Noite passada sonhei com toda espécie de doppelgänger. Vivi a versão comédia, a dramalhão e a de terror, essa inspirada no “Nós” do Jordan Peele, numa mesma bagunça onírica. E também a versão Divertidamente, que merece uma frase a parte, porque eu preciso explicar para o leitor que cada cópia costumava agir somente como cada copiado sentia ou nojo ou felicidade ou raiva ou tristeza, como se fôssemos unidimensionais assim.
Nesse mix de referências e gêneros, algo que se destacou foi a facilidade de ignorar as versões doppelgänger tristes. Elas ficavam só na delas e até cuidavam dos nossos bichos e coisas quando éramos enxotados de casa pelo nosso doppelgänger raivoso. Nunca causavam grandes problemas. A gente nem precisava enfrentá-las direito, parecia que as cópias tristes tinham ido tomar tudo da gente sem nem querer muito fazer isso. Era só oferecer um cobertozinho e um chocolate quente que ela desistia de nos fazer qualquer mal direto.
Encontrei a minha cópia triste pela primeira vez dias dias depois de expulsar a Nojinho descascando uma banana. (Sim, eu enfrentei um dos meus maiores medos pra conseguir expulsá-la da minha casa e funcionou!). A Thaís Triste estava deitada no corredor que liga a cozinha e o quarto. Meu primeiro instinto foi acolhê-la, conversar com ela, quase cheguei a abraçá-la, mas eu sabia que não dava para fazer mais do que isso. Ela não podia ficar sem eu perder tudo. Ainda assim, dei um tempo pra ela, como eu queria dar pra mim todas as vezes que me sentia daquela forma. Podia expulsá-la depois, deixar a minha cópia triste por último, né? Até porque eu sabia que uma hora a minha raiva ia aparecer, se é que ela já não estava por aí à espreita, e tudo se complicaria. Foi assim que fingi que minha empatia pelo que ameaçava tudo que eu tinha, inclusive a vida, era somente estratégia.
A gente só conseguia ter certeza de que não era a pessoa que procurávamos, mas sim a cópia, quando as cópias riam. A risada causava uma distorção da imagem delas durante menos de um segundo e isso era mais que o suficiente. Descobri isso bem no início da invasão, quando pouquíssimos relatos eram feitos nas redes sociais e imediatamente desacreditados no Twitter. Fui visitar meus pais e encontrei só ele, sem minha mãe e minha avó. Elas tinha saído, disse. Acatei. Até porque no sonho não tinha pandemia pra me fazer duvidar. Dividimos a casa por umas horas, conversamos, tudo parecia normal, mas mudou quando eu estava assistindo a versão do meu pai brincar com a gata da família. Quando ele riu, eu soube. Não era ele. Bem que tinha notado que ele estava meio que feliz demais. Depois do meu escândalo, apareceu todas as outras cópias Divertidamente dele e eu, aflita, peguei Eva e Billy e fui em busca dos meus pais e avó com medo do que aquelas criaturas poderiam ter feito.
Como eu estava dizendo antes, a partir desse episódio — que terminou bem, mas eu não lembro direito como — percebi que a melhor forma de identificar uma cópia então era simplesmente ser engraçado e, talvez, gentil. Sabe aquele sorrisinho que a gente dá quando se sente cuidado e querido? Saber gerá-lo era importantíssimo, principalmente porque chegar contando piadas sem qualquer contexto causa estranheza, seja entre humanos, humanos e cópias ou entre as próprias cópias. Sim, as cópias também possuem regras sociais e de etiqueta ou de tanto fingir ter desenvolveram uma muito parecida com a nossa. Enfim, por essas e outras, duvido muito que os stand-up comedians tiveram sucesso nessa empreitada contra o mal personificado por nós mesmos, mas não posso afirmar o fracasso do grupo com certeza, porque o sonho não forneceu qualquer informação sobre isso e nem sei se eu deveria comentar esse tipo de coisa num diário de sonhos público. É meio descontextualizado, né? Acho que vou cortar essa parte na próxima edição desse material.
Nunca soube de onde as cópias vieram e, confesso, não ter conseguido descobrir o que elas queriam. Até mesmo sobre o caráter delas ainda tenho minhas dúvidas. Nenhuma cópia minha parecia propriamente má ou boa. O universo onírico não explica muito, se apresenta cheio de furos e vez ou outra ignora todas dicotomias que a gente aprendeu desde cedo.
Só sei que mesmo depois de acordar eu não sei dizer ainda o que foi mais difícil: bater em um doppelgänger que imitava alguém que eu amava com perfeição ou lutar contra meu próprio doppelgänger. Alteridade e identidade se misturaram tantas vezes que suspeito que isso só pode ter sido parte da magia das criaturas que nos copiavam, mas talvez essa confusão seja simplesmente o que nos define como humanos, uma espécie de força-fraqueza que é impossível existir sem ter. Vai saber, né?
“Como será dezembro de 2021?”, me pergunto ao receber a agenda que comprei para me acompanhar no próximo ano.
Mexo em suas páginas, tiro e coloco de volta a capinha protetora que veio, observo a óbvia falta de preenchimento e toda indefinição que ela significa e rio pensando no altíssimo grau de autoilusão necessário para se planejar qualquer coisa.
