas adiar a ovulação e evitar que o útero se prepare para receber um óvulo fecundado.

**Há várias pessoas no Congresso Nacional e fora dele que defendem que a pílula do dia seguinte é abortiva e querem impedir o uso dela. Magno Malta, Eduardo Cunha, Pastor Eurico, Pastor Marco Feliciano, Bolsonaro e outros defendem a revogação da lei 12.845/13, a lei que garante atendimento médico e psicológico para vítimas de estupro, com base nesse argumento. Ou seja, caso o PL 6055/13 passe, não há chance de veto.

*** Esse controle tanto falado em todo o texto é motivado pela busca pelo domínio do capital reprodutivo.


Observação: no final da tarde do dia 06/02, o deputado apresentou requerimento para retirada do PL sobre a proibição de diversos contraceptivos, mas disse que no futuro apresentará outro projeto, dessa vez mais fundamentado, com finalidade de informar que a minipílula, a pílula do dia seguinte, o DIU e os implantes anticoncepcionais são “micro abortivos”. Ou seja, essa retirada é apenas estratégica. O outro PL, também absurdo, segue sem retirada.


No dia 12/02/2019, o Senado desengavetou o projeto de emenda constitucional 29/2015. A PEC em questão busca acrescentar ao artigo 5º da Constituição que a vida é inviolável desde a concepção, assim como a PEC 181/15 que ganhou destaque ano passado queria fazer. Essa mudança constitucional, se for feita, pode amparar a criminalização do aborto em qualquer situação. Esse é mais um exemplo recente de como esses ataques são parte de um projeto político de poder que tem ganhado cada vez mais força no país.


Em junho de 2019, Projeto de Lei do vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) ganhou as manchetes brasileiras por propor a internação compulsória de mulheres com “propensão ao abortamento” e uma série de medidas, como obrigar a mulher a ouvir o coração do feto bater, para tentar impedir abortos nos casos legais. Esse PL é claramente inconstitucional, mas, ainda assim, merece ser criticado e exposto como a política de controle de corpos que é.


Em setembro de 2019, o Conselho Federal de Medicina, em uma nova resolução, definiu que gestantes não possuem o direito à recusa terapêutica: “A recusa terapêutica manifestada por gestante deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.”

A resolução apresenta perigo por colocar os corpos das mulheres grávidas como tuteláveis e justificar isso usando o feto, como se a mulher que gera fosse uma mera incubadora, e assim abre precedente para violência obstétrica “justificada”. Saiba mais aqui.

Em agosto e setembro de 2020 um caso de aborto legal de criança gestante por estupro se tornou emblemático e foi manipulado e atacado pelo governo, com direito a posterior edição de portaria para restringir o direito ao aborto legal na prática. Mais sobre aqui.

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Roger Waters nos convida a resistir

Acervo pessoal

Roger Waters nos ofereceu um verdadeiro espetáculo sensorial na noite desse último domingo (21/10). Sons, imagens, luzes e até mesmo uns graves que fazem nossas entranhas vibrarem junto. No meio de tanta gente, nem o olfato é poupado. Pipoca, cigarro — legal e ilegal — e algum perfume bem doce, tudo isso bem misturado, invadem as narinas, enquanto a música nos faz sentir vivos como nunca.

Ao tirar os olhos do palco, o espetáculo também continua. Da arquibancada vejo gente, muita gente. São 51 mil pessoas e seus rostos e corpos juntos criam uma cena que me faz pensar no Mineirão como um quadro impressionista: quando olhamos o todo, vemos o público nas arquibancadas e pistas cheias, mas só enxergamos pontinhos manchados se tentamos focar.

Essa multidão canta junto clássicos como Time, Wish you are Here e Another Brick in the Wall, mas nessa última há uma disputa de narrativa. Quando as crianças tiram o uniforme de presidiário e exibem camisas com a palavra Resist estampada, a maioria grita #EleNão e, em oposição, parte do público diz #EleSim, Fora PT e Mito.

Acervo pessoal

As reações ao intervalo e suas palavras em vermelho variam: palmas, vaias e gritos de empolgação. Todos esperam a vez do “Resist neo fascism” para gritar ainda mais. Quando esse letreiro surge, alguns vaiam uma frase que deveria ser uma unanimidade.

O momento é marcado por mensagens ativistas. Temas como estado laico, guerras e a situação da Palestina são lembrados. Roger nos encoraja a resistir à poluição, ao Facebook e, principalmente, ao neofascismo. Na imagem dos neofascistas atuais, aquela que virou assunto nos jornais do país, o nome Bolsonaro continua tampado por uma tarja vermelha com a frase “ponto de vista político censurado” escrita.

