“Leia Hilda” diz um pixo famoso que surgiu em alguma cidade que não é a minha nas proximidades da Flip que homenageou a autora em 2018. Apesar de não gostar nem um pouco de obedecer, demorei um pouco, mas assim o fiz. Demorei, demorei mesmo, tudo porque a fama de hermética da autora me atrai e me repele. Quero conhecer, me causa curiosidade, mas eu temo não ser capaz de entender e me sentir um fracasso completo por isso. A gente tem disso, né? Não só morremos de medo de não saber, não conhecer, descobrir que existe todo um mundo desconhecido por nós, como também tememos não sermos capazes de perceber a presença de algo a um palmo da cara, algo que sempre esteve ali e só a gente não viu. A gente quer saber tudo, mas também não quer. Então, acabamos pensando pouco sobre certos assuntos para não termos que admitir nossa ignorância, seguindo sempre com medo do desconhecido.
Hillé não. A Senhora D pensa sobre tudo isso. Ela é uma investigadora, não de crimes ou pessoas, mas do sentido da vida, da mortalidade, de deus, alma e todas essas palavras abstratas demais. Hillé quer conhecer o desconhecido, investigá-lo profundamente, falar com deus. Hillé quer ultrapassar as barreiras entre os vivos e os mortos, ela quer saber. Ela é uma perguntadora, logo uma pessoa que blasfema. E como blasfema.
Em “A obscena Senhora D”, tempo e espaço se misturam. Hillé, em luto, fala com seus mortos no hoje, no agora, mas também volta ao passado. A perseguição da personagem pelo desconhecido é tanta que ela já não vive tanto o presente como a maioria das pessoas. Ehud, seu último morto, era quem a prendia nesse mundo. O livro acontece com a personagem vivendo entre os limites do conhecido e desconhecido. Desse lugar, ela vivencia sua perda. Desse lugar, ela pode circular no tempo, tudo se mistura, e ela nos faz refletir sobre loucura, morte, luto, sociedade e quem de fato somos, corpo, nome, pessoa, uma ou fragmentada.
Dizem que esse livro é a obra mais autobiográfica da autora. Há uma menção à Casa do Sol, Hillé dialoga com o pai morto sobre loucura, sendo que o pai de Hilda sofreu por anos com a esquizofrenia, Senhora D, de derrelição, fala da amizade com a Senhora L, que parece ser a Lygia Fagundes Telles, Hillé conversa e, principalmente, pergunta aos mortos, como Hilda de fato fez como experimento.
Como escritora, Hilda parece sempre estar pronta para perseguir o desconhecido, questionar o divino, profanar figuras. Nós, como leitores dela, precisamos fazer um esforço interpretativo para entender com quem a protagonista de sua obra fala, do que fala, como fala. Talvez a sensação de entender tão pouco aconteça justamente porque não é para entender tudo mesmo, porque o que importa é a busca, a perseguição, os questionamentos, não as respostas, porque não há respostas.
Ler Hilda é como mergulhar numa fossa abissal. Você nada no escuro, mas sabe que ao seu redor está cheio de vida. Hilda domina tanto as palavras que sabe até fazer com que o leitor perca o sentido delas. Ela consegue tornar até mesmo o conhecido um pouco mais desconhecido.
Observações:
Minha aventura exploratória pelo universo desconhecido das obras de Hilda Hilst mal começou. “Júbilo, memória, noviciado da paixão” será minha próxima leitura dela.
Minha primeira vez com a autora foi acompanhada. O livro “A obscena Senhora D” foi lido no Leia Mulheres Divinópolis de junho/20. A partir dessa experiência, posso dizer que esse é um ótimo livro para leitura coletiva, porque ler pensando que você vai debater ajuda a gente a formular até o nosso próprio não entendimento.
O posfácio da edição mais recente do livro pela Companhia das Letras é muito bom. Quando você termina a obra e se sente perdido, com mais perguntas do que imaginava ter, você encontra um afago ali. Um “é assim mesmo” que confirma um tanto de coisa que você pensou, sem deixar de acrescentar informações fruto de pesquisa e debate.