Paro o olhar nas ilustrações da Luli Penna, permaneço ali, encontro um livro, um bicho, um objeto do cotidiano e sigo folheando para ver o que mais vou descobrir na agenda, como se buscasse também saber o que o futuro me reserva.
Me deparo com mais alguns poemas da Ledusha, leio todos, sinto o cheiro de novo, penso no futuro mais uma vez e me lembro, com um aperto no peito, que sou ansiosa e brasileira e não posso ficar muito tempo pensando nessas coisas.
Talvez seja a hora de parar de pensar nesse amanhã abstrato e preencher meu nome, escrever compromissos, anotar os prazos dos boletos e respirar fundo lembrando que 2020 ainda não acabou.
O planner citado no texto é da Todavia. Você pode comprá-lo diretamente no site da editora ou na Amazon.
Gabriel García Márquez é considerado o pai do realismo fantástico, apesar de ter dito uma vez que sua obra representava só realismo. “A realidade que é mágica. Não invento nada. Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação” disse o autor em algum contexto que não fui capaz de descobrir qual, apesar — e talvez justamente por — essa frase se repetir incansavelmente em matérias e mais matérias sobre ele, especialmente aquelas que anunciaram a sua morte em 2014.
Me volto para essa afirmação de Gabo vez ou outra nos contextos mais diferentes. Lendo “Água Funda”, único romance de Ruth Guimarães, para o meu clube de leituras, me peguei pensando nela. Nessa obra, um narrador nos conta causos e mais causos sobre uma localidade. Com um texto muito oral, próximo da linguagem caipira, Ruth apresenta para o leitor um lugar, um tempo e suas pessoas, mostrando trajetórias e o quanto o olhar dos personagens é permeado pela natureza, as relações, o mundo e seus mistérios. A cada causo, muito pela linguagem, mas não só, me vinha na mente as histórias que minha avó materna me conta sobre a mãe, suas próprias jornadas por Minas Gerais e o que, segundo ela, o povo antigo pensava sobre uma variedade de coisas. Enquanto lia, percebia palavras que fazem parte do vocabulário da minha avó, especialmente quando ela conta histórias do passado, que em muita coisa é próxima ao que escreve Ruth. A opressão, o trabalho, a natureza, as festas, o truco, tudo isso e mais o que não tem muita explicação. Sendo atravessada pela obra, também lembrei do meu avô paterno e as histórias de terror que ouvi dele. Histórias essas muito próximas das contadas no livro, todas narradas em primeira pessoa, partindo dele ou recontando o que ele ouviu que aconteceu com um amigo ou um amigo de um amigo dele. O mistério da vida todo ali, limitado apenas pelo alcance das palavras, mas exposto com toda aquela atmosfera nomeada como mágica, apesar de Gabriel e muita gente não considerar bem assim.
Gabriel García Marquéz diz ter escrito a partir das histórias e memórias que cresceu ouvindo em Aracataca, cidade colombiana onde nasceu. Ruth Guimarães foi uma pesquisadora da cultura popular com o olhar e os ouvidos atentos para recolher, registrar e estudar essas histórias que circundam as pessoas, passando pelo famoso causo, essa prosa cotidiana marcada pela troca, pela memória e pela fofoca. Ambos, ao escreverem, contaram com essa magia tão presente nesses relatos durante o processo de efabulação de suas histórias.
No discurso do Nobel em 1982, o autor colombiano disse ao falar da solidão da América Latina: “No entanto, diante da opressão, do saque e do abandono nossa resposta é a vida. Nem os dilúvios nem as pestes, nem a fome nem os cataclismos, nem sequer as guerras eternas através dos séculos e dos séculos conseguiram reduzir a vantagem tenaz da vida sobre a morte”. Relendo a frase hoje, fazendo a pesquisa para esse texto, entendi que parte dessa magia mora na capacidade de criar e se recriar, apesar de tudo. Essa figura latino-americana que Gabriel ajudou a construir, junto a outros escritores de outros países da região, é a de um sobrevivente que se alimenta, principalmente, da vontade de continuar. E, numa região como a nossa, isso significa quase que ter fé que algum outro futuro é possível. E por aqui essa fé costuma ser uma miscelânea de símbolos, origens e personagens. Enquanto humanos, criamos, contamos, formulamos tudo que move a vida partindo desse desejo-angústia e a nossa maneira de fazer isso vai muito além da racionalidade típica, cartesiana. Especialmente aqui. É preciso ter esperança, paixão, vontade, amor para continuar e nossas vidas e nossas criações são demarcadas por isso de alguma forma. E talvez essa coisa sem nome seja a explicação de parte do apreço pelo futebol que a gente vê no Brasil, na Colômbia, na Argentina, no Chile, no México e em outros países próximos.
