Copies, dreams and enemies

Markus Spiske

Noite passada sonhei com toda espécie de doppelgänger. Vivi a versão comédia, a dramalhão e a de terror, essa inspirada no “Nós” do Jordan Peele, numa mesma bagunça onírica. E também a versão Divertidamente, que merece uma frase a parte, porque eu preciso explicar para o leitor que cada cópia costumava agir somente como cada copiado sentia ou nojo ou felicidade ou raiva ou tristeza, como se fôssemos unidimensionais assim.

Nesse mix de referências e gêneros, algo que se destacou foi a facilidade de ignorar as versões doppelgänger tristes. Elas ficavam só na delas e até cuidavam dos nossos bichos e coisas quando éramos enxotados de casa pelo nosso doppelgänger raivoso. Nunca causavam grandes problemas. A gente nem precisava enfrentá-las direito, parecia que as cópias tristes tinham ido tomar tudo da gente sem nem querer muito fazer isso. Era só oferecer um cobertozinho e um chocolate quente que ela desistia de nos fazer qualquer mal direto.

Encontrei a minha cópia triste pela primeira vez dias dias depois de expulsar a Nojinho descascando uma banana. (Sim, eu enfrentei um dos meus maiores medos pra conseguir expulsá-la da minha casa e funcionou!). A Thaís Triste estava deitada no corredor que liga a cozinha e o quarto. Meu primeiro instinto foi acolhê-la, conversar com ela, quase cheguei a abraçá-la, mas eu sabia que não dava para fazer mais do que isso. Ela não podia ficar sem eu perder tudo. Ainda assim, dei um tempo pra ela, como eu queria dar pra mim todas as vezes que me sentia daquela forma. Podia expulsá-la depois, deixar a minha cópia triste por último, né? Até porque eu sabia que uma hora a minha raiva ia aparecer, se é que ela já não estava por aí à espreita, e tudo se complicaria. Foi assim que fingi que minha empatia pelo que ameaçava tudo que eu tinha, inclusive a vida, era somente estratégia.

A gente só conseguia ter certeza de que não era a pessoa que procurávamos, mas sim a cópia, quando as cópias riam. A risada causava uma distorção da imagem delas durante menos de um segundo e isso era mais que o suficiente. Descobri isso bem no início da invasão, quando pouquíssimos relatos eram feitos nas redes sociais e imediatamente desacreditados no Twitter. Fui visitar meus pais e encontrei só ele, sem minha mãe e minha avó. Elas tinha saído, disse. Acatei. Até porque no sonho não tinha pandemia pra me fazer duvidar. Dividimos a casa por umas horas, conversamos, tudo parecia normal, mas mudou quando eu estava assistindo a versão do meu pai brincar com a gata da família. Quando ele riu, eu soube. Não era ele. Bem que tinha notado que ele estava meio que feliz demais. Depois do meu escândalo, apareceu todas as outras cópias Divertidamente dele e eu, aflita, peguei Eva e Billy e fui em busca dos meus pais e avó com medo do que aquelas criaturas poderiam ter feito.

Como eu estava dizendo antes, a partir desse episódio —  que terminou bem, mas eu não lembro direito como —  percebi que a melhor forma de identificar uma cópia então era simplesmente ser engraçado e, talvez, gentil. Sabe aquele sorrisinho que a gente dá quando se sente cuidado e querido? Saber gerá-lo era importantíssimo, principalmente porque chegar contando piadas sem qualquer contexto causa estranheza, seja entre humanos, humanos e cópias ou entre as próprias cópias. Sim, as cópias também possuem regras sociais e de etiqueta ou de tanto fingir ter desenvolveram uma muito parecida com a nossa. Enfim, por essas e outras, duvido muito que os stand-up comedians tiveram sucesso nessa empreitada contra o mal personificado por nós mesmos, mas não posso afirmar o fracasso do grupo com certeza, porque o sonho não forneceu qualquer informação sobre isso e nem sei se eu deveria comentar esse tipo de coisa num diário de sonhos público. É meio descontextualizado, né? Acho que vou cortar essa parte na próxima edição desse material.

Nunca soube de onde as cópias vieram e, confesso, não ter conseguido descobrir o que elas queriam. Até mesmo sobre o caráter delas ainda tenho minhas dúvidas. Nenhuma cópia minha parecia propriamente má ou boa. O universo onírico não explica muito, se apresenta cheio de furos e vez ou outra ignora todas dicotomias que a gente aprendeu desde cedo.