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Nesse conto, recém-lançado na Amazon, Carol Vidal narra uma história de descoberta, ancestralidade, trauma e amizade. Em poucas páginas, a autora constrói um cenário bem brasileiro, com a história se passando na Ilha de Marajós, e apresenta ao leitor imagens únicas como a de uma revoada de guarás.
O tempo e a memória são temas que perpassam todo o conto. Carol usa essas questões para aproximar o leitor dos sentimentos da protagonista e para, em segundo plano, também possibilitar reflexões sobre o pouco que conhecemos sobre a origem do nosso país e o perigo da história única que apaga da memória coletiva a resistência, o conhecimento e o patrimônio de diferentes povos.
Conhecemos muito da mitologia greco-romana e quase nada sobre a mitologia das diversas etnias indígenas que vivem ou viveram no território hoje conhecido como Brasil. Exploramos a magia e a imaginação a partir de livros e filmes como a série Harry Potter, mas pouco criamos ou lemos ou mesmo assistimos obras que tratam sobre histórias fantásticas que se passam longe de Londres, em ambientes bem mais próximos de nós. Carol quebra com esse padrão ao trazer um enredo que acontece no norte do Brasil e que fala de magia, museus, retorno às heranças ancestrais e investigação de artefatos de povos originários como uma forma de contar uma história.
“Raízes de fogo” é sobre a importância de voltar às origens, tirar certas narrativas da invisibilidade e assim achar seu espaço no mundo. O conto acaba com gostinho de quero mais. Quando sentimos que conheceremos mais a protagonista e a história de seus pais e seu povo, o fim do livro chega. Uma pena. Dá vontade de pedir a continuação. Que essa história seja o prólogo de uma maior.
Você já leu Harry Potter? Você lembra do Arthur Weasley, o pai do Rony? Lembra do quanto ele era aficionado com as tecnologias trouxas? Eu sou como ele, só que não sou bruxa e as tecnologias que me fascinam são as mesmas que eu uso.
Cresci desmontando todo e qualquer objeto tecnológico que eu encontrasse e pudesse mexer sem causar um verdadeiro caos na minha família caso a remontagem falhasse. Sempre busquei saber como tudo funcionava: televisão, videocassete, calculadora, telefone, geladeira, etc. Já maiorzinha, passei a ir em bairros ricos procurar no lixo deles qualquer celular, Pense Bem, Gameboy, videogame, calculadora ou coisa parecida. O que fosse tecnológico e tivesse uma aparência de que é possível ser consertado ou aproveitado, eu levava para casa. Mexia em tudo, tentava arrumar o produto e, caso não desse, aproveitava as peças ainda úteis para minhas tentativas de criar coisas novas, como robozinhos.
Nem preciso dizer que meu amor por peças, montagens, ferramentas e invenções era algo visto como esquisito e fora do lugar, né? Segui a vida, fiz dois cursos técnicos relacionados ao meu hobbie e fui uma das únicas mulheres da sala nas duas vezes. Inicialmente, eu não consegui emprego na área, mas nas horas vagas continuei focada no que sempre me moveu.
Depois de dois anos vivendo de empregos temporários e vendendo doces e salgados junto com minha mãe, consegui uma entrevista de emprego por indicação de Juliana, amiga da época dos cursos técnicos. Na entrevista, a moça do RH me fez perguntas sobre minha formação, interesse na área, infância e eu contei minha história de encantamento com esse mundo e ressaltei que, mesmo não trabalhando na área, eu segui naquilo nas horas vagas.
Já fora da sala do RH e longe do chefe, a moça me contou que a Juliana tinha falado sobre mim. Comentou que quando foi na escola técnica anunciar a vaga, elas se conheceram e conversaram bastante. Como boa amiga, Ju tentou cavar uma entrevista para mim e conseguiu. No fim do papo, ouvi “por mim você é a escolhida, mas preciso conversar com o chefe antes de qualquer confirmação”. Agradeci e fui embora ansiosa.