Quando eu penso no futebol nesse contexto, me vem em mente a notícia do torcedor do Racing que comemorou o título de seu time do coração carregando o crânio de seu avô e, ao ser entrevistado, disse que aquela ossada que carregava era seu amuleto de sorte e que seu querido parente estava orgulhoso daquela vitória. Evoco também a Libertadores, com todas as suas incoerências e emoções, e a alta frequência de cães que invadem campos de futebol bem durante esse campeonato. E, inevitavelmente, lembro do “Eu acredito” do Atlético Mineiro, esse time que me conquistou e me é tão próximo, apesar de eu não ser exatamente uma torcedora típica dele ou de qualquer outro.
O futebol, para muitos, é uma fuga da realidade, mas uma fuga marcada pela capacidade de se ter esperança na virada. A escolha do time do coração não é racional, ela vem de um outro lugar. A paixão não é, necessariamente, pela equipe que une mais talentos, probabilidades de vitórias e títulos conquistados, ela parte do afeto, do inexplicável, daquela coisa que bate ou não. Um jogador muito carismático pode mudar tudo, pode fazer o filho de uma família de cruzeirenses escolher o galo como seu amor futebolístico, porque dali surgiu uma identificação esquisita misturada com o desejo de ser, de poder.
Como tudo que vem da paixão, o futebol é marcado por uma boa dose de coisas inexplicáveis, mistérios e histórias quase mágicas. Transformamos jogos reais em momentos praticamente mitológicos e seres humanos falhos, complexos, que às vezes carregam em si defeitos e mais defeitos de toda uma cultura de reforço de uma certa masculinidade, em verdadeiros ídolos. Digo masculinidade porque é justamente por causa dela e seu machismo consequente que o futebol feminino, apesar de incrível e mexer com nosso âmago desse mesmo jeitinho, ainda é ignorado pela maioria que torce, vibra e se apaixonada por equipes, jogadores e sonhos.
Pensar na origem do amor por uma equipe, me fez recordar da informação que diz que, cientificamente, a gente gosta tanto do azarão, de torcer pelo mais fraco, porque somos motivados por uma tal de economia emocional. Torcemos assim buscando maximizar o prazer a partir do improvável, porque a perda ali, por ser esperada pela probabilidade, nos faz pensar que a vitória é um lucro maior. Entendo o argumento, faz bastante sentido até, mas a seleção brasileira, por seu penta histórico, não carrega essa pecha de fraca e duvidosa, mas ainda assim segue tendo muita torcida. Por que? Porque o Brasil vencendo, mesmo para outros países, significa também dignidade, direito de sonhar, uma vitória contra aqueles que ganham em tudo, todos esses sentimentos que ajudam a fazer do futebol esse esporte que mexe com tantos, especialmente os latino-americanos. Nossas escolhas e emoções esportivas são marcadas por aspectos sociais, políticos e, claro, emocionais. Buscamos vinganças coloniais torcendo numa Copa do Mundo organizada por uma entidade bem controversa e nos sentimos exaustos vendo os Estados Unidos no primeiro lugar do quadro de medalhas das Olimpíadas a cada 4 anos.
Escrevi tudo isso para chegar no que me deu a primeira fagulha desse texto: a morte de Diego Armando Maradona. Toda aquela comoção, dor, ilusão de proximidade e relatos emocionados me fizeram pensar nessa paixão que o esporte é capaz de fazer surgir e como as pessoas encontram em Maradonas uma esperança que representa a pulsão de vida perante a morte, a miséria, o horror, junto também ao desejo em sair por cima, porque somos humanos, afinal.
Os dois gols do Maradona contra a seleção da Inglaterra em 1986 representam isso muito bem: o gol roubado — a famigerada mão de deus — a Argentina saindo por cima da Inglaterra em algo, apesar de tudo, e o gol mais belo de todas as Copas, o gol que vem do imo, do desejo, da vontade de ser foda, do talento e da beleza que não podem ser roubados, apesar de seguirem tentando a todo custo.
Quando parei para pensar no futebol e fui parar no realismo, mágico ou não, eu cheguei a conclusão que a gente chama de magia e mistério o que envolve todas essas coisas que vem de dentro. Não sabemos como surge o amor, a paixão, o medo, o ranço, a raiva, o rancor, mas a gente conhece muito bem tudo isso. Criamos e consumimos histórias, inclusive as narrativas e vivências esportistas e os causos do cotidiano, para lidarmos com essa infinidade de coisas que não sabemos explicar muito bem, mas é um dos principais componentes humanos.
No dia 17 de maio de 2017, eu estava em Buenos Aires e, sem muito planejamento, fui parar no estádio Nuevo Gasómetro para assistir San Lorenzo versus Flamengo. O time argentino tinha perdido os dois primeiros jogos da fase de grupos da Libertadores, mas conseguiu se classificar para a fase seguinte com uma vitória de virada com gol no último minuto. Desse dia, eu me lembro do frio, por causa do estádio todo aberto e a localização bem abaixo do trópico de capricórnio, e da festa. Fui contagiada pela emoção que tomou conta da atmosfera do lugar. Eu sorria, porque sorriam, cantavam, festejavam ao meu lado, e, no meio daquele caos de sensações, ouvi uivos humanos que terminavam cantando a frase “como sufri”, porque amor, esperança e a improbabilidade tinham vencido, apesar de tudo.
