Em algum momento de 2011, Hillé Puonto, pseudônimo de Lilian Dorea, começou a publicar suas aventuras como livreira em um blog chamado [manual prático de bons modos em livrarias] e algumas dessas histórias foram escolhidas para integrar um livro com o mesmo nome.
Se você gostava de literatura, acompanhava vários blogs e vivia na internet nessa época, provavelmente vai se lembrar de ter visto esse nome em algum lugar ou vai reagir ao meu texto com um “aaaaaaaaaaa” de empolgação. Relembrar é viver, não é mesmo fã da Hillé?
Uma cliente diz detestar Clarice Lispector por odiar livros espíritas, outro pergunta sobre o livro do Freddie Mercury buscando uma obra de direito civil escrita por Fredie Didier e a gente espera — e encontra — a cada página diálogos tão ou mais surreais do que esses dois causos citados. Todos contatos de uma forma que torna as situações ainda mais divertidas.
Eu poderia facilmente ser a cliente que chega na livraria e fala “Quero o livro do Chuchu” buscando algo sobre a entidade lovecraftiana Chutlhu. Na foto: trecho da página 87 do livro [manual de bons modos em livrarias]
O mundo dos livros muitas vezes é intimidador. A gente teme errar pronúncias, autores, títulos e considera que não conhecer certos clássicos é algo que nos diminui, mas as coisas não precisam ser assim. A gente pode rir disso, dos erros dos outros e dos nossos.
Durante a leitura, é impossível não lembrar das inúmeras vezes que falamos a famigerada frase “aquele livro, daquela autora, sabe?” e suas variações cinematográficas, noveleiras e musicais. E é bem provável que você comece a rir de si mesmo ao recordar as situações em que inventou nomes de obras que não existem e aprontou muitas confusões ao pronunciar nomes alemães, russos ou até mesmo ingleses. Quem nunca errou ao falar Freud ou Nietzsche ou fez uma busca no Google para conferir como escreve o nome do escritor Dostoiévski, hein?
No[manual prático de bons modos em livrarias] também há uma parte destinada para as confusões que os livreiros aprontam, histórias que mostram que até mesmo quem trabalha com isso se confunde, erra e às vezes não sabe do que está falando. Através das risadas, a gente dá o primeiro passo para entender que livros são só livros, eles não servem para medir nosso caráter, inteligência ou nos dar status.
Todos esses constrangimentos servem como material para bons causos para serem postados no Medium, no Facebook ou serem contados na mesa de bar. Essa é a lição que o manual me deixou. Vamos, então, deixar a vergonha de lado e começar a compartilhar?
De salto e terninho, me sentei em um bar conhecido por vender chopp em dobro para engravatados durante o happy hour. Rapidamente, um cara me abordou. Respondi “Não, eu não estou acompanhada, moço” e o jogo começou.
Trocamos palavras, muitos beijos e alguns sorrisos e eu falei para ele vir comigo. Peguei sua mão e com jeitinho o guiei para fora do bar. “Vamos para um lugar mais reservado?”, eu disse enquanto o levava para o meu carro.
Encontramos minhas amigas pouco tempo depois. No olho, avaliaram com muito gosto o material que eu tinha levado e brincaram dizendo “Esse vai dar um trabalho, hein?”. Ele riu todo faceiro, com a certeza que tinha tirado a sorte grande. Juntos brindamos com cosmopolitans nas mãos.
Meia hora após o brinde, ele acordou e se deparou com muito mato, pouca luz, comigo e com minhas amigas. Nenhuma de salto, todas vestidas para matar: calça, coturno e espingarda. Demos uns minutos para ele tentar se esconder e saímos à caça.
Acertei suas costas e subi três posições no placar. Na próxima semana, já alcanço o primeiro lugar. É tipo um Counter Strike, mas no lugar das balas, usamos dardos tranquilizantes e depois devolvemos o animal para seu habitat, o bar.
Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroJogo.
Desci do ônibus por volta das 23 horas. A rua estava deserta. A madrugada anterior tinha marcado incríveis 7ºC e hoje a noite prometia um novo recorde. As minhas chaves estavam apertadas entre meus dedos mais centrais, como sempre, e eu tentava me convencer que estava munida de um soco inglês com pontas capazes de cegar um estuprador desavisado.
Faltando um pouco mais de um quarteirão para chegar em casa, a rua ficou mais escura e um homem apareceu na esquina da frente e veio em minha direção. Eu não tinha para onde fugir. Ele falava comigo, mas o medo e o barulho do vento não me deixavam entender bem o que ele dizia.
“Quando ele abaixar a guarda, enfio a ponta da chave na bochecha dele com toda minha força, chuto as bolas do desgraçado e corro”, planejei.
Eu tinha algo capaz de rasgar a pele e força o suficiente para usar minha chave como arma graças aos meses de musculação. Ele estava cada vez mais próximo e meu corpo cada vez mais tenso. Íamos nos encontrar de frente em alguns metros, mas antes disso, ele parou e começou a gritar “Mariana, é você? Sou eu, Seu João, seu porteiro. A luz do poste queimou, fiquei preocupado e vim te buscar”.
Não foi nesse dia que tive que usar técnicas de sobrevivência para conseguir chegar em casa sã e salva.
Texto publicado originalmente no meu perfil na Sweek para o concurso #MicroChave.
Foto arquivo pessoal — A capa e as ilustrações do interior do livro foram feitas pela Laura Athayde — Adquira seu exemplar aqui.
se enganam os que não sabem
que a literatura também é uma arma
a mais carregada
a mais poderosa
tanto que os livros que um dia foram incendiados
ficaram — Ryane Leão
Seja na literatura ou nas artes plásticas, as mulheres nunca foram vistas como criadoras. Por séculos, fomos vistas ou como musas inspiradoras ou como mero suporte doméstico. Algumas poucas conseguiram o feito incrível de não serem apagadas na vida e na história e seus nomes são exceções em meio a tantos homens. Entre elas, Wang Zhenyi, uma erudita chinesa que nasceu em 1768 e escreveu poesias sobre injustiças, textos sobre trigonometria e explicações sobre eclipses, e a poeta e filósofa Christine de Pizan, italiana que nasceu 1363 e chamou atenção dos mecenas. Em seus escritos, Christine de Pizan teceu duras críticas ao machismo presente na literatura e defendeu a educação para as mulheres.
Por muito tempo, as mulheres fizeram parte da arte e da literatura através das gretinhas das portas e janelas da grande sala do cânone. Vez ou outra, uma conseguia passar por esses espaços minúsculos e adentrava na sala, sem, entretanto, ser vista como igual ao restante. Em pleno século XXI, a lógica masculina e branca segue em vigor. As gretas aumentaram de tamanho, mas ainda são apenas gretas. Nem mulheres e nem homens não brancos entram pela porta da frente, eles ainda precisam se espremer para conseguir passar pelos buracos e, enfim, entrar. Vez ou outra uma mulher branca consegue adentrar pulando a janela que alguém esqueceu aberta e logo tratam de dar um jeito de fechá-la pra ninguém mais conseguir invadir.
Recentemente, bem ao lado da grande sala do cânone, surgiu um outro espaço: a internet. Bem mais fácil que entrar que a salinha, as redes se tornaram uma maneira de expor trabalhos e conhecer novos artistas e escritores e hoje vivemos um momento de efervescência de mulheres que escrevem, principalmente poesia. Quem só entrava na salinha com sorte, esforço e através das frestas, começou a construir um novo espaço.