Só sei que mesmo depois de acordar eu não sei dizer ainda o que foi mais difícil: bater em um doppelgänger que imitava alguém que eu amava com perfeição ou lutar contra meu próprio doppelgänger. Alteridade e identidade se misturaram tantas vezes que suspeito que isso só pode ter sido parte da magia das criaturas que nos copiavam, mas talvez essa confusão seja simplesmente o que nos define como humanos, uma espécie de força-fraqueza que é impossível existir sem ter. Vai saber, né?

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Minhas espadas se voltarão contra mim até que eu entenda

Stillness InMotion

Eu não sei se entendi bem o que evoca o naipe de espadas. A minha estratégia para lidar com isso então vai ser escrever sobre esse incômodo com o não saber, a trava que surge em mim toda vez que eu sei que eu não sei e tenho poucas ferramentas ou interesse ou tempo para resolver isso. A trava ganha força também a partir do meu desejo de ser muito boa em tudo que eu faço e ameaça nunca mais abrir quando a ansiedade em aprender logo, matar a curiosidade e entender mais aparece.

Ainda assim, a atração pelo desconhecido é o que mexe comigo. É uma delícia sentir o frio na barriga que o flerte com o não saber causa, ser seduzida pela curiosidade, viver a busca por algo novo mesmo sabendo que qualquer conhecimento será sempre incompleto. Vivo sempre um paradoxo: sou seduzida pela promessa do mistério, do inacabado, de uma investigação sempre pendente, mas me perco na urgência do entendimento e na possibilidade de ir sempre além.

Quando pego um texto em inglês para ler, por exemplo, ainda que eu conheça o idioma o suficiente para continuar com a leitura, eu simplesmente não consigo prosseguir por muito tempo. A cada frase, percebo que não compreendo o suficiente mesmo quando conheço todas as palavras. Não importa se o entendimento vem do contexto ou do verbete de fato, sempre sinto que algo muito grande me escapa. Na comunicação, qualquer que seja, algo sempre escapole, mas, quando envolve um outro idioma que não é o seu, a sensação é de perseguir palavras-fantasmas, sombras de uma cultura-país-falante, e, por isso, eu fujo, ainda que queira muito ficar. No fim das contas, eu só aceito perder o sentido em português.

Ninguém sabe tudo. A gente está cansado de saber disso, mas o que a gente não sabe, mas quer muito um dia saber, também diz alguma coisa. Todas essas lacunas, junto com a nossa bagagem e capacidade de conectar o que está sendo aprendido com o que veio antes e vai vir depois, também. A gente não é só o que a gente já absorveu, conheceu, estudou, acha que entendeu, a gente é também tudo aquilo que a gente procura e também o que a gente teve coragem de imaginar ou mesmo abandonar, independente se ficou ou não o desejo de voltar nessa fantasia específica e não concretizada de completude.

Somos um emaranhado de pequenos saberes que nos ensinam a fazer mais e mais perguntas. E a gente adora se perder em todas as possibilidades que elas apresentam. Sei que busco muitas certezas ainda, que me perco nesse desejo, antecipo, travo e declaro guerras e mais guerras contra eu mesma, mas escrevendo tenho percebido que o que mexe com a gente, dá o clique, nos movimenta é sempre a imaginação. E a imaginação, querendo ou não, sempre está envolvida com as forças ocultas do não saber.

Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para esse mês de escrita e leitura foi tarô e, durante esse período, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo. Para essa segunda semana, elas escolheram o naipe de espadas, que é diretamente relacionado à racionalidade, lógica e pensamentos, mas também envolve os conflitos internos que podem surgir a partir desse plano mental.

Você pode ler o meu texto da primeira semana aqui.

Trailer de um filme estranho, meio ruim e talvez otimista demais sobre a vida após algum apocalipse

Alex Litvin

O que acontece quando começamos a tensionar o significado das palavras? O que a gente perde quando somos forçados pelas circunstâncias a usar as palavras e expressões que conhecemos de outra forma? O que essas mudanças significam? O que elas causam nas pessoas e na sociedade? O que acontece quando elas surgem a partir das consequências do que a humanidade já viveu, mas quase ninguém mais se lembra?