Nesse dia, apesar de contagiada, eu compreendi que jamais entenderia por completo o jogo que aqueles torcedores que vibravam ao meu lado vivenciaram. Ali percebi a grandiosidade de toda essa gama de sentimentos que envolve o torcer e o ser, mas que para mim ainda parecem mais com um feitiço poderoso ou uma ficção que une cotidiano e fantástico. Agora sei que essa magia me atinge de outras formas, diferentes e semelhantes ao que o futebol é capaz de despertar. Para mim vem, inclusive, por meio da literatura, da linguagem, das pessoas e da natureza. De todo jeito, estamos todos falando de amor, paixão, esperança e desconhecido e nos conectando a partir disso. Gabo que o diga!
A Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para esse mês de escrita e leitura foi tarô e, durante esse período, eu postei textos escritos a partir desse estímulo. Para essa última semana, elas escolheram o naipe de copas, que é diretamente relacionado ao amor, às emoções e à água e sua imprecisão.
No dia 21 de novembro de 2020, lancei meu site de autora junto ao meu apoia.se. Apesar de simples, ambos foram fruto de um esforço cuidadoso em assumir que a escrita, a leitura e a arte no geral me interessam como ferramentas de trabalho e que toda a minha produção tem valor. Enquanto pensava em cada detalhe do site e apanhava do WordPress vez ou outra ao tentar fazer as ideias se materializarem, eu colocava a minha vontade de me assumir como esse alguém criador para enfrentar a certeza de que eu nunca serei boa o suficiente para isso.
Ao lançar meu site no mundo às 11 horas da manhã nesse sábado, mesmo sabendo que ele estava incompleto e falho, eu revelei ao mundo mais uma faceta do que faço, penso e espero de mim. Eu sempre achei que precisava estar pronta, prontíssima mesmo, para me apresentar como escritora ou qualquer outra coisa do tipo. A espera por esse momento nunca me fez bem. Com tanta expectativa envolvida, eu sequer tinha coragem de começar. Foi preciso muito esforço para compreender que tudo que envolve trabalho é diretamente relacionado com uma infinidade de processos que começam em mim, mas também refletem o mundo onde vivo. Os meus, inclusive, envolveram admitir o que realmente quero fazer da vida, ainda que o mundo desvalorize esse meu fazer e me cobre um estilo de vida a partir de um ideal capitalista e homogenizador.
Eu não sou boa em fazer dinheiro e, sinceramente, também acho que não sou boa em me apresentar profissionalmente para qualquer coisa, especialmente quando o que me interessa é justamente o que dificilmente é visto como trabalho. Apesar de ser uma fazedora, uma pessoa que bota a mão na massa e pensa, cria e realiza projetos, eu sigo tendo muita dificuldade de me ver assim. Esse site, esse apoia.se, o retorno da minha newsletter, a finalização do meu manuscrito de poesia ainda sem editora e o desenvolvimento do meu original de contos, tudo isso para mim ainda é um exercício de convencimento. Tenho tentado, tenho tentado muito, porque viver no mundo das ideias já não me é mais suficiente.
Estou aqui, fazendo, ainda que com medo, enquanto penso que cresci vendo o Coragem, o cão covarde, ou o próprio Scooby Doo agirem, mesmo assustados, seguindo uma lógica de sem querer querendo, que é o que eu fazia até então. Quando decido executar tudo isso, me planejo minimamente e me apresento, escolho a possibilidade de tentar construir um mundo que me caiba e isso é uma recusa da culpa por não ser quem esperavam que eu fosse. Chega de sem querer querendo. É hora de construir a minha casa e, ainda que alguns estejam meio capengas, eu já providenciei os principais móveis.
A Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para o primeiro mês foi tarô e, durante esse período, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo. Para essa terceira semana, elas escolheram o naipe de ouros, que é diretamente relacionado à materialidade, trabalho e produtividade.
O sete de ouros é uma das cartas mais importantes do Truco, mas ela não é uma garantia de vitória. Você precisa saber quando usá-la, aliá-la a outras cartas e jogadas. Só assim você conquistará o seu tento e talvez a vitória. Por isso, a evoco nesse título para falar sobre dúvidas, colheita e coragem de tentar.
Você pode ler os meus outros textos participantes da blogagem aqui.
Eu não sei se entendi bem o que evoca o naipe de espadas. A minha estratégia para lidar com isso então vai ser escrever sobre esse incômodo com o não saber, a trava que surge em mim toda vez que eu sei que eu não sei e tenho poucas ferramentas ou interesse ou tempo para resolver isso. A trava ganha força também a partir do meu desejo de ser muito boa em tudo que eu faço e ameaça nunca mais abrir quando a ansiedade em aprender logo, matar a curiosidade e entender mais aparece.
Ainda assim, a atração pelo desconhecido é o que mexe comigo. É uma delícia sentir o frio na barriga que o flerte com o não saber causa, ser seduzida pela curiosidade, viver a busca por algo novo mesmo sabendo que qualquer conhecimento será sempre incompleto. Vivo sempre um paradoxo: sou seduzida pela promessa do mistério, do inacabado, de uma investigação sempre pendente, mas me perco na urgência do entendimento e na possibilidade de ir sempre além.
