Conversando sobre o “O Peso do Pássaro Morto” ou um papo estranho sobre resenhas

Acervo pessoal — Adquira seu exemplar aqui.

Já tem uns dias que quero escrever sobre esse livro da Aline Bei. Até pensei em um bom título — “O peso do Pássaro Morto: corpo, trauma e solidão” — mas nada sai. Alguns livros são irresenháveis por mim. O título pomposo e um parágrafo introdutório que não diz muita coisa ficam eternamente no rascunho, enquanto me coço para comentar todos os detalhes que quero destacar sem me importar com spoilers.

Um saco isso de spoilers, né? A gente escreve sobre livros muitas vezes só porque a gente quer falar sobre eles, mas essa limitação estraga tudo. Talvez seja por isso que eu agora só queira saber de promover leituras coletivas. Nesse tipo de espaço, todo mundo já leu e spoilers são liberados e a gente pode ficar falando numa boa do que seria proibido em uma resenha. Falando nisso, sabia que “O peso do pássaro morto” foi um dos livros mais lidos nos clubes do Leia Mulheres ano passado? Tá vendo? Todo mundo quer ler e comentar. Talvez contar uma história própria que dialogue com a do livro. Falar de forma genérica não tem muita graça. Aposto que em todo encontro teve alguém falando: “Avassalador”. Eu sei que eu falaria. Talvez também tenha sempre alguém que não consegue conter as lágrimas.

Nessa luta para escrever alguma coisa sobre o livro da Aline Bei, ontem consegui formular toda uma estrutura e várias ideias. Um dos parágrafos que pensei era muito bom e tinha só spoilers leves, aqueles que só provocam o leitor a procurar o livro com tanta avidez que ele até clica e compra um exemplar usando o meu link da Amazon. O problema é que fiz isso alguns segundos antes de dormir e dormi. Muitas vezes quando isso acontece, assim que começo a escrever a resenha no outro dia, me lembro o que queria dizer e tudo funciona muito bem, só que hoje acordei no susto, com um barulho de Mate Couro caindo no chão, estourando e molhando meu gato inteiro de refrigerante. A primeira coisa que fiz ao acordar não foi escovar dentes, fazer xixi, beber água ou pegar o celular, foi passar shampoo a seco em um gato bonito demais para ser verdade. O que significa que eu esqueci o que ia escrever e nem ler os destaques que fiz no livro no Kindle adianta alguma coisa agora. O Mate Couro caiu, estourou e todas as minhas melhores ideias foram para o ralo.

Lembro que em algum momento eu ia dizer que Aline Bei ganhou com esse livro o Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos. Um prêmio é sempre um prêmio, né? Acho uma boa jogada para convencer o leitor lembrar que a obra já foi lida, validada e aplaudida não só por mim, a autora da resenha. Só que uma resenha nunca pode falar só sobre isso. Ela fica sem alma. Ainda que eu não acredite em alma, acho que resenhas possuem uma e essa alma pode escapar do texto se você for formal demais e esquecer de acrescentar suas impressões pessoais da leitura. O problema dessa minha resenha entretanto é justamente o contrário. Ela tem a alma já sebosa de tanta informação pessoal não solicitada.

O livro, narrado em primeira pessoa em verso, começa com as memórias dos oito anos dessa protagonista sem nome, mesma idade que começa o livro de memórias da Vivian Gornick chamado “Afetos Ferozes”*. Oito anos parece ser um marco na memória de personagens reais ou ficcionais. Oito anos parece ser uma idade em que passamos a ter noção do nosso corpo, do corpo do outro e nossa identidade já existe o suficiente para que as lembranças que ficam fiquem mesmo e pareçam ser nossas. Oito anos é a idade em que nos tornamos um pouco mais sólidos e fixos. Provavelmente porque é quando paramos um pouco de orbitar em torno de nossos pais.

Os oito anos da personagem sem nome que protagoniza o livro da Aline Bei também é um marco porque é a idade que ela tem quando começa a perder, ou melhor, sofre sua primeira perda. E esse livro é um livro sobre perdas e como elas nos afetam e como certas perdas são bem específicas do gênero feminino. A própria autora falou uma vez que quando decidiu escrever sobre perdas sabia que a protagonista-narradora teria que ser uma mulher, por causa de toda opressão que cerca a existência feminina. Por isso é triste, avassalador e impactante. E esse sofrimento se intensifica porque essa história mostra o quanto o trauma dessas perdas torna a dona delas mais solitária. Os traumas criam mais um obstáculo entre ela e o mundo, inclusive o filho.

Só que o livro não fica só nos oito anos dessa mulher. A criança de imaginação fértil que de repente precisa aprender a lidar com a morte, segue. E dali avança aos dezessete, aos dezoito, aos vinte e oito e vai indo até os cinquenta e dois anos, enquanto tenta ser uma pessoa, não só uma acúmulo de perdas, culpas e memórias. E, apesar de tudo, ela vive, ela continua, ela existe, ela está ali até deixar de estar.

E também, apesar de tudo, acho que terminei essa resenha.

*Tem leitura coletiva organizada por mim sobre o livro Afetos Ferozes rolando agora em junho/julho. Saiba mais aqui.


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Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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