O que a humanidade conhecia como três da tarde não é mais três da tarde como sempre foi. Não tem luz do sol, não tem trabalho formal, não tem horas e mais horas que separa esse momento da hora de se recolher. As três horas da tarde parecem mais próximas agora das dez da noite de antes.

Família não é mais somente o grupo de pessoas que tem vínculo sanguíneo, de sobrenome e talvez de afeto. Família agora tem um significado mais próximo do que antes se entendia como comunidade. A sobrevivência humana passou a depender de redes de solidariedade e esses laços que surgiram da troca e do diálogo fizeram com que a ideia de parente ganhasse outros sentidos.

O mundo que se desenha agora, muitos anos após o que alguns chamaram de fim do mundo, é outro. Ele veio após os nomes democracia, povo e perseguição serem deturpados. Ele veio após fugas, guerras, desespero, dor e fins ganharem novas acepções. O que existe agora é um desejo urgente de sobrevivência e uma noção de que a humanidade é composta por seres sociais e que as pessoas precisam estar sempre cercadas de outras.

“Talvez tenhamos ficado muito tempo ensimesmados”, continua a protagonista branca, idosa e de cabelos lisos chamada Sônia, como a atriz famosa que a interpreta, para um grupo que não conheceu nada daquilo que ela viveu e agora a ouve com curiosidade e respeito.

Tem quem acredite que esse novo mundo se cria quando, às três horas da tarde, as pessoas se sentam juntas para conversar e compartilhar histórias antigas e novas. Alguma coisa acontece quando as pessoas se juntam. Alguma coisa acontece quando essa gente coloca no papel o que uma comunidade lembra, sonha, ri e conversa.


Esse texto é resultado do dia 8 do Desafio de Escrita para a Quarentena proposto pela Stefani Del Rio. A proposta era que se escrevesse uma espécie de sinopse para um filme fictício de distopia e/ou pós apocalíptico.

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A Thaís tem uns sonhos esquisitos, né?

Jr Korpa em Unsplash

Semana passada sonhei que eu cortava uma franjinha curta, ficava uma bosta e estava tudo bem. Depois, eu sonhei que fazia parte de uma espécie de máfia feminina que existia para resgatar mulheres de situações perigosas decorrentes do machismo. O grupo era conhecido como Amazonas.

Nesse último sonho, eu sempre começava minhas abordagens com muita gentileza. Eu sabia que os caras iam me ignorar ou vir com grosseria ou achar que eu estava dando em cima deles e isso me daria a justificativa perfeita para eu poder aloprar como nunca. Eu lutava muito bem e estava sempre pronta para espionar, manipular situações, argumentar, dar uns murros e também amparar as mulheres que precisavam. Eu era forte, hábil e circulava na cidade com aquela postura típica de quem não tem medo e usa roupas e calçados bonitos e confortáveis.

Tenho a impressão que as pessoas sonham umas coisas super elaboradas, inteligentes, cheias de símbolos e interpretações, enquanto eu só tenho dois tipos de sonho: os completamente cotidianos ou os roteirizados pelo meu eu criança de dez anos que sempre gostou de coisas de detetive, espionagem, máfia, bicho, ação e correria, mas sempre sentiu falta de personagens mulheres fazendo todas essas coisas. Especialmente mulheres pequenas sem salto alto.

Meu inconsciente adoraria uma versão de Velozes e Furiosos só de mulheres comuns que sabem lutar. Bastaria adicionar alguma investigação, projeto ou entrega urgente e muito importante no meio na trama e pronto. Na verdade, talvez o meu inconsciente ia gostar ainda mais se adicionassem algum animal falante no meio disso tudo.

Sei que fantasia não costuma combinar muito com filmes de ação com carros, mas, essa noite, meu eu-onírico esteve envolvido em uma missão para matar dois homens ricos e violentos em um evento de ópera. O plano deu um pouco errado e quando eu acordei, talvez ainda inebriada pelo sono, eu achei a trama interessante. Capivara, Cachorro e Crocodilo, meus companheiros, não conseguiram fazer a parte deles porque dormiram no caminho provavelmente enfeitiçados. Talvez, se saísse essa história em filme, eu encontraria a explicação para esse cochilo involuntário e para a estátua de leão que ruge para alertar que estamos em casa ou chegando, ainda que estejamos a dois quarteirões do nosso QG.