Quando pego um texto em inglês para ler, por exemplo, ainda que eu conheça o idioma o suficiente para continuar com a leitura, eu simplesmente não consigo prosseguir por muito tempo. A cada frase, percebo que não compreendo o suficiente mesmo quando conheço todas as palavras. Não importa se o entendimento vem do contexto ou do verbete de fato, sempre sinto que algo muito grande me escapa. Na comunicação, qualquer que seja, algo sempre escapole, mas, quando envolve um outro idioma que não é o seu, a sensação é de perseguir palavras-fantasmas, sombras de uma cultura-país-falante, e, por isso, eu fujo, ainda que queira muito ficar. No fim das contas, eu só aceito perder o sentido em português.
Ninguém sabe tudo. A gente está cansado de saber disso, mas o que a gente não sabe, mas quer muito um dia saber, também diz alguma coisa. Todas essas lacunas, junto com a nossa bagagem e capacidade de conectar o que está sendo aprendido com o que veio antes e vai vir depois, também. A gente não é só o que a gente já absorveu, conheceu, estudou, acha que entendeu, a gente é também tudo aquilo que a gente procura e também o que a gente teve coragem de imaginar ou mesmo abandonar, independente se ficou ou não o desejo de voltar nessa fantasia específica e não concretizada de completude.
Somos um emaranhado de pequenos saberes que nos ensinam a fazer mais e mais perguntas. E a gente adora se perder em todas as possibilidades que elas apresentam. Sei que busco muitas certezas ainda, que me perco nesse desejo, antecipo, travo e declaro guerras e mais guerras contra eu mesma, mas escrevendo tenho percebido que o que mexe com a gente, dá o clique, nos movimenta é sempre a imaginação. E a imaginação, querendo ou não, sempre está envolvida com as forças ocultas do não saber.
A Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para esse mês de escrita e leitura foi tarô e, durante esse período, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo. Para essa segunda semana, elas escolheram o naipe de espadas, que é diretamente relacionado à racionalidade, lógica e pensamentos, mas também envolve os conflitos internos que podem surgir a partir desse plano mental.
Você pode ler o meu texto da primeira semana aqui.
Minha vó carrega seus baralhos para todo lugar que vai. Sim, baralhos. No plural mesmo. Me cansei de vê-la tirando-os da bolsa para colocá-los em cima da mesa, lado a lado com a bolsinha de tentos, para sinalizar que chegou a hora de jogar. Festa de aniversário, Sexta-feira Santa, Quarta-feira de Cinzas, batizado, Natal, Páscoa, nenhuma data é sagrada demais para que não se possa jogar, provavelmente porque, implicitamente, sabemos que há algo de sacro no ritual desses jogos que passam de geração a geração. Assim aprendi a construir relações em torno dessa mesa, que ora é abundante em comida, ora se enche de cartas, sempre com muita conversa, e sei que isso é bem anterior a mim.
Minha bisavó também jogava. Talvez a mãe dela também. Não sei. As informações se perdem com o passar do tempo. Sei que ela jogava poker, apostava entre homens, ia na casa deles jogar, mesmo em um tempo em que a possibilidade de se fazer isso era limitada para mulheres. Sei também que minha avó, ainda bem novinha, aprendeu todo tipo de jogo com ela e que minha bisa era professora e ensinava crianças a ler na mesma mesa que servia vez ou outra como um palanque para ela. Você pode ler essas últimas frases e não entender o porquê delas estarem aqui, nesse texto sobre jogos de baralho, mas pra mim faz sentido. Jogos de baralho, no geral, são considerados uma diversão masculina, especialmente o truco, preferido da minha vó, e o poker, melhor jogo segundo minha bisa que nunca conheci. Minha família, ainda que reforce muitos estereótipos de gênero, sempre permitiu e incentivou que mulheres tivessem seus momentos de diversão e socialização e tem como tradição repassar essa sabedoria e toda a energia que ela evoca.
Minha vó começou a me ensinar o truco quando eu tinha seis anos. Antes disso eu já dominava burro, fedô, rouba monte e todos esses jogos que fazem muito sucesso com crianças. Só que o truco é diferente, é um aprendizado contínuo, cheio de lições. Não basta saber reconhecer um zap, um 7 de copas, uma espadilha e um 7 de ouros quando ele aparecer em sua mão, é preciso saber farejar cada uma dessas cartas, tanto no adversário, quanto no parceiro. Até hoje, quando sou dupla da minha avó, aprendo alguma tática nova, mas desde 1995 sei que é preciso fazer a primeira, chegar com o pé na porta, mostrar para o que veio.
Não fazer a primeira é um risco. Um risco de continuidade que não vale a pena correr. Essa lição minha avó aprendeu com sua mãe e ela segue reverberando em mim. A partir dela, escrevo hoje esse texto para a #EstaçãoBlogagem. Paus inicia tudo e eu não posso deixar de fazer a primeira, mesmo que meu site ainda não esteja pronto. Escrevo agora, posto no prazo da primeira rodada onde der e me dou uma chance de continuar fortalecendo meu impulso criador. É do início que se começa qualquer viagem, minha vó nascida sob o signo de Áries diz para mim, neta que tem o carneiro como ascendente, mas não acredita nessas coisas, apesar de não conseguir ignorar toda essa simbologia. Como ignorar a possibilidade mágica dos meus rituais familiares quando o zap é um quatro de paus, que no tarô e no truco costumam simbolizar a celebração de uma conquista?