Essa tarja diz mais até mesmo que a frase que estampava essa arte no primeiro show do artista no Brasil durante essa turnê. Ela é uma amostra de como funciona um Estado autoritário. Ela é, acima de tudo, um aviso, principalmente para aqueles que caíram no canto do neofascista tupiniquim. É assim que vai ser, Roger nos diz, nos alerta.

Diante do recente escândalo mundial que envolveu Cambridge Analytica e o uso de dados pessoais para influenciar as eleições estadunidenses, a crítica ao Facebook e ao Mark Zuckerberg merece uma atenção especial, principalmente após a denúncia de que empresários pagaram, sem qualquer declaração para a Justiça Eleitoral, para que empresas produzissem e espalhassem pelo Whatsapp conteúdo, muitas vezes mentiroso, para beneficiar Bolsonaro como candidato frente ao Fernando Haddad. Com isso, o músico evidencia a nova roupagem das ameaças que já conhecemos.

De repente, a capa de Animals começa a surgir a partir de uma imagem de destruição bem na nossa frente e vem Dogs. Depois um balão com um porco começa a circular. Nele está inscrito “Seja humano” em português e em inglês. Está na hora de Pigs.

Roger coloca uma máscara de porco e levanta um cartaz que diz que os porcos dominam o mundo. Depois ele arranca a máscara do rosto e dessa vez levanta outro cartaz. Esse diz ‘Fuck the pigs”.

Acervo pessoal

O telão zomba de Trump, enquanto a música acontece. As críticas ao atual presidente dos EUA são várias. Até suas falas problemáticas são expostas. Depois do letreiro “Trump é um porco” tomar conta de tudo, ouvimos uma máquina registradora. É a hora de Money. Agora vemos a imagem de diversos líderes políticos se sobreporem numa tela que exibe joias, notas, carros. Bush é um deles.

Com Us and Them, aparecem imagens de rostos diversos, manifestações e policiais posicionados. Em um close, ganha destaque um cartaz que diz Black Lives Matters, Love is Love, Women Rights are Human Rights e questões sobre imigrantes e meio ambiente.

O show continua. Mais uma capa de álbum aparece. Agora temos uma pirâmide de luz diante de nós. Cantamos, sorrimos, nos emocionamos mais uma vez e, após Comfortably Numb, a última música, agradecemos a experiência com todo um estádio gritando “Ole ole ole ole Roger Roger”.

Usando um telão e tecnologias visuais, o ex-baixista da banda Pink Floyd, apresenta algo muito além da música e mais uma vez faz um show que explora imagem, som, sensação, performance e manifesta o que está bem evidente em suas letras: é preciso ser mais humano e resistir ao neofascismo.


Observação: Existem muitas fotos incríveis desse show e de outros dessa turnê, mas eu optei por usar imagens que tirei como fã, porque esse texto é, sobretudo, uma narração de uma experiência.


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#EleNão: as mulheres fazem política e história

Belo Horizonte — Letícia Vianna/Bhaz

Antes, durante e depois

No final de semana anterior ao primeiro turno da eleição de 2018, milhares de pessoas tomaram as ruas de diversas cidades do país e do mundo para se manifestarem contra o presidenciável Jair Bolsonaro e tudo que ele representa.

O movimento #EleNão começou a partir da criação de um grupo no Facebook chamado “Mulheres contra Bolsonaro”, se tornou uma hashtag e, por fim, ocupou também as ruas.

O rápido crescimento do grupo chamou a atenção da mídia e isso atraiu a ira dos fãs do candidato. Através de ameaças e invasões hacker, eles tentaram calar as mulheres. O resultado disso foi a multiplicação de grupos como esse em toda a rede, ações virtuais e a organização da maior manifestação popular dirigida por mulheres na história do Brasil*.

Antes do grupo, a rejeição feminina ao candidato já aparecia nas pesquisas eleitorais. Depois dele, essa rejeição ganhou força, rostos e passou a fazer questão de marcar presença no debate político, apesar do medo de represálias.

Na semana que antecedeu a data marcada para a mobilização, se viu um certo alarmismo nos grupos das mulheres contra o candidato. As ameaças, os xingamentos, os atos pró Bolsonaro sendo marcados na mesma data e a, ainda recente, invasão do grupão, que agora contava com mais de 3 milhões de participantes, intimidava. Mas isso não foi o suficiente para esvaziar as manifestações e elas foram descritas pelas participantes como diversas, alegres, acolhedoras, emocionantes e cheias de vida.