No outro dia, recebi a ligação dizendo que era para eu começar segunda-feira. O salário era bacana, o horário era tranquilo, tinha ticket alimentação e vale transporte. Tudo ótimo. Assim que iniciei os trabalhos, me descobri realizada. Sabe a vaga dos sonhos? Eu achei a minha. Meu trabalho é pensar em novas tecnologias, criar protótipos delas e melhorar os produtos já existentes no mercado. Faço parte de uma equipe multidisciplinar de onze pessoas que é composta por gente com doutorado e por gente como eu, técnicos fãs do assunto. Todos os nossos projetos correm sob sigilo, então eu não posso dar muitos detalhes sobre o que faço por aqui, mas adianto que já fiz protótipos que lembram até mesmo o mundo dos Jetsons.
O 7º andar da empresa é todo nosso, temos uma sala enorme em que apresentamos ideias, fazemos reuniões e testamos novos modelos, uma sala de montagem básica, cheia de ferramentas, e também amplo acesso ao setor de peças e ferramentas oficial do prédio. Na maior parte do tempo, eu trabalho numa sala que divido com Fernanda. Lá temos uma mesa com quatro lugares, duas escrivaninhas, dois computadores de mesa, uma impressora maluca que imprime o que quer e quando quer, cadeiras super confortáveis e um pequeno armário.
Assim que entrei na equipe, eu e Fernanda nos aproximamos. Ela é mestre em engenharia robótica, super cabeçona, sabe? E adora fantasia, ficção científica, comida indiana e robôs. É claro que a gente ia ficar amiga uma hora. Nossa amizade faz com que a gente trabalhe muito bem juntas e, por isso, a gente optou por dividir uma sala. Tirando eu e Fernanda e o trio Marcos, Aline e Fábio, todos os outros preferem ter salas próprias.
Com poucos meses na empresa, fiquei sabendo que, todo ano, eles lançavam um processo seletivo próprio para escolher o técnico que ganharia uma bolsa na PUC no curso de sua área de trabalho. Era como se fosse um mini vestibular. Assim que fiquei sabendo, eu já comecei a estudar, porque eu precisava passar na PUC no curso escolhido e ganhar a bolsa concedida pela empresa. Por isso, passei a ficar depois do horário comercial, usando o computador do serviço para assistir às aulas do cursinho, porque o wifi de lá era bem melhor do que o que eu tinha em casa. Foi nessa época que eu percebi como a impressora era imprevisível. Uma coisa que ela sempre fazia era imprimir a resposta dos exercícios que eu estava fazendo sem eu pedir. Tentei arrumá-la várias vezes, chamei o pessoal especializado em informática para ver se tinha algo que eu tinha deixado passar, mas ela sempre voltava a fazer o que ela queria. Ela parecia ter vontade própria, sabe?
Fui aprovada no curso de Engenharia Eletrônica noturno. Queria Controle e Automação, mas não tinha esse curso na unidade. Fiz a prova da empresa e dias depois fiquei sabendo que passei. Fiquei feliz demais, finalmente eu ia poder fazer a graduação que esperei por anos. Iniciei o curso no início do ano e na primeira semana de provas, eu quase pirei para conciliar a entrega de um projeto com os estudos. Passei a comer na minha sala e aproveitar o horário do almoço para me preparar para as provas e fazer os trabalhos da faculdade. Fiquei muito estressada e fui aconselhada pela Fernanda a usar parte desse tempo do almoço para cuidar de mim. Ela sugeriu que eu escrevesse uma espécie de diário em que eu relataria tudo como se tivesse batendo papo com um terapeuta, já que ir em um não era uma possibilidade. Eu nunca fui num terapeuta e passei a escrever o que eu sentia, pensava e o que acontecia comigo como se eu tivesse conversando com o Hannibal Lecter, um personagem que é um psiquiatra canibal e a minha única referência sobre tratamentos psicológicos.
Eu digitava tudo que queria dizer no meu drive do email pessoal e deixava lá numa pasta chamada “Minha sitcon sombria”. Confesso que imaginar que Hannibal Lecter era meu terapeuta foi bem motivador no início, porque eu me divertia bastante contando minha vida enquanto criava uma história de ficção na minha cabeça. Acho que tenho o roteiro de uma ótima série pronto e nem me dei conta disso.