A Estação Blogagem foi criada pela Aline Valek e pela Gabi Barbosa para movimentar a blogosfera e engajar leitores e escritores em torno dos blogs, escrita e leitura. O tema proposto para esse mês de escrita e leitura foi tarô e, durante esse período, eu postarei textos escritos a partir desse estímulo. Para iniciar os trabalhos, elas escolheram como tema o naipe de paus, que é diretamente relacionado à energia do fogo, logo impulsionador, dinâmico e que fala com a nossa criatividade.
Um pão capivara passou na minha timeline do Twitter esses dias. Ele era tão bem feito que até orelhinhas tinha. Fofinho e coradinho, como uma capivara deve ser. Ele era feito de trigo, como os pães são. Ele me lembrou a minha infância.
Quase todo sábado, eu ia para casa dos meus padrinhos. Eu amava aquela casa. Ela era ampla, tinha uma romãzeira, plantas de todo tipo, flores, livros, revistas e muitos gatos. Não tenho certeza se minha tia já era instrutora de ioga, mas sei que ela me ensinava alguns movimentos nas horas vagas. Eu amava quando ela elogiava a minha flexibilidade e todas as posições com nome de bicho. Já meu tio, professor de biologia, sempre estava pronto para me dar uma informação nova sobre algum animal da natureza. Inclusive, toda vez que o tempo permitia, ele me levava para caminhar na beira do rio Itapecerica. “Em tupi-guarani, Ita significa pedra e pecerica lisa ou escorregadia”, ele sempre me dizia ou eu dizia a ele, porque tinha ouvido algo assim na escola. Já não sei mais. De longe, caminhando ao lado dele, eu via capivaras, pássaros, borboletas e um rio sofrendo com assoreamento, enquanto recebia algumas informações sobre reino, filo, classe, comportamento e reprodução de cada ser vivo avistado. E, fora tudo isso, eles gostavam de me ouvir falar. E, caramba, como eu falava!
Nessa casa, além da ioga, da biologia, dos gatos e dos livros, eu tinha acesso a um pão doce em formato de jacaré. Ele era enorme, tinha rabo, patas e até aquele levantadinho perto da testa onde os olhinhos ficam. Sendo esses olhinhos, no caso, vermelhos, feitos com aquela cereja-chuchu típica dos anos 90. Lembro que o coco ralado representava as escamas do bicho. Ele era lindo, delicioso, fora os olhos, e fazia totalmente a minha cabeça.
Meus pais nunca compraram pão jacaré pra mim. Ele representava um achado dos meus padrinhos, algo que somente eles podiam ter encontrado e comprado para me agradar. Esse pão era vendido numa padaria próxima da casa deles e era especial: somente podia ser comprado aos sábados. Talvez era até algo encomendado. Não sei. Só sei que vez ou outra, ao chegar na casa deles, já era levada até a padaria e aproveitava o momento para observar tudo. Eu não podia deixar escapar nenhum detalhe daquele bairro com Velho no nome, daquele morro todo, daquelas pessoas, daquela rua movimentada, daquela padaria que fazia pães de jacaré.
Queria absorver tudo ao meu redor, aproveitando aquela ilusão infantil de que andar ali representava alguma liberdade especial, bem aquela que é dada a todos que se colocam como aventureiros, desbravadores e conhecedores do mundo. De cima, já quase na padaria, eu olhava para a rua que continuava, pra mim infinitamente, e pensava na ponte, no rio, no fato de que minha casa estava bem do outro lado, além do horizonte. Em algum lugar naquela vastidão toda que era Divinópolis para a menina Thaís, devia haver jacarés que não eram feitos de pão. Tinha que haver.
Acabei de ler uma matéria no Nexo que diz que homens são mais resistentes a usar máscaras no dia a dia e cumprir o isolamento social necessário para combater a pandemia, porque tendem a acreditar que não serão contaminados pelo coronavírus e, caso forem, se recuperarão mais facilmente. O irônico dessa história é que a taxa de letalidade entre eles é maior do que entre mulheres. Um engano desses jamais aconteceria comigo e eu juro que dessa vez isso não tem nada a ver com uma certa hipocondria minha. Só tem a ver com cisma.
Desde que a pandemia começou, eu tenho pensado cada vez mais no temor de ter gastado com outras coisas menores toda a minha sorte, essa coisa mágica e inexplicável que até o mais cético às vezes sente que rolou ou faltou. Agora, justamente por esse gasto anterior totalmente impensado e impulsivo, eu estou mais desprotegida do que nunca. Tenho medo da minha reserva de sorte ter zerado, de não ter nada na despensa para me proteger do azar. Esse pensamento não é bem uma novidade, mas agora ganhou contornos mais mórbidos. Eu sinto que o esvaziamento da minha sorte parece ter acontecido bem antes, já que em todo concurso que eu tento eu não vejo qualquer atuação dela. Antes, a falta dela atuava pelo meu fracasso, agora eu temo que ela não apareça para proteger a minha vida ou a vida dos meus.