“Se cuida, se cuida, se cuida seu machista, a América Latina vai ser toda feminista” é uma dessas músicas que sempre aparecem nos atos, mas que dessa vez me tocou diferente. Me senti acolhida, esperançosa e forte no meio de mulheres de lilás que entregavam flores de papel colorido com pétalas #EleNão e me emocionei ao ver tantas pessoas se abraçarem, se cumprimentarem, enquanto carregavam no peito adesivos e estampas que exibiam que estavam do meu lado na luta por um mundo mais igualitário, justo e digno. Mesmo sendo tão diferentes de mim em tantos aspectos.

As mulheres foram a maioria, como o esperado, e também as protagonistas. Idosas, jovens adultas, adolescentes e até crianças cantaram “hoje eu acordei e ecoava ele não, ele não, não, não”, segundo o ritmo da Bella Ciao, o hino antifascista italiano.

O ambiente ao meu redor celebrava o afeto, a pluralidade e a alegria e, após sentir isso tudo no peito, eu percebi que essa energia e essa esperança são essenciais para combater o medo e o autoritarismo. “Se não posso dançar, não é minha revolução” disse Emma Goldman e eu repito essa frase hoje porque sei que essa liberdade está em risco e a nossa luta é também uma celebração do mundo que queremos viver.

Belo Horizonte — Letícia Vianna/Bhaz

#EleNão, #ElasSim

Tudo isso me fez pensar em como as mulheres continuam uma minoria na política representativa, mas ganham cada vez mais espaço nas ruas e nas redes.

Nos últimos anos, temos sido protagonistas da maior parte das mobilizações do país, mas ainda assim continuamos vendo mulheres serem usadas como laranjas de partidos políticos que precisam de candidaturas como essas para cumprirem a cota feminina e um desdém pelas opiniões políticas das mulheres.

Durante o período de mobilização do #EleNão, por exemplo, vi muitos homens, inclusive alguns que se posicionam contra o fascismo, tratando as mulheres envolvidas nesse movimento com paternalismo. Alguns chegaram até mesmo a desprezar a importância da organização das mulheres como fato político, acusaram as participantes de seguir modismos e tentaram tutelar a massa feminina insatisfeita. Outros preferiram insinuar que a iniciativa do grupo e dos atos “Mulheres contra o Bolsonaro” partiu de homens como os candidatos Haddad, Ciro e até Alckmin. Todos esses expuseram o quanto têm dificuldades reais de verem mulheres como agentes de qualquer coisa.

Na mesma esteira, li também defensores do #EleNão falarem que essa seria a primeira hashtag a entrar nos livros de história do Brasil. Uma frase como essa parece um elogio e até seria se não tivéssemos diversos exemplos anteriores de mobilizações femininas de grande impacto.

As vozes femininas — e, principalmente, feministas — ecoaram no Brasil e no mundo nos últimos anos**. Vimos a primavera feminista florescer no Brasil com a hashtag #MulheresContraCunha, por exemplo. Essa mobilização merece um destaque especial por ter também o caráter de rejeição ao fato do cara ser misógino, LGBTfóbico e péssimo enquanto político. Um dos motivadores desse repúdio coletivo foram os projetos de lei de autoria de Cunha e outros deputados que buscavam dificultar o direito ao aborto legal para vítimas de estupro. Um deles, o que tentava revogar a Lei 12.845, tem como um dos autores Jair Bolsonaro.

Além do #ForaCunha feminino, vimos também mulheres compartilharem relatos de violência sexual com as hashtags #PrimeiroAssedio, #MexeuComUmaMexeuComTodas, #ChegaDeFiufiu, #MeToo e outras e provocarem um debate público sobre a misoginia, estupro, assédio, culpabilização da vítima e silêncio.

Sei que muitos podem dizer que esse fenômeno transformador da quebra do silêncio sobre violência sexual não tem caráter histórico e eu rebato dizendo: “só porque trata de uma questão que atinge principalmente as mulheres não seria importante o suficiente para figurar em um livro de história?”.

Esse esquecimento*** de mobilizações femininas e a surpresa de alguns em ver um fato político ser capitaneado por mulheres diz muito sobre o porquê de estarmos nas ruas, nas redes e nos bairros, mas ainda custarmos atingir 30% de candidaturas femininas e sermos eleitas.

