Cultura do estupro: o que a reação das pessoas ao Caso Neymar diz sobre nossa sociedade?

Neymar vestindo a camisa 10 da seleção brasileira em campo

Desde que a acusação de estupro contra Neymar saiu na mídia, muito se discute sobre o comportamento da possível vítima. Esse é o modus operandi da cultura do estupro. Especialmente quando o acusado usa o comportamento sexual da mulher como um meio de tentar provar sua inocência.

Mesmo que o jogador seja inocente na acusação de estupro, sua tentativa de defesa pública partiu de estereótipos de gênero, misoginia e de noções bem erradas do que é consentimento. Além de tudo, houve a propagação de imagens íntimas da mulher em questão, o que por si só configura crime e também pode ser visto como uma tentativa de intimidação bem característica do fenômeno chamado de pornografia de vingança. Toda a exposição do caso e da possível vítima feita pelo Neymar, seu pai, Datena e outros evidencia o poder e influência que o atleta tem e como a sociedade legitima que ele o use contra essa mulher como uma maneira de silenciá-la.

A partir desse caso e a reação da sociedade ao que é dito, exposto ou suposto, mesmo sem qualquer veredicto sobre Neymar, temos a chance de debater sobre o que é estupro e combater esses pensamentos que fazem tanta gente considerar que a manifestação prévia de uma certa disponibilidade sexual é necessariamente um impeditivo para que tenha havido abuso e como essa visão colabora com a ideia de que certas mulheres são consideradas estupráveis e outras não.

Para entender tudo isso é preciso se perguntar sobre o porquê das defesas de crime de estupro, profissionais ou feitas pelo próprio acusado, sempre apelarem para essa abordagem em que o foco recai na vítima que é cobrada a se provar idônea o tempo todo.

O estupro é abordado historicamente, inclusive pelo Direito, pela ótica masculina e patriarcal que vê as mulheres como manipuladoras e traiçoeiras quando se trata de sexo, sedução e afins. A ideia de que o valor feminino estava ligado à virgindade alimentava ainda mais essa visão, porque esse seria um motivo que faria mulheres que “cederam à tentação do sexo” mentirem e a possível vida sexual fora do casamento um sinal de que a mulher em questão já seria impura, logo pouco confiável e propensa a fraude. Isso, somado ao fato de que o corpo feminino é considerado propriedade e direito dos homens, sedimentou a prática de colocar a vítima como foco em caso de violência sexual. Isso é tão forte que há quem defenda, ainda hoje, que não existe estupro dentro de casamentos usando o argumento de que esse contrato social e jurídico envolve necessariamente obrigação de sexo.

Quando se coloca uma possível vítima de estupro no centro de um tribunal público em que se discute, principalmente, o comportamento sexual dessa mulher que acusa, a mensagem que se passa é a de que mulheres ativas sexualmente são corpos disponíveis, logo impossíveis de serem estupradas.

É preciso reiterar que o fato de dizer sim uma vez não é sinônimo de um sim eterno ou que esse sim atinge todas as práticas sexuais possíveis. Sexo é algo que parte de interesse, respeito e combinados mútuos. Sua palavra-chave é consentimento e ele pode ser retirado a qualquer momento e ainda assim precisa ser respeitado. Topar transar não é topar fazer tudo que o outro quer. Topar sexo agora não impede a pessoa de mudar de ideia 10 minutos depois.

A noção deturpada de consentimento faz com que mulheres se sintam confusas sobre terem ou não sofrido violência, principalmente em casos de date rape e estupro marital. O imaginário social do que é estupro ainda é o da vítima pega de surpresa e com extrema violência em um beco escuro de noite, o que torna difícil o reconhecimento do crime de primeira por quem vive situações que envolvem paquera, interesse e envolvimento ou por quem não se vê no papel de vítima ideal por já ter transado ou querido transar com o agressor.

Estamos todos acostumados demais com a desumanização das mulheres, o que dificulta que a gente olhe para possíveis vítimas femininas de homens, especialmente aqueles poderosos e públicos envolvidos em casos de date rape, com empatia. As estranhezas que podemos enxergar em um relato podem ser sintomas de estresse pós-tramático ou parte de um processo de distanciamento e negação, por exemplo. Quando se trata sobre estupro, podemos, mesmo sem querer, nos amparar em noções distorcidas pelo machismo e misoginia do que se é ou não violência sexual e de quem pode ou não ser vítima dela.

Esse texto não é sobre condenar ou absolver o Neymar socialmente, é, principalmente, sobre como nossa sociedade encara a violência sexual e o corpo das mulheres. Mesmo que esse caso acabe se tornando um exemplo raríssimo de falsa acusação, a reação da sociedade perante o tribunal sexual montado pelo Neymar diz muito sobre o mundo que vivemos e o que é e como se manifesta a cultura do estupro.


Obs: Esse texto surgiu a partir de dois tweets que fiz para o Ativismo de Sofá e foi publicado, originalmente, em minha página pessoal no Facebook. Se você gostou dessa leitura, deixe suas palmas, faça um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Facebook e Twitter.

Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s