Eu, você, todo mundo, precisa de sorte quando vai ao supermercado ou na farmácia ou mesmo deixar o lixo na rua ou trabalhar. A gente precisa estar no corredor certo e bem longe, quando alguém espirrar ou tossir ou conversar ou mexer errado na máscara e depois tocar nas maçanetas do prédio e produtos todos. A gente precisa de sorte para continuar, porque, além de tudo, a gente também tem que lidar com esse governo que foca sempre na cloroquina, na Anitta e no autoritarismo.
Eu já ganhei dois sorteios no Instagram, uma viagem para o Hopi Hari, um mp3 e várias partidas de jogos de tabuleiro, baralho e outros formatos de games que envolvem um pouco ou um mucado bom de sorte em sua lógica. Fora a fase que eu gostava de jogar bingo online pelo Jogatina. Cada vitória ali pode ser revertida por uma onda de azar que vai me colocar frente a frente com um contaminado assintomático e bolsominion que se recusa a usar máscara de tecido na rua e se afastar de quem passa bem quando eu precisar sair para fazer qualquer coisa.
A última vez que eu achei que uma encomenda minha tinha sido extraviada ou furtada por algum vizinho, ela estava o tempo todo na caixa do correio. Fora que eu já perdi dois celulares, uma vez em um táxi muito antes de apps existirem e os taxistas serem rastreáveis facilmente e outra vez em um restaurante numa cidade que eu não vivia, e nas duas vezes, milagrosamente, os aparelhos voltaram para as minhas mãos são e salvos. E eu nem comento as vezes em que a sorte sequer foi percebida por mim ou que eu já esqueci. Eu pareço dever muito, muito, muito mesmo para sorte e não sei se quando criança eu a servi com trevos de quatro folhas o suficiente, porque eu lembro de procurar, procurar e procurar e encontrar quase sempre só os de três.
Esse papo todo me lembra que esses dias o tapetinho da porta do apartamento sumiu por mais quase três semanas e depois retornou, o que nesses tempos eu não sei se é sorte ou azar, porque ele pode ter retornado todo contaminado, apesar de que tudo indica que quem pediu emprestado o lavou junto com o meu chinelo ipanema que nem sequer chegou a sumir por uns dias. Por desencargo de consciência, eu evitei pisar nele durante 14 dias, mesmo saindo apenas para levar o lixo lá fora.
Só sei que eu tenho medo de faltar sorte bem agora, bem na hora que eu imagino que será a que mais preciso. Eu tenho medo de toda vez que marquei alguém em um sorteio nas redes sociais, eu tenha atuado para me colocar no centro do furacão sem qualquer proteção mística, ainda que eu nem sequer acredite nisso. Eu tenho medo, porque a minha regra é sempre pensar na pior possibilidade e, caramba, como todas as chances que se apresentam agora parecem ser ruins.
Por isso, eu não saio de casa, uso máscara de tecido e descorongo tudo que chega nesse lar e acho que todo mundo deveria fazer o mesmo também, porque o sortudo pode perder a sorte e o azarado pode ter muito azar ainda para gastar. Tudo é questão de sorte, ou azar, e para essas coisas não há regras.
O aleatório pode te pegar pela sacolinha do delivery de pizza que você entrega ou pega. O vírus bactéria filha da puta micróbio do caralho pode resolver fazer sua morada provisória ali e, como num jogo de dados, se o resultado for 1 ou 2, ele pode te contaminar na hora mesmo você tendo muito cuidado, se der 3 ou 4, ele pode te pegar porque você deu um beijinho no gatinho ou cachorrinho ou mesmo uma criança que se escondeu lá dentro brincando sem você ver, mas se der 5 ou 6 dessa vez você está livre, porque nessa sacolinha, bem nessa, não tinha nada de vírus. Sorte. Ou azar. Mesmo se você não der a bobeira de não descorongar o que devia desconrogar, a verdade é que a gente não tem controle de nada. A gente só tenta diminuir as possibilidade de tirar os piores dados e torce para dar certo.
Aqui na rua tem um ipê amarelo conhecido por ser atrasado em sua floração. Ele, além de tudo, é miúdo em relação a todos os outros. Eu não entendo nada de botânica, mas como uma pessoa adulta menor do que todas as outras, eu não consigo olhar para ele sem pensar que é uma sacanagem tremenda supor que ele é como é simplesmente porque ainda não se desenvolveu por completo ou tem algum problema.
A gente fala, fala e fala em respeitar as diferenças, vive argumentando que cada um de nós funciona de um jeito, mas quando a gente se depara com um ipê pequenininho e atrasado em relação aos seus colegas tão vistosos e já floridos, a gente ainda tende a supor que ele, que não se encaixa na trajetória linear ou mais correta segundo sei lá quem, só não se encontrou ainda. Ou teve uma infância difícil demais e cheia de traumas. Ou qualquer outra coisa que no fim das contas será usada para diminui-lo de maneira condescendente.