As mulheres se encontram como protagonistas quando a mobilização parte delas. Fora isso, elas precisam competir por espaço entre os que se colocam como os detentores por direito dele. Por isso, dizer #EleNão junto com tantas mulheres das mais diferentes vertentes políticas significa também dizer que a política é um espaço feminino.

Quando tomamos as ruas porque consideramos um candidato misógino, LGBTfóbico, racista, autoritário, agressivo e incapaz, a gente incomoda todo um sistema que nos coloca como subalternas aos nossos maridos, pais e namorados. Esse incômodo acontece porque ainda é considerado subversivo uma mulher ter ideias próprias e defendê-las através de organização e resistência.

Rio de Janeiro — SILVIA IZQUIERDO AP

*Um levantamento feito por um usuário do Facebook chamado Jonas Medeiros mostrou que 366 cidades marcaram atos. Três deles foram impedidos de acontecer pela justiça.

**O feminismo negro ganhou muito espaço nesses anos também e mobilizações contra o genocídio do povo negro chamaram atenção. #OndeEstáAmarildo, #QuemMatouMarielleFranco? e #LiberdadeParaRafaelBraga são alguns exemplos de movimentações nesse viés.

***A presença das mulheres na política não é algo recente e o fenômeno de invisibilidade e esquecimento relacionados com essa seara também não. Dona Leopoldina, conhecida como esposa de D. Pedro I, por exemplo, esteve envolvida na articulação da independência do país, apesar de não ser lembrada por isso. Em diversos movimentos da história, nós tomamos frente de movimentos que são contados em muitos livros de forma que dá a entender que foram feitos por homens. Alguns exemplos são: Revolução Francesa, Revolução Russa e Comuna de Paris. Não saber sobre o passado político das mulheres contribui para os movimentos das mulheres serem vistos como uma grande novidade ainda hoje. Para quem cresce sem conhecer, por exemplo, as sufragistas, o ativismo político feminino parece fora do lugar. O apagamento do nosso passado contribui para que os movimentos femininos de hoje sofram com tanto descrédito.

O feminino na história do Brasil e a feminilidade esperada

Arquivo pessoal — Adquira seu exemplar aqui.

As aulas de história, por mais interessantes que fossem, sempre me pareceram falar de um mundo que não era o meu. Os nomes lembrados nos livros didáticos eram sempre masculinos, brancos e ricos. As mulheres eram ausentes. D. Leopoldina, Carlota Joaquina e Princesa Isabel foram as poucas que apareceram nomeadas nas salas de aula que frequentei e hoje sei que suas participações foram bem diferentes das narradas ali e as impressões que temos delas se relacionam com os ideias de feminilidade das pessoas que escreveram a história que temos acesso.

A minha sensação enquanto estudante era de que faltava alguma coisa. Fora do material escolar, eu via mulheres sendo participativas, ousadas, resistindo ao que era dito que elas podiam ou não fazer. Não conseguia ver como possível que as mulheres tivessem passado tanto tempo da história sem participar diretamente dela.

Esse incômodo me provocou e me fez buscar saber mais sobre onde elas estavam e quem elas foram. Cheguei ao feminismo por isso e posso dizer que elas sempre estiveram ali, mas foram apagadas ou tiveram seus papéis diminuídos para caberem no estereótipo de feminilidade vigente na época e, em grande parte, ativo também nos tempos atuais.

Paulo Rezzutti, em “Mulheres do Brasil — a história não contada”, fala sobre essa invisibilidade e apresenta para o leitor mais de 250 nomes femininos e suas trajetórias. Com essa obra, ele desmistifica a ideia de que as mulheres ficaram passivas enquanto viam a história acontecer.

Diferente dos dicionários de mulheres que reúnem minibiografias de notáveis, Paulo tece um retrato dos efeitos do patriarcado na vida das mulheres de várias épocas sem tentar esgotar nomes e assuntos. Ele apresenta os feitos, os entraves e as consequências sociais que atingiam as mulheres que agiam fora do que era esperado e assim revela o panorama da moral patriarcal de outros tempos, enquanto faz questão de lembrar também de mulheres recentes como Marielle Franco e Maria da Penha e mostrar o impacto das opressões também em suas trajetórias.

Em seu texto, o autor cita diversas historiadoras, compartilha histórias de mulheres célebres e também das que são conhecidas só por quem se debruça na temática. Expõe, por exemplo, que o apagamento sistemático que atingiu as mulheres é ainda mais intenso com as negras e indígenas por causa do racismo. Faltam ainda mais dados sobre elas. O silêncio documental sobre essas mulheres significa que o não contato é mais do que feminino. Ele é marcado também por outras opressões.