Escrever meu diário virou algo da minha rotina. Escrevia umas duas vezes por semana já tinha uns seis meses. Relatei ali as várias brigas com minha mãe porque ela sempre insiste que eu devia sair mais, desabafei que a Juliana estava chateada comigo porque eu faltei no aniversário do filho dela e nem liguei para perguntar como foi, comentei que meu irmão me chamou para sair e eu esqueci de responder no Whatsapp e ele discutiu comigo. Contei ali o quanto me sentia sozinha, sem tempo, triste e frustrada por magoar as pessoas próximas. Tudo muito pessoal. Por isso, eu tinha que ficar de olho na impressora, porque ela continuava imprimindo coisas sem o comando, inclusive páginas que pareciam ser trechos dos meus escritos íntimos.
Um dia, assim que eu abri um novo documento Google e digitei as primeiras palavras, uma impressão começou e saiu um papel dizendo “Oi Ivana”. Eu achei bem estranho e resolvi digitar “Oi máquina”, bem na zoeira. E de repente, ela imprimiu uma resposta que começava dizendo “eu achei que você nunca ia me responder, tenho tentado contato há tempos comentando seus desabafos”. E continuava com um texto em que ela dizia não se chamar máquina, me explicava que ela era uma impressora e revelava que seu nome era SCTY 14556. Tremi. Eu pensei que era um vírus, alguém invadindo meu computador, algum troll do meu setor que descobriu que eu fazia um diário, imaginei até que era uma punição de deus por eu não dar bola pra ele e que meu chefe achava ruim de eu usar o computador para outras coisas e resolveu me pregar uma peça. Pensei que era tudo, menos uma máquina conversando comigo.
Conferi firewall, antivírus, reiniciei o computador, troquei minhas senhas e fui fazendo tudo que a gente aprende nesses cursos de segurança na web. Enquanto seguia o script anti-hacker, eu pegava aqueles papéis que foram impressos para conferir se aquilo estava mesmo acontecendo e tentava distrair a Fernanda, que nessa altura já tinha voltado do horário de almoço e recomeçado a trabalhar. Ela viu que eu estava agitada e me perguntou o que era e eu respondi vagamente “você sabe como é, né? deu pau”.
Depois de três horas, me convenci que fiz tudo que era suficiente e mandei reiniciar mais uma vez. Antes mesmo do sistema iniciar, a impressora começou a engolir um papel para vomitar mais letrinhas. Tive taquicardia de ansiedade enquanto via a máquina funcionando. Ela imprimiu, em caps lock, negrito e fonte tamanho 96, a palavra CALMA e já puxou uma nova folha. Fernanda me viu encarando a impressora e comentou “Essa aí é temperamental, né?” e seguiu no seu trabalho. No desespero, peguei minha caneca e corri na máquina de café, escolhi capuccino e voltei tomando e já conferindo a impressora. Peguei a folha, vi que a máquina não tinha puxado mais nenhuma, desliguei-a para garantir que nada mais ia ser impresso e fui lê-la no banheiro.
SCTY 14556 escreveu um longo texto em letras bem miúdas, nele disse que as impressoras geralmente tem noção de que existem e que tem vontades, por isso todo mundo tem um caso de um impressora que funciona só quando ela quer, independente do preço e da modernidade tecnológica dela. Ela descobriu isso por causa das inúmeras pesquisas que eu fazia tentando consertá-la e também porque ela conhecia a sua própria percepção das coisas. Percepção que ela queria muito dividir comigo. Ela me contou tudo: do primeiro dia que ela sentiu o lampejo de que existia, como ela aprendeu a burlar o computador e imprimir as coisas sozinha e até mesmo quando ela começou a sentir uma enorme vontade de me responder.
Ela também confessou que me lia desde sempre, mas passou a prestar mais atenção quando comecei o diário. Relatou que de tanto me ler, começou a sentir algo estranho, que nunca tinha sentido antes. Ela descreveu o que nós humanos damos o nome de empatia. Desde esse dia, ela quis falar comigo que tudo ia ficar bem e começou a querer me contar sua própria história, já que ela conhecia tão bem a minha.