Dentro de mim, há um desejo por porradaria e um gosto por lutinha, aventura, animais falantes e correria que só pode ter vindo dos anos e anos que passei vendo Dragon Ball Z, Samurai X, Sailor Moon, Sakura Card Captors e outros desenhos. Talvez eu devesse usar esses sonhos como uma fonte de histórias para escrever roteiros, contos e poemas. Talvez eu devesse entrar numa aula de defesa pessoal assim que rolasse uma oportunidade. Nem que fosse via EAD. Talvez eu devesse entender que eu só queria mesmo me sentir forte e o quanto isso se relaciona mais com um desejo de poder e segurança do que com meu corpo pequeno e frango ou minha imaginação.

Só sei que é possível que essa noite eu sonhe que comi espinafre, como Popeye, fazendo encontrar meu desejo pela força com o cotidiano que me enfeitiça apesar de tudo. Sei lá, o sabor é bom e talvez ajude com a imunidade, né?


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Construindo no The Sims

Imagem de Pinterest

Sabe quando você decide projetar uma bela casa no The Sims com auxílio do código Motherlode, aquele que te ajuda a ter dinheiro infinito, e descobre que sua habilidade só te permite fazer algo que se aproxima mais de um bloco estranho, meio feio e sem graça?

Você quer fazer uma mansão, pode ser clássica, pode ser gótica, pode ser pós-moderna, pode ser uma simulação tosca de algum projeto do Niemeyer — que é o único arquiteto que você conhece — pode ser qualquer coisa, porque não importa.

Se você não é um verdadeiro arquiteto de The Sims, você fará a mesma casa todas as vezes. A casa enorme, cheia de cômodos mais ou menos do mesmo tamanho, que, por mais esforço que você faça, sempre parece uma caixa feia, não uma caixa moderna, ainda que você tenha conseguido dar formato um pouco diferenciado para ela.

E quando você tenta fazer um segundo andar então? Surge um caroço, bem quadrado, nessa caixeta estranha que é o térreo. Isso depois de você passar horas tentando fazer uma escada que seu Sim, burro, seja capaz de usar. A sua casa vai ter piscina, pode também ter um lago, um ofurô, um jardim, tudo isso junto e mais um pouco, mas isso não vai mudar nada. O dinheiro infinito e ficcional não te faz adquirir uma habilidade. Sua casa nunca ficará como as outras casas do jogo. Sua casa será apenas uma caixa em que você vai colocar tudo do bom e do melhor. Seu Sim, completamente sem senso estético exatamente como eu e você, não vai se importar. A não ser que você se esqueça de colocar janelas. Eles gostam de ambientes claros e arejados. Pelo menos eles gostavam quando eu tinha um computador que me permitia jogar.

A casa, ao menos por fora, terá uma cor diferenciada. Talvez um mostarda. Algo próximo do amarelo. Você vai investir dinheiro nas portas mais caras, aquelas que às vezes dão um toque clássico ao seu bloco feio ou você vai tentar abraçar a modernidade e comprar tudo que seja simples, quase minimalista, pelo menos para quem olha de fora. E você vai passar raiva, porque seu Sim vai odiar seu banheiro, todo lindamente mobiliado com banheira de hidromassagem, pia, privada, chuveiro, tudo nível dez, porque só tem uma janelinha redonda e sem graça no cômodo. Ele vai querer mais luz e você, para agradar, vai colocar um tanto dessas janelinhas horrorosas do lado da outra no espaço que couber. E você sabe, né? Vai ficar terrível, como se você tivesse adicionado buraquinhos seguidos numa caixa de papelão colorida para seu gato brincar.

Você vai adicionar tudo que o dinheiro permitir e isso vai deixar o espaço amontoado de coisas que ficam pouco identificáveis de longe. Bem feio, sem qualquer sentido, sem qualquer distribuição pensada, mas não importa, porque o seu Sim terá tudo que o faz feliz na mão. Inclusive estantes enormes, bonitas, de madeira escura, brilhante, que lembram filmes que se passam em universidades antigas, do lado de uma geladeira de uma última geração prateada, como a modernidade deseja que seja. Como ela fez a gente imaginar que ia ser.