As pessoas sempre querem um porquê. Quase como se fosse um atestado que você leva para o trabalho para justificar que não deu para você chegar na hora como todos os outros. As pessoas não podem ver o diferente e simplesmente pensar “ok”. Elas sempre vão querer uma justificativa para aquilo, de preferência uma justificativa que evoque um papagaio dizendo “ô coitado!”. Sem isso, o que sobra é a zombaria direta e irrestrita.
Uma vez me perguntaram se eu passei fome na infância e por isso acabei tão pequena. Foi estranho. Ser toda inha, inclusive branquinha, sempre me fez ser colocada como bibelô, o que é inevitavelmente uma coisa meio patricinha. Dessa vez foi diferente. Muito pior. E olha que eu tenho um trauma não superado de ser vista como bonequinha. A pessoa ao me olhar pensou que somente a desnutrição justificaria a minha existência em paz, que eu precisava de ter um background de sofrimento para me tornar factível como personagem. O paternalismo de sempre se mostrou uma piedade feia, essa que alguns cristãos adoram sentir pelos outros quando dizem que vão ajudar alguém. A mesma piedade feia que eu vejo quando as pessoas olham para o ipê amarelo da esquina da minha casa e diz mesmo sem ser em voz alta algo como: “coitado, ele não é como todos os outros”.
Estamos em julho agora e a floração dos ipês já começou. Ao menos entre os adiantados. Eles, os ipês amarelos melhores da classe, já estão entre nós. Eles, os ipês capa da Vogue, já enfeitam as ruas. Eles, os ipês geniais, já estão sendo fotografados por quem passa com máscara na cara — ou no queixo — perto deles. Já os ipês de floração em agosto e setembro seguem seus processos ainda carregados de estigmas somados a pressão de, quando florescerem, florescerem bem. Todos os ipês vão ficar floridos por mais ou menos quinze dias, independente de quando começarem, mas não importa, porque até entre os ipês se impôs uma corrida de produtividade, modelo, status e essas coisas todas.
Todo mundo quer florescer primeiro. Todo mundo quer florescer melhor. E alguém ainda vai dizer que pensar assim é o mindset do sucesso. E quem, por qualquer motivo que seja, demora mais ou, quando floresce, não floresce tão bonito, se torna um fracassado que precisa apresentar justificativas até para si mesmo por não ser como o primo bonito, concursado e com a vida e família pronta. Sendo a melhor justificativa sempre algo que evoque dó, porque ela dá a ilusão de empatia para quem ainda quer olhar para os outros sempre de cima.
Eu ia chamar os ipês adiantados de Einstein, porque ele é o nome que todo mundo aprendeu como sinônimo de gênio, mas eu lembrei que existe um mito sobre ele na verdade ter sido um péssimo aluno, só que é um mito somente e não ia dar para tirar nenhuma lição bonita da história dele, porque não importa se o atrasado vai brilhar muito um dia, a gente tem que parar de querer cobrar que os outros sigam essa régua única que parece ter sido inventada para que a maioria sempre perca. Fora que aquele meme do “e aquela criança era ninguém mais, ninguém menos, do que Albert Einstein” estragou tudo.
Era para esse texto ser engraçadinho, mas acho que não funcionou.
Não se engane com essa foto do Fernando Meloni, essa bicicleta com certeza não é tão pura e inofensiva como você foi levado a crer.
Eu sou covarde. Eu não ando de bicicleta. Nem nas melhores e mais caras. Eu passo, porque não dá, sabe? Muitos traumas. Todas minhas histórias de bicicleta envolvem acidentes. Alguns não chegaram a acontecer de fato, mas eu vi a possibilidade se aproximar e já foi ruim demais. Eu aprendi o risco na prática, tanto é que meus dois dentes da frente são trabalho de dentista por causa dessa merda.
Não consigo esquecer do meu pai chorando desesperado quando me viu toda ralada, também chorando e desesperada, com os dois dentes da frente quebrados e vários pedacinhos deles na mão junto com um tanto de sangue, enquanto arrastava minha bicicleta toda empenada.
Pior é que mesmo depois disso, passados alguns anos, eu tentei andar de bicicleta de novo. Não sei direito o porquê. Devo ter achado que eu era invencível, já que tinha uns treze anos e adolescente tem dessas coisas. Quase atropelei uma criança de dois anos nesse dia, porque ela achou de bom tom aparecer do nada no meio de uma pista para bicicletas.
Assim como deve ter acontecido com essa criança marcada por esse quase acidente em que fui pivô, eu também inaugurei a minha sina com esse veículo a partir de uma experiência que aconteceu mais ou menos nessa idade. Sentada no chão do passeio estufado da porta de casa, fui semi-atropelada por um menino que se desequilibrou da bicicleta por causa desse solo de irregularidades e caiu em cima de mim.
Agora não chego mais perto desse instrumento do diabo. Não chego. Você não vai conseguir me convencer a subir numa bike, ninguém vai. Pode parar de argumentar, você está perdendo seu tempo. Mas, ó, não vou mentir, vez ou outra chega na memória a sensação do vento batendo no rosto, enquanto eu ganho velocidade. É lindo demais e dá uma saudade, você nem imagina. Isso dura até eu lembrar dos meus dentes quebrados. Passa na hora.