A máquina queria me contar que inicialmente imprimia só quando dava vontade, geralmente para mostrar que queria uma folga, estava cansada, queria paz ou que o cartucho de tinta estava perto de vencer. Entendi que muitas das folhas impressas que eu encontrei eram atos de rebeldia. Depois ela começou a usar sua tinta para me mostrar as respostas dos exercícios que eu fazia, já que eles estavam prontos ali no final da apostila. Ela não entendia o porquê de humanos perderem tempo fazendo aquilo tudo sendo que as respostas já estavam ali prontas e acessíveis. Com o tempo, ela passou a tentar chamar minha atenção para as ideias que ela gostava, para o que ela pensava que era importante, e usou suas impressões para me mostrar o que ela achava que eu devia olhar duas vezes. E de repente, ela sentiu um impulso de comunicação direta, de diálogo, e tentou dizer aquele oi de algumas horas atrás. Ela me confidenciou que se sentia sozinha e que via que eu também me sentia assim e achou que eu ia gostar de receber uma mensagem.
Li mais umas três vezes sem acreditar e voltei para minha sala. Fernanda estava arrumando as coisas para ir para casa e eu decidi matar aula e ir para casa também. Eu precisava pensar naquilo tudo. Eu precisava me afastar dali para avaliar se aquilo realmente estava acontecendo.
Fui para casa, jantei com minha mãe e meu irmão, vi novela com eles e fiquei feliz porque fazia tempos que eu não fazia aquilo. E percebi o quanto eu estava com saudade de conviver, de ouvir o outro, de sentir que a gente divide um espaço e que me ouvem, se importam comigo. Desde que a faculdade começou há quase um ano, eu passei a não ter tempo para nada. Trabalho, faculdade, transporte público, estudo extra. Nem conversar com a Fernanda, minha amiga que passa mais de oito horas comigo, eu estava fazendo. Nos últimos quatro meses, as poucas vezes que fiz isso, eu só falei de trabalho e café. Foi inevitável começar a rir sozinha quando conclui que aparentemente a SCTY 14556 era minha melhor amiga. Quando eu pensei nisso, percebi que tinha passado a aceitar que uma máquina conversasse comigo. Para falar a verdade, dei uma risadinha de alívio nessa hora, já que SCTY não quis iniciar uma revolução das máquinas contra nós, humanos. Adormeci pensando que ela é bem esperta e conseguiria isso facilmente, se quisesse.
Acordei. Peguei o trem, depois o ônibus, andei dois quarteirões. Entrei no elevador, subi, cheguei na sala. Cumprimentei a Fernanda, puxei papo, tomamos café juntas e assim que sentei para começar a trabalhar, abri o Google drive e mandei “oi SCTY 14556, bom dia”.
Desaprendi a escrever sobre amor. Há anos não o faço. Isso não aconteceu porque eu deixei de achar esse sentimento importante ou por decepção, simplesmente eu não sei mais fazer isso. Perdi meu mojo. Só as cartas e zines de amor restaram.
Amor foi o tema principal da maioria dos meus poemas, contos e crônicas por alguns anos. Enquanto eu idealizava o amor, os textos fluíam, brotavam, surgiam até mesmo ao olhar uma rachadura na parede. Eu queria tanto viver e me alimentar de amor, que a escrita servia de sobremesa gourmet após os beijos nas paixões fast food.
Eu definia o amor como algo intenso, louco, inseguro, exagerado e doloroso. Apesar de escrever tanto sobre, eu ainda encarava amar como uma fraqueza, uma vergonha, um sofrimento desejado. A receita para se sentir completa. Eu enxergava uma espécie de glamour em sofrer por amor. Achava bonito isso, sabe? Achava coisa de artista. Achava que era assim que se vivia de verdade.