Rupi Kaur, Nayyirah Waheed, Ryane Leão e outras encontram nas redes sociais um público que buscava algo como o que elas fazem. Uma poesia certeira, apesar de curta, que fala sobre o que toca. Todas elas abordam questões que antes eram silenciadas de acordo com suas vivências e inspirações. A gente vive um momento na literatura que encoraja mulheres a dividirem o que sentem, pensam e passam. Uma onda de mulheres que se fortalecem na escrita e na voz umas das outras.
você me matou
mas não conseguiu
arrancar do meu peito
a minha vontade louca
de renascer — Ryane Leão
Com “Tudo nela brilha e queima” nas mãos, percebi já na orelha que muitas poesias de Ryane Leão já eram grandes conhecidas minhas. Parte da minha timeline lê, compartilha, curte e comenta o trabalho da autora da página “Onde jazz meu coração”.
“Poemas de luta e amor” é o subtítulo do livro. Essa frase traduz muito da nossa época. A internet fez o feminismo e temas como relacionamento abusivo, cultura do estupro e autoestima feminina virarem assuntos comuns em conversas de mulheres. As poesias da autora são um convite para que a gente olhe para nós mesmas e servem como um guia para muitas conseguirem enxergar e nomear as dores causadas pelo machismo e até pelo racismo nas experiências atuais e do passado. Além disso, Ryane Leão, sendo lésbica, também conversa, ainda que muitas vezes de forma indireta, sobre essa temática, mostrando que luta e amor são questões que precisam ser levantadas por vieses não heterossexuais.
Os relacionamentos afetivos ainda são para muitas mulheres um espaço em que a violência, a discriminação e o preconceito passam batido por causa da naturalização. Fomos ensinadas que precisamos de um homem ao nosso lado, que nosso valor está no homem que conseguimos agarrar e que a gente precisa aceitar certas coisas para não ficarmos sozinhas. Ryane escreve contra essa naturalização e suas linhas servem como lembretes da importância da autoestima e da autonomia. Ela fala de amor e paixão, mas lembra seus leitores que o amor próprio também é algo a ser buscado.
A estrutura da poesia de Ryane é bem simples, o que pode incomodar os mais puristas, mas o que chama a atenção mesmo é a mensagem dela para as mulheres, especialmente as negras. Ela fala em ancestralidade, identidade, autocuidado, força, voz e empoderamento. Ela acredita na potência das leitoras mesmo sem conhecê-las e o sucesso do que ela escreve mostra que isso pode ser algo revolucionário para quem lê.
quando
me toco
descubro
minhas margens
desconstruo
minhas normas
desnudo meus
contornos
são meus dedos
fazendo a poesia
que leva meu nome
no título. — Ryane Leão
A fotografia feita por Alfted Eisenstaedt se tornou uma das imagens mais icônicas do século XX. As pessoas a aplaudem pela ousadia, pela paixão e por essa foto ter sido feita na comemoração do fim da 2ª Guerrra, porém a desconhecida da foto já alegou mais de uma vez que não foi uma escolha dela ser beijada. Ela foi agarrada de repente, mas pouco se fala sobre isso.
Muitos homens acham que insistir, pressionar e manipular situações para conseguir sexo é um comportamento aceitável, natural até. Esses caras acham que só é violência, que só há violação no consentimento, se obrigar, de forma direta, a mulher a fazer alguma coisa.
Nesse mesmo sentido, há quem fale que as mulheres têm agência e que elas precisam se responsabilizar por não ter conseguido dizer “não” COM TODAS AS LETRAS E TIL, mesmo quando elas negam fisicamente as tentativas de contato mais íntimo várias vezes. Dizer que mulheres devem se responsabilizar por não terem expressado o não de forma direta, firme e verbal ignora que consentimento não é “ceder às investidas”.
É o próprio jogo sexual padrão que coloca mulheres como seres sem agência que não sabem bem o que querem e precisam ser pressionadas para fazerem o que supostamente desejam no íntimo. Não é a gente que faz isso ao questionar o quão nocivo é considerarem ceder consentir.
