Eu sou um monstro

Foto meramente ilustrativa, pois não sou fofo e sou bem mais abstrato. Imagem encontrada aqui.

Sou nômade, vivo de favores e vou me ajeitando onde me deixam entrar. Finjo que vou ficar pouco tempo, que aparecerei só às vezes e que quase não vou incomodar. As pessoas não gostam de mim, mas me deixam entrar e se habituam com a minha presença por achar que faz parte. E eu entro, me ajeito e vou ganhando espaço, mesmo sendo insuportavelmente chato.

Eu gosto de zoar. Amarrar perna de sapo, criar apelidos cruéis e assustar quem não estiver atento. Esses são hábitos que tenho desde que nasci. Recentemente decidi adotar o rótulo de zoador e tenho aperfeiçoado meus dons para atingir em cheio os participantes da tal vida adulta.

Esse novo rótulo veio a calhar, viu? Agora quando eventualmente me confrontam, digo “quem tem limite é município” e as pessoas caem, como bobas, porque nunca querem ser estraga-prazeres. Elas temem cortar o barato de alguém e ganhar a fama de politicamente corretas. E eu aproveito disso sendo aquele cara que vive falando como são chatas essas pessoas que vivem patrulhando o humor, repito como um papagaio como é tudo inofensivo, digo que bullying forma caráter e outras baboseiras como “vocês são os verdadeiros fascistas” e assim consigo me manter por mais tempo na minha morada da vez.

Antigamente, tudo que eu fazia era mais direto, sabe? Os resultados apareciam rapidamente, não tinha tanto jogo e assim a comida ficava escassa num pulo e minhas mudanças tinham que acontecer com mais frequência. Pois agora, eu sou um novo monstro. Me adaptei aos tempos modernos e me alimento moderadamente em três em três horas, tudo muito saudável, com cara de indicação de nutricionista.

Antes minha comida era o medo, o pavor, a culpa. Agora é um prato diversificado e cada vez mais colorido: ansiedade, culpa, medo, tristeza, pavor, depressão, raiva, dores crônicas, compulsões variadas, insônia, paranoia, estresse e tudo mais que há de ruim.

Posso adotar muitas faces no mundo atual. Além do zoador, uma das minhas preferidas é a do cara que fica falando para todos que pra ser valorizado tem que vestir a camisa da empresa mesmo, que tem que se esforçar, dar o sangue, suar a tal da camisa da empresa até dar pizza debaixo dos braços. Adoro essa persona monstra! E juro que nem é porque o papo envolve suor e sangue, que, por sinal, caem muito bem brócolis e insônia! Esse personagem julga, julga e julga e faz aquele tipo de comentário que cria uma culpa deliciosa em todos ao redor! A moça que prefere tirar férias do que receber o proporcional ouve minha ladainha, começa a pensar nela e acaba dizendo foda-se para o seu corpo e mente que pedem descanso, trocando a folga pelo dinheiro e por uma suposta valorização profissional que nunca vai vir. Se eu tiver sorte, em alguns anos ou meses, ela vai ter um ataque de nervos que vai servir de sobremesa a semana inteira!

Gosto do jogo moderno. Vejo o definhar das minhas vítimas por anos, me alimento e me reproduzo. Fiquei menor, é verdade, e minhas crias, também. Mas isso é até bom, porque desse tamanho é mais fácil chegar de fininho e fixar morada ou, em alguns casos, me esconder por anos, fazendo refeições mínimas, até criar um espaço propício para crescer e constituir família. Nesse modus operandi, as pessoas demoram a perceber que somos tão nocivos e mesmo depois de anos, quando a gente já cresceu tanto que é um elefante enorme parado na sala de estar, eles fingem que não estão nos vendo.

Confesso que tem hora que sinto falta da juventude. Quem nunca, né? Os apetites vorazes, a inconsequência, a vontade de comer o mundo inteiro numa só mordida. Ai, ai, que saudade desses tempos em que a falta de mastigação não causava azia… Mas era outra época. Época em que éramos muitos, nômades, e dominávamos a igreja, o Estado e manipulávamos vilarejos falando sobre bruxas, pecado, bem e mal.

Desde esse tempo, me alertavam que quando chega a velhice a nostalgia aparece, principalmente quando somos imortais. Eu sei que aquela dinâmica toda de se empanturrar de uma vez e andar dias em busca de um novo cardápio não é boa pra mim e nem para os outros da minha idade. Deixo isso para alguns dos meus filhos, sobrinhos, netos e bisnetos, ainda jovens e com espírito aventureiro. Eles, inspirados em nossas histórias, resolveram voltar a alimentar a caça às bruxas e estão juntos aproveitando que o Estado Laico ainda é uma lenda.

Me perguntam algumas vezes se eu estou cansado, se penso em me aposentar e nossa, como esses caras não entenderam nada sobre ser monstro! A gente não se cansa! A gente se diverte! O trabalho é pouco, pouquíssimo. A gente não precisa de muita coisa para fazer os humanos fazerem o trabalho sujo. A gente tenta alguns e já é o suficiente. É como se fosse uma terceirização! Pauta que a gente apoiou bastante no Congresso, por sinal.

Não precisamos de muito esforço, porque os humanos se deixam levar. A gente investe na raiva, na mágoa, na culpa e no medo deles, sentimentos que eles adoram ignorar, e pronto, a refeição do dia está servida! Com o capitalismo, a globalização, as redes sociais e a internet com seus trolls e mensagens que espalham ódio e pânico facilmente, tudo ficou ainda mais fácil. Eles não olham a própria história e não entendem que nunca somos completamente exterminados, porque somos imortais e sobrevivemos — como sementes, larvas de aedes aegypyi ou bactérias e vírus congelados no permafost — a espera da oportunidade certa para poder prosperar. Esperamos dentro de cada um de vocês. Somos seus hóspedes folgados.


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Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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