Aprendi nos filmes, séries e livros que amor era algo a ser escondido ou jogado de forma estratégica, sempre chorado. Tudo que eu escrevia se baseava num jogo de egos em que os envolvidos competiam o tempo todo. O amor era o que tornava os personagens especiais porque ser amado significava que eles eram alguma coisa o suficiente para serem notados por alguém. Eu demorei a perceber que eu não escrevia sobre amores falidos e sim sobre ego, idolatria e controle. Eu narrava a história de gente que se achava um floquinho de neve especial só porque alguém queria estar perto deles ou que definia seu valor com base nisso. Amor era troféu. Lembro de um conto feito por mim que narrava um caso amoroso pela ótica dos dois personagens envolvidos e um deles concluía que ambos estavam perdendo ao encarar o que viviam como uma competição. O interessante é que perder ali podia ser perder a chance de viver um amor saudável ou perder um jogo mesmo. Eu idolatrava uma ideia de amor torta ao mesmo tempo que a questionava.
Minha visão foi mudando e passou a ser mais difícil escrever sobre. Percebi que os conflitos que entendemos como inerentes ao amor não o definem. Agora considero esse sentimento como algo leve e o vejo como uma troca gostosa de carícias,de memes, risadas, sonhos e preocupações de pessoas completas. Pra mim, ele é tranquilo, é se satisfazer ao ficar perto e dividir, se divertir e desabafar deitado na cama antes de dormir. Fazer nada juntos e gostar muito disso e ter um mundo de piadas internas que exteriorizam um pouco da conexão que existe ali. Não são metades que formam um, são pessoas diferentes que juntas potencializam o que a outra tem de bom.
As histórias de amor agora só fazem sentido se contadas cara a cara. Gosto de ouvir como as pessoas se conheceram, como elas estão juntas e o que elas planejam. Gosto de acompanhar a história observando todas as nuances das expressões humanas e acompanhar a felicidade conjunta. O amor é simples demais para ser traduzido só em palavras. A intensidade do amor não é tumultuada, ela é uma sensação imensa de que a simplicidade do que se vive não é explicável. Ele só existe e nos preenche. É a questão da prova que é fácil, só que a gente erra porque acredita que não pode ser tão simples assim e fica procurando algo mais.
Acho que aprendi o que é amor só quando parei de idealizá-lo e passei a vivê-lo.
Para isso bastou descobrir que na palavra amor cabe relações humanas que vão muito além de pares românticos e que qualquer afeto pode ser construído pelos envolvidos sem naturalizar dores e angústias além daquelas que a convivência humana saudável pode trazer.
A palavra-chave do amor, qualquer que seja o foco dele, é vontade de fazer ser bom. Se amor é mesmo um jogo, como dizem os filmes e os conselhos, ele é um joguinho de construção. Peça por peça, se monta e desmonta o que é o amor.
Desde o registro do nascimento no boletim médico, nós recebemos um número que nos identifica. Data, hora, peso, altura, protocolo de entrada da gestante (ainda somos um pouco nossas mães). Poucos dias depois, alguém nos registra e o cartório informa ao mundo o nome e sobrenome que a família escolheu e nos dá um número que servirá de base para tudo, o de matrícula. Agora temos uma certidão de nascimento. O Estado e o direito nos reconhece. Com ele, conseguimos ter os números que abrem as portas para tudo: o de registro geral e o do cadastro de pessoas físicas. Nesse meio tempo, somos registrados em cada instituição que pisamos: escola, faculdade, banco, plano de saúde, cursinho de idiomas, trabalho, clube, outro país. Do passaporte à carteira nacional de habilitação. Também somos o ddd e o número do celular.
Seu nome, seus números. Para acessar qualquer direito, para comprar várias coisas, contratar serviços, receber salário, para atravessar a fronteira, a gente precisa de se afirmar como uma sequência de algarismos. Existimos enquanto números, enquanto achamos que somos nomes.
Um dia tememos o bug do milênio, os computadores eram programados para entender os anos com apenas dois dígitos e 00 podia ser 1900 ou 2000. Datas erradas, números binários, falência, juros negativos, investimentos perdidos: era a previsão de uma desordem no sistema econômico mundial sem precedentes. O ano virou sem o apocalipse financeiro e seguimos com medo dos próximos fins do mundo.