Homens e mulheres precisam detonar essa dinâmica sexual que coloca as mulheres no lugar de pessoa que cede, porque isso alimenta a visão dos caras de que insistir faz parte do jogo, que pode continuar insistentemente porque ela está fazendo charminho, que pressionar é o caminho natural das coisas.
É essencial que a gente combata a reprodução dessa lógica na gente, que a gente aprenda a dizer não, mas é ainda mais necessário fazer a sociedade entender que muitas vezes os caras notam o desconforto, mas insistem porque não se importam, porque foram ensinados que é assim mesmo ou até por considerarem que é assim que é bom, que conseguir após insistência faz a conquista ser mais valiosa.
Noto que a maioria das pessoas se lembra de cobrar que a mulher diga não com todas as letras, ignorando os possíveis riscos que esse não pode representar dependendo da situação, mas esquece de reivindicar que caras respeitem sinais óbvios de desconforto, perguntem mais e notem que a pessoa com quem eles querem transar também é gente, tem seus desejos, seus gostos, suas dúvidas e seu tempo.
A paquera não pode funcionar como um jogo que tem como único perdedor a mulher. E insistir, pressionar e manipular situações para obter o sexo desejado é ver a conquista e as relações sexuais assim.
A paquera tem que ser encarada como uma ação conjunta, na qual os envolvidos têm agência e dizem sim, não, não gosto disso, prefiro assim e têm suas falas consideradas. Só que as relações entre homens e mulheres partem de locais desiguais em que as mulheres são ensinadas a cederem e homens a insistirem, dinâmica que desencoraja que o “não” feminino seja expresso ou mesmo respeitado, já que a negativa pode ser encarada como uma afronta, uma grosseria ou mesmo um desafio a mais.
Para que o flerte seja uma ação conjunta é preciso tentar equilibrar as relações de poder envolvidas de forma consciente. Se há uma dificuldade de mulheres dizerem “não” de forma direta e assertiva, torna-se necessário não só que a gente encoraje mulheres a dizerem, mas que homens tomem a consciência de que é preciso respeitar sinais corporais e comportamentais óbvios, expressos através de uma negativa verbal ou não verbal, aprender quais são esses sinais, caso não saibam, e entender que insistir em um comportamento sexual ao notarem que a mulher agiu de alguma forma para impedi-lo é tentar vencer pelo cansaço. E vencer pelo cansaço não é consentimento.
Erase Discrimination, 1999; Pink rubber with ink screenprint, The Guerrilla Girls Talk Back.
A virada de um ano para o outro marca para muitas pessoas o início de novas possibilidades: a gente revê nossos hábitos, estabelece metas, cria novos projetos, faz listas com o que queremos fazer nos 365 dias seguintes e refletimos sobre toda uma nova rotina que combina mais com quem a gente quer ser. Se no último ano, você percebeu o quanto a arte feita por mulheres é desvalorizada e se assustou com o quão poucas artistas, escritoras, diretoras mulheres você conhece e uma de suas resoluções do novo ano é valorizar mais o trabalho delas, tenho uma lista de ideias de como começar.
1) Conheça, acompanhe e participe de hashtags de projetos como o #LeiaMulheres e o #52FilmsByWomen
A Women In Film criou um movimento para dar visibilidade às produções cinematográficas femininas. A proposta é ver um filme dirigido por uma mulher por semana durante um ano e postar sobre ele nas redes sociais usando a hashtag #52FilmsByWomen ou a versão em português #52filmesPorMulheres. Já a #LeiaMulheres foi inspirada na hashtag #ReadWomen2014, criada pela Joanna Walsh e que propõe celebrar obras de escritoras. No Brasil, além do uso da hashtag ter viralizado, houve uma proliferação de clubes de leitura com essa temática em várias cidades e de sites com resenhas de livros de autoria feminina. A reflexão sobre as mulheres no mercado editorial foi além e hoje existe também a iniciativa #LeiaMulheresNegras, que divulga a literatura feita por elas para combater a invisibilidade que o combo do machismo com o racismo faz existir.