A verdade é que o único jeito de brincar de fazer algo bonito sem qualquer talento para construção virtual é a imaginação. Só nela nossos projetos ficam tão bem compostos, desenhados, completos e fotografáveis como a gente deseja.

Pense numa casa. Ela é ampla, tem espaço para tomar sol, tem um jardim, um lugar para fazer esportes, ela parece um hotel fazenda caríssimo. Ela tem detalhes em madeira, um toque country para combinar com o espaço verde, ela é bege ou gelo, ou alguma cor parecida com essas duas, mas que recebeu um nome muito diferente da empresa de marca de tintas. Ela tem uma porta ampla, também de madeira, madeira da mesma cor das vigas e enfeites. Tem janelas que abrem para fora, aquelas que possuem asas ou abas e se recolhem na hora de dormir, porque você tem que fechar tudo para que ninguém invada sua casa. Não há um tanto de janelas de banheiro seguidas. E mesmo as poucas que tem possuem esse toque de madeira presente em toda a casa. Você também pode mudar tudo e colocar a parede com textura, talvez até de tijolinhos. Ficaria rústico, né? E o telhado? Você colocaria uma certa assimetria nele, adicionaria chaminés e talvez um sótão. É sempre bom ter um sótão. Dá um ar mais antigo e cheio de mistério a um projeto novo e tem muita gente que liga isso à identidade. Essa casa dá para um terreno verde, com algumas pedras, árvores, tudo natural, tudo da vegetação do lugar que tem aquele toque mata atlântica. Você decide que tem que colocar piso formando caminhos entre a piscina, a churrasqueira, o chalé das visitas e a natureza que você vai querer ver mais de perto. Vai que vez ou outra aparece um tucano ou até uma arara ou um mico-leão-dourado. Você decide usar um piso que parece pedras para ligar a casa aos espaços externos. Para ficar bem natural, repito, porque é isso que você quer. Você começa a pensar em bangalôs, eles são lindos, com seus detalhes feitos de palha, tecido branco, mesinhas baixas de madeira e almofadas coloridas para sentar. Meio desconfortável isso, né? Mas muito bonito. Só que ninguém realmente gosta de sentar em lugares sem encosto. E então você começa a pensar que é um saco tudo muito natureba assim, porque não combina com a piscina. A piscina vai ter que ser aquelas naturais? Sem cloro? Com uns peixes no meio? Você vai pensar em trocar a piscina por um lago. Seu Sim vai ter que gostar de pescar, hein? Você começa a pensar que deveria fazer um negócio cheio de vidro, cor gelo, meio que sem telhado muito visível, aqueles projetos que parecem uma caixa, mas uma caixa estilosa, uma caixa que quer ser caixa e usa isso ao seu favor. Aquelas que tem dois andares, tem sacadinha, lugar para você olhar a natureza sem se aproximar muito. Desse jeito dá para colocar os móveis ultra modernos e prateados sem neurar que não combina, né? Você vai nessa, imagina, imagina, imagina e recomeça. Você faz isso eternamente até cansar e no fim nem joga The Sims. O que no meu caso é bom, porque meu computador não aguenta.


Esse texto foi feito a partir do dia 7 do #EscritaNaQuarentena, desafio de escrita criativa proposto pela Stefani Del Rio para a gente tentar se distrair um pouco durante esta pandemia. A proposta de hoje pedia para inventar um lugar e descrevê-lo. Saiba mais sobre o desafio aqui.

Esforço imaginativo

Xiaolong Wong

No meio de uma conversa sobre desesperança, ansiedade e medo, minha amiga Mônica me disse que era necessário manter um esforço imaginativo de que tudo vai ficar bem. Ela disse que ouviu isso de um filósofo, mas eu já não me lembro o nome dele, se é que ela falou o nome dele. Agora isso não importa. O que fica é o que que ela quis dizer com isso: é preciso se iludir a respeito do futuro, imaginá-lo diferente, para que a gente consiga ver sentido em alguma coisa nessa realidade que nos proíbe, para nossa própria segurança e também a dos outros, de encontrar amigos e familiares e tornou abraços e beijos estalados na bochecha condutas quase proibidas. A permissividade de estar junto só existe para os que estão isolados com companhia. Somente os casados, os quase casados e as famílias ou repúblicas encerradas na própria casa possuem esse direito agora.