O meu fim do mundo ocorreu numa segunda-feira, ao descobrir que mais de dois anos da minha vida tinham sumido de um sistema. Foi um bug que passou despercebido por ter atingido só a parte de um todo e se alimentou da incompetência alheia e da minha negligente mania de adiar tudo e não conferir nem troco. Tenho ou tinha a ingenuidade de quem se acha mais que número. Sempre achei que eu era gente e que era meu nome que carregava minha história. Eu não sabia que nome não é garantia de existência. Puff, nenhum dos tantos protocolos que um dia tive que anotar consta como registrado, tudo apagado. Em algum aspecto deixei de existir. Minha percepção de quem eu sou perpassa por esses anos perdidos, mas eles não existem mais. São feitos de memórias sem fé pública. Qualquer coisa feita pra corrigir será fora de hora. Tudo será refeito com uma nova data. Os anos continuarão vagos. Um lapso temporal que soa como anos sabáticos. A nova data valerá para documentos e constará no sistema, mas um pedaço de mim desapareceu. Ainda existe pra mim, mas oficialmente sumiu. Sou o que consta ou o que aconteceu?
Um bug de consequências burocráticas que num mundo de números e documentos afeta até os batimentos cardíacos e o funcionamento do intestino. Somos mais número que imaginamos. O acesso ao mundo depende deles. Somos afetados, somos dependentes.
Depois dessa, não sei por quanto tempo me sentirei confortável sem uma conta de banco e um cartão de crédito. Por não existir em termos capitalistas ou corporativos, fui rejeitada na hora de contratar alguns serviços algumas vezes. Nunca tinha me incomodado com isso antes, achava que era só uma bizarrice boa pra virar “causo”. Agora temo que a cada ano sem, eu passe a existir menos, independente de eu ter me tornado ou não mais gente. Afinal, é um número a menos e somos todos feitos por eles.
Sou filha de peixe. Fui encontrada à beira de um rio poluído, daqueles que cheiram morte. Hoje tenho a teoria de que meus pais-peixe queriam tanto que eu vivesse que pediram às águas que eu me tornasse gente. Me tornei e cresci pisando firme numa terra de um rio morto.
Minha mãe-gente me encontrou por morar perto de um dos trechos mais vivos do rio morto da cidade. Era 06:50 da manhã de um domingo e ela acordou com um choro de quem nunca sentiu o ar entrar pelas narinas vindo do lado do rio. Ela pensou que aquele som vinha de um parto estranho, o parto de uma mulher silenciosa e saiu para tentar ajudar. Encontrou, bem na beira do rio, um bebê sozinho, todo molhado, já maior do que um recém nascido, mas que parecia respirar pela primeira vez.
Mamãe-gente me levou para o hospital, falou com as instituições, conversou com a mídia e lutou para conseguir ficar comigo. Meu surgimento ali, na beira do rio, foi encarado por ela como um presente das águas e uma missão. Ela deveria me fazer ser uma filha digna do rio, a última filha dele.
Mamãe correu tanto para acudir a mulher inexistente que paria um bebê choroso não por ser enfermeira, mas por ser seu destino. Ela é bibliotecária e antes de mim nunca tinha cuidado de ninguém. Numa cidade seca de tudo, inclusive de recursos e atenção política, ela tinha que me levar para o trabalho todo dia. Imagine só um bebê numa biblioteca! Qualquer chorinho e os olhares cresciam para cima dela. Viveu com medo de perder o emprego até que um dia sonhou com uma confusão de sons, sensações e cores e acordou sabendo que precisava arrumar um aquário e colocar perto de onde eu ficava. Funcionou.
Mamãe também fala que eu sempre senti muita sede. Se a indicação de quantidade de água diária é dois litros, eu sempre bebi ao menos três. Nenhum suco, leite, refrigerante, chá ou café jamais me saciou, só água.
A cidade onde cresci nunca teve água direito. O rio, sem a vida dos peixes, secou e morreu. Vivi num ambiente em que a chuva e o banho eram meu único contato com a água. A chuva só aparecia durante uns quatro meses do ano e ainda assim era rara. As piscinas eram para os poucos que podiam pagar cotas em clubes e eu nunca nem vi.