2) Busque conhecer e ler escritoras brasileiras
O mercado editorial tem poucas mulheres em destaque, entre essas poucas, a maioria é norte-americana ou europeia, por isso é importante valorizar as escritoras daqui. Além disso, conhecer escritoras brasileiras é uma forma de conhecer o país que você vive e as diversas realidades e ficções que podem acontecer dentro desse território. Não sabe por qual autora começar? Sugiro conhecer as obras de Ana Paula Maia, Angélica Freitas, Ana Rüsche, Aline Valek, Conceição Evaristo, Eliane Brum, Elisa Lucinda, Jarid Arraes, Ryane Leão, Socorro Acioli, Carolina Maria de Jesus, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hist e muitas outras.
3) Valorize o trabalho de escritoras e artistas independentes
Ficar preso às publicações das grandes editoras e às exposições das galerias famosas faz a gente perder muito trabalho bom. Sendo a arte um espaço ainda predominantemente masculino e branco, os trabalhos que ficam à margem costumam ser justamente o de mulheres e de outros grupos que sofrem discriminação. Vale a pena ficar de olho nos sites de financiamento coletivo! Uma alternativa que tem sido muito utilizada por artistas e escritoras.
4) Acompanhe páginas que divulgam trabalhos feitos por mulheres, que indicam novos nomes da literatura e arte, exposições e filmes
Indique leituras, filmes, artistas. Resenhe. Chame suas amigas e seus amigos para ver algum filme em cartaz dirigido por uma mulher. Apoie o trabalho das escritoras, artistas e cineastas que você gosta. Elogie, mostre que se importa com o que elas produzem. Compartilhar nomes femininos que fizeram uma arte que te agradou é uma forma de valorizar o trabalho das autoras e você ainda abre portas para ouvir indicações de outras pessoas e conversar sobre.
6) Conheça zines e publicações que valorizam os trabalhos das minas
Como a Fale Com Elas, a Alpaca Press, Revista Farpa e outras iniciativas. Os exemplos citados são publicações organizadas e editadas por mulheres que reúnem trabalhos de autoria feminina. Um inception de valorização das minas.
7) Frequente exposições artísticas de mulheres.
Pare sempre para pensar na quantidade de trabalhos de mulheres presentes nas exposições coletivas. Vá nas exposições individuais de artistas mulheres. Busque saber mais sobre artistas e escritoras de épocas passadas. Pesquise sobre artistas e escritoras contemporâneas. Conheça as Guerrilla Girls. Destrua a ideia de que mulheres na arte têm o papel de musas!
Texto adaptado de uma publicação feita por mim na Alpaca Press. O projeto acabou e por isso alguns textos meus publicados originalmente por lá serão republicados por aqui.
Calibã e a bruxa, livro escrito pela historiadora feminista Silvia Federici, foi publicado pela primeira vez em 2004, mas somente ganhou sua versão em português treze anos depois com uma caprichosa edição feita pela Editora Elefante.
A obra expõe uma análise sobre a transição do feudalismo para o capitalismo sem ignorar a presença das mulheres durante esse período. Assim, representa um contraponto às narrativas predominantes, que encaram a história sem observar o impacto dos acontecimentos nas mulheres e as ações que contaram com a participação feminina.
Quando se estuda um período histórico sem observar a história das mulheres, há um apagamento delas enquanto parte da sociedade e isso resulta em análises falhas que ignoram momentos históricos cruciais. A caça às bruxas, suas motivações e tudo que aconteceu que serviu como base para esse ataque é um desses pontos que passaram batido por diversos estudiosos, incluindo Karl Marx e Foucault.
