Um mês no planeta sem nome

Imagem de Jessica Lewis

Dias 01 e 02: Os efeitos do descongelamento vital ainda estão intensos. Estou sonolenta, sentindo um chiado no ouvido e com muita dor de cabeça. Fora o enjoo e a boca com gosto de guarda-chuva que não vê água há dois anos. Quem diria que toda missão em outro planeta ia começar com agentes com sintomas de ressaca?

Tenho uma missão a fazer, mas hoje não conseguirei sequer sair dessa nave e pegar amostras do solo para enviar para a Central de Pesquisa Interplanetária. Vejo esse novo planeta desconhecido apenas pela janelinha. Não parece haver quase nada com cores fortes por aqui. Tudo é mais ou menos como se meu filho tivesse imaginado um planeta povoado por unicórnios. Rosa, verde, azul, roxo, amarelo, tudo enorme e em cores pastel. A estrela dessa galáxia brilha da mesma maneira que o sol de nossa Terra, mas todo o resto é diferente.

Dia 03: Fora a sede, que provavelmente se manterá firme e forte comigo nos próximos três dias, estou bem. Hoje, assim que acordei, comi uma porção da minha ração, troquei de roupa e dei uma volta na região da nave. Colhi amostras do solo, de diferentes plantas e de alguns insetos. Como tudo já indicava, oxigênio aqui é abundante, como na Terra, e por isso eu nem precisei usar equipamentos de auxílio para a respiração. O que de fato é um alívio, porque me dá mais tempo no planeta e me permite tentar me misturar com o povo originário daqui sem tantos problemas.

Nessa primeira saída, a temperatura estava amena. Cerca de 19º Celsius. Só que o cenário aqui parece quase distópico ainda que esteja lotado de plantas e água. Algo na atmosfera faz os riachos, lagos e mares serem roxos, quase lilases, não azuis. Isso parece tão errado.

Dias 04 a 10: Depois de um passeio mais longo e uma análise detalhada das imagens que consegui do satélite que lancei antes de desembarcar, concluí que estou no planeta das candy colors e a qualquer momento vou descobrir que esse mundo é povoado por Hello Kittys.

Dia 11: Comecei a ver muita beleza nas cores daqui. Especialmente durante o pôr do sol. É um mundo fantástico, desses que fazem a cabeça das crianças e encanta adultos que ainda gostam de sonhar. Tem uma fruta aqui com o gosto daquele sorvete azul claro que chamamos na Terra de “pedacinho do céu” e outra, do tamanho de uma manga, que me lembrou um pouco uma amora, só que mais doce. Penso nisso agora para não neurar mais com o fato de que o contato com a vida inteligente desse planeta já aconteceu e foi de uma maneira totalmente diferente do que eu gostaria. Estou numa sala enorme, de um prédio bege pouco decorado, mas bem bonito, esperando que falem comigo. Um homem e duas mulheres, ambos claramente cientistas, me encontraram hoje na mata. Eu não imaginava que eles já tinham tecnologia para detectar minha chegada tão rapidamente. Talvez eu esteja em risco. Quero acreditar que não.

Dia 12: Eles claramente não gostam da minha presença, mas me parecem um povo curioso sobre minha anatomia e pacífico com outros planetas, na medida do possível. Tento me comunicar mais com os cientistas que me encontraram, porque vejo neles uma vontade genuína de trocar tecnologias e saberes, que é meio que o motivo que me trouxe aqui, mas depois da nossa conversa conjunta com os representantes da região, acho que não vai acontecer nada. Nenhuma troca, ainda que eles pareçam querer isso como eu quero. Nós simplesmente não conseguimos nos comunicar. Nossas linguagens são tão diversas e partem de símbolos tão diferentes que o meu tradutor automático não consegue identificar sequer os fonemas deles e nem eles e nem os seus aparelhos conseguem entender os meus símbolos, minha linguagem, os sons que eu emito.

Dias 13 a 18: Os nativos desse planeta são altos, muito altos, e totalmente pinks. Sim, pinks. Não rosa bebê, como grande parte da vegetação, mas pinks. Tudo que percebi até agora só explica a altura das árvores que vi quando cheguei e das camas, mesas e cadeiras que agora uso. Todo o resto continua sem explicação, especialmente agora que não tenho como enviar mais tantas amostras sem parecer descortês. Os corpos deles tem o formato relativamente parecido com o nosso, mas eles possuem uma consistência mais firme, mas ao mesmo tempo mais leve. A carne deles não parece ser a mesma que a nossa e dos nossos bichos. Somos bem parecidos, mais do que eu imaginaria até, o que no fim das contas me intriga mais do que todas nossas diferenças óbvias.

Dia 19: Tenho medo. Por isso não saio mais desse prédio em que me deixaram e observo tudo que posso pela janela. Não acho que vão me dissecar ou algo assim. Ao menos não agora. Eles parecem estar muito intrigados com a maneira que eu me expresso, então precisam de mim viva e falante.

Me deixam em paz grande parte do tempo, mas quando se aproximam assoviam e sibiliam o tempo todo. Eles querem algo de mim, mas eu não sei o quê.

Dia 20: Enquanto eu falo, eles olham a minha língua tão intrigados que temo que eu acorde amanhã sem ela.

Dia 21: Tenho sido injusta com os habitantes desse planeta. Eles não tentaram, em nenhum momento, me intimidar. Pelo contrário. O que me deixa mais desconfiada ainda. Temo me tornar uma espécie de pet deles ou sei lá. Não pode ser normal tratar um estrangeiro de forma tão tranquila, especialmente quando ele poderia ter avisado sobre sua chegada e não o fez. Ainda mais quando eles parecem sentir medo também. Essa paz toda me parece antinatural demais. Se são tão puros, o que eles vão pensar de mim se souberem que foi uma guerra e competição entre países que incentivou os primeiros avanços do meu povo para o desenvolvimento do conhecimento interplanetário?

Dias 22 a 30: Eles tentam ser simpáticos, então eu tento ser simpática do meu jeito, o jeito humano, e eu acho que eles quase gostam de mim. Eles cantam, dançam, leem, andam quase sempre em grupos, se encontram para assoviar em prédios como esse em que estou hospedada, cozinham muito bem e parecem estar tentando criar uma maneira de se comunicar comigo. Eles não param de tentar, pelo menos. Como se a insistência fosse o suficiente para fazer a gente começar a se entender.

Dia 31: Trouxeram minha nave para cá, para eu me sentir em casa. Aparentemente, a única coisa que temos em comum são os símbolos de lar, porque estamos nos comunicando a partir unicamente de desenhos de tudo que simboliza conforto, amizade, segurança e origem. Ainda que “lar” seja uma palavra tão abstrata, nos entendemos porque eu quero segurança para conseguir voltar para minha casa e eles querem a certeza de que eu não vou tomar a deles.


Esse texto foi feito a partir do #EscritaNaQuarentena, desafio de escrita criativa proposto pela Stefani Del Rio para a gente tentar se distrair um pouco durante esta pandemia. A proposta do terceiro dia era fazer um diário de bordo de uma viagem interplanetária e esse foi o resultado final do meu trabalho. Saiba mais sobre a ideia nesse post do Twitter ou no Medium, participe e se divirta.

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Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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