
— Então, Dr. Marcos, eu tenho me sentido meio estranha. Não consigo me concentrar em nada.
— Estranha como?
— Eu tenho adiado até mesmo o ato de ligar o computador e por isso prefiro deixá-lo hibernando para de manhã, logo após iniciar o dia, não ser obrigada a sentir mais um começo antes mesmo de bater o ponto online. Também tenho tido pouca vontade de comer e quando a vontade vem é sempre relacionada com alimentos que não fazem muito bem, me causam azia e tudo, como Nutella, pizza e torresmo. E não tenho dormido bem, doutor, apesar de continuar dormindo muito.
— Hmmmm… O que mais?
— Eu tenho a sensação de que não há futuro possível. Dr. Marcos. E isso me entristece, mas também me alivia, porque eu não preciso mais acreditar em nada e nem buscar alguma coisa. Na verdade, isso é bom, porque isso me impede de criar expectativas.
— Isso que você narra parece depressão, não acha? Toda essa apatia…
— Acho que sim. Na verdade, eu não saberia afirmar com certeza.
— Hm…
— Doutor, você sabe de algum documentário bom sobre isso para eu assistir?
— Ana?
— É, doutor, um documentário sobre depressão.
— Ah, eu não conheço. Não vejo muitos documentários, mas minha filha adora. Posso perguntar para ela se ela tem alguma indicação, se você quiser…
— A Cecília gosta de documentários?
— Gosta sim. Esses dias ela me fez assistir com ela um que tinha na Netflix… De uma mulher negra com um vozeirão, sabe?
— Hmmm… Nina Simone?
— Isso. Eu até gostei… Depois fiquei procurando umas músicas dela para ouvir no Youtube. Aquela Feeling Good é boa, né?
— É boa sim, Dr. Marcos.
— Vou te mandar agora uma receita de um remedinho que vai te ajudar, Ana. Vai chegar no seu e-mail cadastrado no app do plano de saúde, viu?
— Obrigada, Dr. Marcos.
— De nada, Ana. Manda um abraço para sua mãe por mim.
— Pode deixar, Dr. Marcos! Manda outro pra Dona Ruth!
— …
— …
— Ana, você pode sair da teleconferência por favor? É só clicar nesse xzinho no canto esquerdo da tela. Pega mal o médico fechar a janela do paciente assim…
— Tudo bem, vou desligar aqui, viu? Boa semana!
— Agora você gosta de documentários, Cecília?
— Sempre gostei.
— Aham. Tá bom.
— Olha, eu gosto de documentários, mas eu não sou que nem você que vê qualquer um, independente do assunto. Eu busco ver os de temas que me interessam.
— Como Nina Simone?
— Sim, como Nina Simone.
— Seu pai quer que você me indique um documentário sobre depressão. Por motivos médicos.
— Meu pai me mete em cada roubada. Anem.
— Não precisa ser sobre depressão então. Me indica qualquer um que você já viu e eu possa gostar.
— Se você pegar para ver um documentário que acompanha a vida de uma sacola plástica, você vai amar, Ana. Você gosta de documentários e pronto. O seu lema é ver todos, porque você é tipo o Et Bilu e fica vendo esses filmes sem parar e depois fala “busquem conhecimento” sem dizer bem isso indicando algum no Twitter.
— Eu gostei dessa ideia de acompanhar a vida de uma sacola plástica. Você viu algo assim, foi?
— Não, Ana, eu só quis falar a coisa mais absurda que veio na minha cabeça.
— A ideia é realmente boa, você sabe disso, né?
— Eu não sei, porque eu não ligo para história pessoal de uma sacola plástica, mas se você diz…
— Posso pegar sua ideia para mim?
— Hm… acho que pode, né?
— Vou ver se começo a filmar essa semana ainda, aproveitar que fiz compras ontem e tem toda uma nova leva de sacolinhas que passaram por higienização.
— Não deixa de filmar a sacola se secando no sol depois de tomar banho, bem bronzeada.
— Se eu colocar um nome nela vai ser muito esquisito?
A ideia desse conto surgiu a partir de uma conversa com a versão tuiteira da tutora criativa e agente literária da Ceci. Nesse papo, eu realmente falei que isso de gostar de documentário como algo geral é coisa de gente cultíssima, mas meio Et Bilu, e não sei como acabei prometendo escrever um texto, esse aqui, com ou inspirada em uma personagem do livro “Ninguém morre sem ser anunciado”. Depois, já em outra conversa, essa privada e posterior ao envio do texto, eu cedi os direitos de filmagem desse doc da história da sacola citado no conto para a representante da Ceci. Agora acho que vou mandar uns vídeos das minhas sacolas via direct para ela entender que eu doei minha ideia, mas talvez queira ajudar com o roteiro. Qual sacolinha dessas vinte que estou olhando secar será protagonista dessa emocionante narrativa?