Silvia Federici apresenta informações sobre a história das mulheres, das lutas coletivas durante o feudalismo, da vida comunal e do controle do corpo pelo Estado que são essenciais para entender as transformações que o capitalismo trouxe, especialmente para as mulheres. A autora expõe como a caça às bruxas não foi algo que aconteceu simplesmente por causa das crenças de uma época, como alguns insistem em dizer, e consegue relacionar a perseguição e a morte das mulheres com a exploração do corpo feminino necessária para a construção do proletariado e para a manutenção da lógica capitalista.
O estudo feito nesse livro mostra a influência de momentos de desequilíbrio econômico e de crises demográficas, como a ocorrida durante a Peste Negra, nas leis e na política de terras e como essas mudanças institucionais e seus efeitos culminaram na caça às bruxas e, por fim, no controle estatal do corpo das mulheres ainda vigente hoje.
Silvia Federici sustenta em diversos trabalhos que o capitalismo se ampara na exploração do trabalho reprodutivo e de cuidado feito pelas mulheres de forma gratuita no seio de seus lares. Em Calibã e a bruxa, ela expõe como o aprofundamento da divisão entre homens e mulheres, a campanha de terror contra elas e a destruição da autonomia e o sequestro dos conhecimentos femininos sobre contracepção e parto foram pontos essenciais para a acumulação primitiva. Elas se tornaram as produtoras de mão de obra, num momento em que o corpo humano era a única máquina disponível, e todas as possíveis funções que elas poderiam assumir fora dessa lógica sofreram uma intensa desvalorização quando feitas por elas.
A institucionalização da violência contra as mulheres, a resistência feminina, o olhar masculino sobre elas e o controle estatal sobre a vida de todos foram os pontos que mais me chamaram a atenção durante a leitura. Essa obra é um mergulho na condição feminina na história e apresenta informações e argumentos essenciais para se entender a misoginia hoje. Sem esquecer, contudo, de analisar também a exploração dos povos originários da América, a escravatura e a colonização, enquanto processos capitalistas.
Imagem do livro — Acervo pessoal — Adquira seu exemplar aqui.
O livro “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, foi publicado pela primeira vez em 1985 e, após mais de trinta anos de seu lançamento, foi adaptado ao formato de seriado e se tornou uma febre mundial.
“Nenhuma bugiganga imaginária, nenhuma lei imaginária, nem atrocidades imaginárias. Deus está nos detalhes, é o que dizem. O diabo também” foi a regra que Atwood criou para si mesma para escrever esse livro. E talvez seja justamente essa possibilidade dos acontecimentos narrados na obra serem o futuro por, de forma isolada, aqueles fatos já terem existido ou ainda existirem, tenha tornado a obra icônica. Há um reconhecimento em comum, um lembrete que a questão não é só o medo do que vai vir, há muito daquele horror no presente e no passado.
Após um golpe contra o governo dos Estados Unidos, Gilead, uma teocracia de direitos muito limitada, é criada. Com os graus de fertilidade cada vez mais baixos devido a contaminação de águas, terras e afins, garantir a procriação da população passou a ser o principal argumento da necessidade de imposição de leis absurdas e, mais uma vez, a culpa da esterilidade ficou na conta só das mulheres.
Nessa nova sociedade, as mulheres tiveram seus direitos restringidos ao extremo e suas existências passaram a depender de um encaixe em uma das quatro atribuições disponíveis para elas, essas muito ligadas ao que é definido como feminino na sociedade que vivemos hoje.
As mulheres de Gilead podem ser Aias, Martas, Esposas ou Tias e cada um desses papéis têm um código de vestimenta restrito e com cores específicas que sinalizam seu status naquela sociedade, criando uma rivalidade entre elas. As mulheres que não se encaixam são vistas como “não mulheres” e são mandadas para trabalhar em campos de trabalho forçado, um destino de morte certa. Extermínio.