Conhecemos com a obra histórias individuais que se enlaçam e revelam o controle exercido através do machismo na vida de cada uma delas e das anônimas de suas épocas. Esse controle as afastava do espaço público, mas tornavam suas vidas públicas. Qualquer desvio era o suficiente para colocá-las como foco de um falatório que tinha como consequência o isolamento, o abandono familiar e até mesmo internações em manicômios. Muitas das que são lembradas na obra foram justamente as que sofreram por se portarem como pessoas, não acessórios. Chiquinha Gonzaga, Julieta de França, Gabrielle Leuzinger Masset, Yde Schloenbach Blumenschein (Colombina) e Luz del Fuego foram algumas delas.

A boa mulher sempre foi a boa esposa, a boa mãe e a boa cristã, desde que não fosse religiosa demais. Ela podia participar da vida pública somente através de ações de caridade. Qualquer coisa fora desses papéis era uma transgressão e a maioria das que foram lembradas nessa obra figuram nela por terem buscado um mínimo de autonomia.

“Mulheres do Brasil — a história não contada” humaniza o feminino. Paulo Rezzutti nos apresenta histórias de heroínas, vilãs, artistas, escritoras, mecenas, transgressoras e mulheres com poder e dinheiro e torna público o fato de que somos diferentes entre nós desde sempre e capazes de atuar nas mais diversas áreas, mesmo quando elas nos são proibidas.

Esse livro é um trabalho que resgata a existência do feminino no meio de um mundo narrado por homens e nos faz pensar sobre o presente e o futuro. A política, espaço considerado masculino, ainda é um desafio para nós. Temos poucas mulheres no poder e lutamos hoje contra o machismo e a misoginia nesse meio, principalmente quando ele se manifesta em projetos políticos autoritários que ganham cada vez mais espaço.

Conhecer o passado nos ajuda a entender os desafios de hoje e a leitura de um livro como esse nos permite perceber melhor o valor da resistência dos movimentos de mulheres em todas as áreas, principalmente daqueles que destacam a importância da memória dessa história constantemente invisibilizada.

Se interessou pelo livro? Adquira seu exemplar aqui.


Os rumos do Brasil, a PEC 181/15 e a obra “O conto da Aia”

Capa do livro “O conto da Aia”. Adquira seu exemplar aqui.

Há um Projeto de Emenda à Constituição em trâmite no Congresso Nacional que recebeu o apelido de “Cavalo de Tróia contra as mulheres”. O motivo? Transformaram um projeto que buscava ampliar a licença maternidade para as mães de prematuro em algo que define a vida como inviolável desde a concepção.

Se essa PEC se tornar realidade, o aborto nos casos de risco à vida da mãe, gravidez decorrente de estupro e feto anencéfalo podem ser criminalizados. Um retrocesso assustador.

Ao colocar a função reprodutiva da mulher acima de sua dignidade, isso relativiza o estupro e a visão de que mulheres são gente, como eu afirmei no meu texto “Por que a PEC 181 ganhou o apelido de “Cavalo de Tróia das Mulheres”?”.

Com o avanço da força do projeto conservador que busca controlar as mulheres, fica impossível não pensar nas relações entre o livro “O conto da Aia” com a atualidade.

Gilead é uma teocracia que se baseia no controle, especialmente das funções e do corpo das mulheres. Há Aias, Martas, Esposas, Econoespostas e Tias. Entre todas, apenas as Aias podem engravidar e sua função nessa sociedade é essa.

Quando 18 homens votaram sim para a PEC 181/15 e ela foi aprovada na Comissão Especial, eles disseram que a função das mulheres é engravidar e parir, independente dos riscos dessas gravidezes para a saúde física e mental das gestantes e da concepção ter sido ou não fruto de uma violência gravíssima. Eles mostraram que não se importam com nossas vidas, dignidade e saúde, eles nos veem apenas como receptáculos. Assim como os homens de Gilead veem as Aias, as únicas que ainda podem gestar e parir.

“O conto da Aia” é uma ficção que nos assusta tanto justamente por percebemos o quanto ela se baseia numa visão de mulher que ainda segue firme e forte no Brasil, nos EUA, no Canadá e no resto do mundo.

Não somos parideiras. Não somos receptáculos. Não somos incubadoras. Somos pessoas e temos direito à vida, saúde, autonomia e dignidade.


Texto publicado originalmente em minha página do Facebook. Se interessou pelo livro citado no texto? Adquira seu exemplar pelo meu link da Amazon.