Esforço imaginativo

Xiaolong Wong

No meio de uma conversa sobre desesperança, ansiedade e medo, minha amiga Mônica me disse que era necessário manter um esforço imaginativo de que tudo vai ficar bem. Ela disse que ouviu isso de um filósofo, mas eu já não me lembro o nome dele, se é que ela falou o nome dele. Agora isso não importa. O que fica é o que que ela quis dizer com isso: é preciso se iludir a respeito do futuro, imaginá-lo diferente, para que a gente consiga ver sentido em alguma coisa nessa realidade que nos proíbe, para nossa própria segurança e também a dos outros, de encontrar amigos e familiares e tornou abraços e beijos estalados na bochecha condutas quase proibidas. A permissividade de estar junto só existe para os que estão isolados com companhia. Somente os casados, os quase casados e as famílias ou repúblicas encerradas na própria casa possuem esse direito agora.

Acho que minha amiga quis dizer que a gente pode e deve sonhar que em fevereiro do ano que vem a gente vai viver o carnaval dos carnavais. O carnaval impossível em que eu não vou reclamar da multidão nenhuma vez sequer, mas ainda assim estarei cercada de gente, toque, calor, política, humor e fantasia. O carnaval que vai zombar do tempo. O carnaval que vai cantar e cantar e cantar até que todos cantarolem juntos de onde estiverem. O carnaval contra a desigualdade. O carnaval do desejo, da liberdade e do consentimento. O carnaval utópico. O carnaval que desafia as leis da física com todo mundo vivendo três dias estando em pelo menos dois lugares ao mesmo tempo. O carnaval do encontro. O carnaval-festa revolucionária que inicia uma nova realidade. O carnaval comunitário. O carnaval da conversa. O carnaval que cria novos e ainda melhores significados para o termo coletividade. O carnaval que eu realmente nunca ia querer ficar de fora. O carnaval-comunidade. O carnaval onde também tem lugar para sentar. E respirar aliviado.

Acho que a Mônica, eu e quase todo mundo quer acreditar que haverá um futuro de festa, de prazer, de alegria pura e simples. A gente não consegue imaginar a vida sem encontros, dos pequenos e cotidianos aos aglomerados e muito festivos. Ainda que eu seja uma pessoa de poucos abraços e interesse mínimo em aglomerações, eu quero poder estar perto. Eu quero o lúdico, a proximidade e um mucado de alegria compartilhada. Eu quero poder estar na rua e na casa das pessoas que eu amo. Circular, estar e permanecer até que eu queira seguir novamente para a casa. E eu não quero ser a única a poder fazer isso em segurança.

Deve ter, em algum lugar da realidade, uma fissura no tecido do tempo que nos permite sair do agora e ir para esse momento-espaço. Uma falha na matrix que ao ser descoberta nos torna capazes de parar de pensar em futuros tenebrosos e começar a construir alguma outra coisa. Essa coisa que para mim teria a energia do maior e melhor carnaval do mundo, esse descrito nas linhas acima, só que sem a quarta-feira de cinzas chegar para acabar com a festa. Essa coisa da utopia que a gente desaprendeu a imaginar depois de viver tantas e tantas crises. Essa coisa que une a imaginação e a ciência. Essa coisa que nos evoca o conforto do ronronar de um gato, do abanar de um rabo de cachorro, do sorriso de um bebê e da gargalhada da minha vó de 93 anos após ganhar mais uma partida de mexe-mexe. Essa coisa que mistura a energia do almoço especial com a família e a reunião de amigos repleta de pizzas. Essa coisa que se aproxima da sensação da endorfina tomando conta do nosso corpo. Essa coisa que nos deixa sem palavras e agora ainda é uma tela com alguns poucos rabiscos incertos feitos à lápis com muita vontade, mas zero inspiração. Talvez nos falte referências. Que a gente as encontre em algum lugar então.

Esse esforço imaginativo precisa ser hercúleo. Ele demanda uma dose responsável de afastamento da realidade difícil de fazer mesmo que como mero exercício criativo. Nos pede um certo desligamento momentâneo de nomes, rostos, corpos que agora lutam pela vida ou choram por uma que já se foi. Um turn off da ansiedade, do medo de morrer e da polícia sanitária interna que faz com que a gente sonhe que está usando luvas ao encostar em alguém. Uma permissão de pensar em outra coisa por alguns instantes, ainda que a necessidade de imaginar tenha a ver com o sonho de encontrar alguma solução. Esse esforço não é necessariamente egoísta e nem nega a realidade. Egoísta seria ver esse momento apenas como uma fuga individual dos próprios males ou algo assim. Egoísta é negar a gravidade da crise sanitária, econômica e política. Egoísta é sair de casa para participar de uma festinha na casa de uma amiga. Já esse esforço imaginativo é outra coisa. Ele é necessário. Não por autocuidado, mas porque esse é um exercício que ajuda a manter viva a esperança de alguma coisa, qualquer coisa, uma outra coisa, mesmo que desconhecida. Só na esperança compartilhada, ainda que tola, quase infantil, totalmente irrealista e cheia de glitter, que surge as ideias fantásticas que podem mudar o mundo. Nem que seja por um dia.

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Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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