As mulheres em idade fértil que pariram em algum momento de suas vidas se tornam Aias, mulheres treinadas para engravidar, parir e amamentar um filho destinado ao Comandante e sua Esposa. Suas vestem parecem hábitos, são vermelhas e são acompanhadas de um chapéu branco que escondem seus rostos. As Esposas vestem azul, como Virgem Maria, e são mulheres inférteis casadas com os Comandantes. As Martas vestem verde e são responsáveis pelos trabalhos domésticos, enquanto as Tias têm a função de educar as Aias a servirem e usam marrom. Também há as econoesposas, as esposas de homens de classe mais baixa que a dos Comandantes, ponto pouco explorado do livro. Esses homens não têm o direito de possuir Aias, maior símbolo de status dessa sociedade.
A situação de todas as mulheres na República de Gilead é de privação de direitos, mas o lugar das Aias é o de um receptáculo controlado. Elas são um objeto de poder, por possuírem um útero fértil, esse signo de sua opressão. A história do livro é narrada por uma Aia. Seu nome verdadeiro é desconhecido, mas dentro do regime, ela é Offred, que significa “De Fred”.
A narrativa do livro é um fluxo de pensamentos da narradora-personagem. Ora a protagonista fala de suas memórias, para a gente entender como tudo era antes e quem ela foi um dia, ora fala das cerimônias, regras e rituais dessa teocracia. A personagem nos apresenta, com recortes, um mundo dominado pelo conservadorismo, sem liberdades individuais e baseado na misoginia, enquanto fala sobre seus sentimentos. Ela se apega ao passado para resistir ao presente. Lembrar de quem ela foi um dia, da filha que teve e de seu marido, é a maneira que ela encontrou de se manter com vontade de viver.
Apesar da história expor um mundo extremo, tudo ali parece possível como um desdobramento do mundo que vivemos por se basear numa opressão real e em acontecimentos e discursos derivados dela. A obra tenta nos mostrar a possibilidade daquilo vir a acontecer, especialmente quando ela traz à tona suas memórias sobre os acontecimentos que antecederam a instauração desse Estado totalitário e teocrático.
O Conto da Aia já foi traduzido para cerca de quarenta idiomas, foi adaptado para cinema e tema de um balé, de uma ópera e agora de uma série que ganhou muitas categorias do Emmy Awards 2017.
O controle do corpo das mulheres nunca deixou de ser pauta em qualquer lugar do mundo e é por isso que essa distopia se parece tão próxima de nós. E, nesses tempos, ainda mais. O mundo avança novamente para o domínio do conservadorismo. Nos EUA, Trump representa um retrocesso para todos grupos vulneráveis, incluindo mulheres e, no Brasil, a bancada fundamentalista domina o legislativo federal, estadual e até mesmo municipal.
A obra é um fenômeno atualmente por provocar reflexões sobre família, religião, Estado, violência, poder e papéis considerados como femininos num momento crucial de avanço de retrocessos.
Com a exposição de um regime baseado em controle, violência, ameaça e religião, o leitor cultiva em si a certeza da importância da desobediência. Offred desobedece ao não esquecer quem foi no passado e, nas lembranças de quem foi um dia, encontra a força necessária para continuar existindo. Enquanto o mundo retira sua humanidade, lembrar que ainda é um indivíduo é resistência.
“Alguns livros assombram o leitor. Outros assombram o autor. The Handmaid’s Tale fez os dois”, disse Atwood uma vez num artigo do The Guardian e tenho que concordar. O mundo de Gilead faz soar um alarme interior que serve como um alerta para os rumos autoritários e assustadores que estão sendo desenhados agora.
Mulheres se vestem de Aias hoje e saem para protestar contra o controle estatal de seus corpos e mostram como essa história se tornou símbolo da resistência feminista contra todas as formas de opressão.
Obs: Durante a Virada Feminista Online pela Legalização do Aborto, fiz uma transmissão ao vivo no Ativismo de Sofá falando sobre o avanço do conservadorismo, a necessidade de resistência, livro/série “Conto da Aia” e o controle do corpo das mulheres. Quer ver o vídeo? Basta clicar aqui e dar play.