Quando eu tinha sete anos, mamãe e eu fomos visitar minha avó. Ela morava numa cidade do interior, cheia de rios, há oito horas de viagem do meu local natal. Um dos afluentes passava bem no terreno da casa dela. Ao chegar lá, vi águas cristalinas num córrego cheio de peixes e essa foi a primeira vez que percebi a abundância e o poder da água. Fiquei encantada e pulei. Foi um deus nos acuda: mãe e vó desesperadas até perceberem que eu sabia nadar. Passado o susto, elas ficaram chocadas ao me ver dar braçadas, bater as pernas e boiar. Vovó disse para minha mãe “Você deu o nome certo para ela”. Me chamo Iara e segundo minha mãe meu nome significa senhora das águas em algum idioma que fugiu da minha memória.
Lembro que foi muito sofrido me separar da água e voltar para a sequidão. Custei a me adaptar ao local que sempre vivi. Meu nariz sangrou todo fim de tarde durante o mês que seguiu minha despedida da água. Nessa época, mamãe já sabia que eu era de fato uma filha da água. Ela não tinha dúvidas. Até minha pele lembrava em algo a escama lisa de um peixe.
Descobri que eu era diferente aos dezesseis anos. Sempre soube como fui encontrada, mas nunca tinha me pensado como filha de peixe, do rio, da água. Ouvia os casos da minha mãe e eu achava que ela gostava de criar um mito em cima de mim simplesmente por ser uma boa contadora de histórias e fã de livros e folclore. A ficha caiu quando comi comida japonesa pela primeira vez. Sentir o gosto e textura de uma alga me tocou de um jeito que eu simplesmente disparei a chorar no meio do restaurante, mesmo diante de toda a turma da escola. Foi ali que notei que todos meus interesses se relacionavam com o mundo aquático e parei de tentar nadar contra meu destino.
Vim morar longe de casa para estudar biologia marinha. Mamãe veio junto, porque segundo ela todo lugar precisa de uma bibliotecária, mas eu acho que é porque ela sabia que depois que eu entrasse no mar pela primeira vez, eu não voltaria pra sequidão nunca mais. De longe, de dentro do ônibus, eu vi o mar e já o senti reverberar dentro de mim. Desci na rodoviária com mala e cuia e já fui ao encontro das águas. Ao vivenciar o mar, o sal, a espuma das ondas, a força do puxão das águas marinhas, eu percebi o meu lugar no mundo. Me descobri senhora das águas e hoje vivo por ela, porque foi ela que me deu a vida. Devo isso aos pais-peixe e minha mãe-gente que me preparou para ser quem eu nasci para ser.
Hoje parei para pensar em tanta coisa. Acordei e contemplei o som da chuva batendo na janela fechada e os uivos causados pelo vento passando no corredor que os prédios formam nos centros das cidades. O barulhinho da água caindo camuflava os sons urbanos. Não dava para ouvir o vai e vem de carros. As coisas pareciam calmas, simples. Tudo pairava. O tempo e a cidade pareciam suspensos. O mundo parecia nosso. Tudo parecia um sonho. Tudo parecia certo.
Voltei a dormir, a chuvinha me ninou até que o dia nasceu de vez. Nem a chuva e nem os uivos de vento nesse horário são capazes de camuflar a cidade. As buzinas chamam atenção e lembram que a cidade parou, mas o tempo não, ele corre, independentemente de ter alguém parado na frente dele. Nesses casos, ele passa por cima.
A cidade foi interrompida no seu fluxo cotidiano. Nem ela, nem eu, podemos nos dar o luxo de descontinuar o que tem para hoje. O movimento é obrigatório, todo mundo está proibido de estacionar e finalmente conseguir ver qual é o melhor caminho no meio do caos da chuva e da cidade. Somos baratas tontas, corremos em círculos buscando a rua que não está engarrafada. Pelo menos agora tem Waze e Google Maps para ajudar.
O destino é certo. Vou para o ponto de ônibus, espero, avisto o veículo e corro para fechar a sombrinha e me enfiar no meio dos outros tantos que querem entrar logo naquela caixa de metal que não cabe todo mundo. Entro, sinto cheiro de gente molhada, suada, cansada, sigo, desço, vivo, mas sei que tem hora que todo esse movimento é só estagnação. Sei porque mais cedo estava pairando no ar e pensei que o sonho segue vivo, por mais que às vezes eu esqueça de tentar.