Acho que minha amiga quis dizer que a gente pode e deve sonhar que em fevereiro do ano que vem a gente vai viver o carnaval dos carnavais. O carnaval impossível em que eu não vou reclamar da multidão nenhuma vez sequer, mas ainda assim estarei cercada de gente, toque, calor, política, humor e fantasia. O carnaval que vai zombar do tempo. O carnaval que vai cantar e cantar e cantar até que todos cantarolem juntos de onde estiverem. O carnaval contra a desigualdade. O carnaval do desejo, da liberdade e do consentimento. O carnaval utópico. O carnaval que desafia as leis da física com todo mundo vivendo três dias estando em pelo menos dois lugares ao mesmo tempo. O carnaval do encontro. O carnaval-festa revolucionária que inicia uma nova realidade. O carnaval comunitário. O carnaval da conversa. O carnaval que cria novos e ainda melhores significados para o termo coletividade. O carnaval que eu realmente nunca ia querer ficar de fora. O carnaval-comunidade. O carnaval onde também tem lugar para sentar. E respirar aliviado.

Acho que a Mônica, eu e quase todo mundo quer acreditar que haverá um futuro de festa, de prazer, de alegria pura e simples. A gente não consegue imaginar a vida sem encontros, dos pequenos e cotidianos aos aglomerados e muito festivos. Ainda que eu seja uma pessoa de poucos abraços e interesse mínimo em aglomerações, eu quero poder estar perto. Eu quero o lúdico, a proximidade e um mucado de alegria compartilhada. Eu quero poder estar na rua e na casa das pessoas que eu amo. Circular, estar e permanecer até que eu queira seguir novamente para a casa. E eu não quero ser a única a poder fazer isso em segurança.

Deve ter, em algum lugar da realidade, uma fissura no tecido do tempo que nos permite sair do agora e ir para esse momento-espaço. Uma falha na matrix que ao ser descoberta nos torna capazes de parar de pensar em futuros tenebrosos e começar a construir alguma outra coisa. Essa coisa que para mim teria a energia do maior e melhor carnaval do mundo, esse descrito nas linhas acima, só que sem a quarta-feira de cinzas chegar para acabar com a festa. Essa coisa da utopia que a gente desaprendeu a imaginar depois de viver tantas e tantas crises. Essa coisa que une a imaginação e a ciência. Essa coisa que nos evoca o conforto do ronronar de um gato, do abanar de um rabo de cachorro, do sorriso de um bebê e da gargalhada da minha vó de 93 anos após ganhar mais uma partida de mexe-mexe. Essa coisa que mistura a energia do almoço especial com a família e a reunião de amigos repleta de pizzas. Essa coisa que se aproxima da sensação da endorfina tomando conta do nosso corpo. Essa coisa que nos deixa sem palavras e agora ainda é uma tela com alguns poucos rabiscos incertos feitos à lápis com muita vontade, mas zero inspiração. Talvez nos falte referências. Que a gente as encontre em algum lugar então.

Esse esforço imaginativo precisa ser hercúleo. Ele demanda uma dose responsável de afastamento da realidade difícil de fazer mesmo que como mero exercício criativo. Nos pede um certo desligamento momentâneo de nomes, rostos, corpos que agora lutam pela vida ou choram por uma que já se foi. Um turn off da ansiedade, do medo de morrer e da polícia sanitária interna que faz com que a gente sonhe que está usando luvas ao encostar em alguém. Uma permissão de pensar em outra coisa por alguns instantes, ainda que a necessidade de imaginar tenha a ver com o sonho de encontrar alguma solução. Esse esforço não é necessariamente egoísta e nem nega a realidade. Egoísta seria ver esse momento apenas como uma fuga individual dos próprios males ou algo assim. Egoísta é negar a gravidade da crise sanitária, econômica e política. Egoísta é sair de casa para participar de uma festinha na casa de uma amiga. Já esse esforço imaginativo é outra coisa. Ele é necessário. Não por autocuidado, mas porque esse é um exercício que ajuda a manter viva a esperança de alguma coisa, qualquer coisa, uma outra coisa, mesmo que desconhecida. Só na esperança compartilhada, ainda que tola, quase infantil, totalmente irrealista e cheia de glitter, que surge as ideias fantásticas que podem mudar o mundo. Nem que seja por um dia.

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