
Costurar é uma ação que remete ao ato de juntar com agulha e linha dois pedaços de alguma coisa, seja pano, pele ou mesmo ideias. A costura é feita ponto por ponto, que surge a partir de algum esforço para unir o que foi desunido pelo corte, pela ruptura, pelo abismo.
Colocar as costuras para fora funciona como uma exposição desse processo de possível separação ou diferença, (re)união pelo esforço da agulha, da linha e do pulso ou máquina e o nascimento da cicatriz do traço pontilhado que une as partes costuradas.
No livro de contos “Costuras para fora” da Ana Squilanti, as grandes e pequenas questões da vida dos personagens são expostas junto com o cotidiano mais miúdo e as bagagens que cada um deles carrega. Essa forma de se contar histórias, enquanto nos apresenta elementos que lembram uma crônica ou um bate-papo, torna possível que a gente, enquanto leitor e pessoa humana, se identifique, crie empatia e entenda as dúvidas, as dores e os traumas de cada narrativa. Poderia ser a nossa história, mas é a de um personagem de ficção que às vezes se parece mais com a gente ou com alguém que a gente conhece do que com os seus respectivos perfis das redes sociais.
Somos todos quase uma colcha de retalhos de tão recortados, costurados e cheio de pontes que podem ser rompidas com a ajuda de somente uma tesourinha e um pouco de vontade ou rasgadas de repente até por acidente. E depois costuradas de novo. Ou não. Ana Squilanti sabe disso e explora a força literária das vulnerabilidades, inseguranças, segredos e sentimentos que costumam ser escondidos, mas são tão presentes e reais que sem visualizá-los não parece haver vida em qualquer caso ou personagem. Inclusive crianças e idosos.
O corpo, o padrão e o conto
“Costuras para fora” reúne vinte contos que parecem ter sido escritos para fazer a gente perceber o quanto a certeza não faz parte da vida. Um dos principais destaques da obra talvez seja o “Bonita de rosto”, que explora os efeitos da batalha contra o próprio corpo e as pressões para se encaixar nos padrões de magreza e beleza. A honestidade e a crueza da narradora dessa história para descrever suas práticas sofridas em busca desse corpo perfeito e inatingível expõe a guerra que mulheres, especialmente as gordas, são incentivadas a travar por causa do que se cobra como feminino, inclusive pelos doutores. Mais uma vez, a exposição dos bastidores de algo que é extremamente comum nos permite perceber o que costumamos negar estar ali. Não há sacrifício suficiente quando se busca algo impossível, mas a culpa por não conseguir caber no que se espera é ilimitada.
O cuidado invisível como foco
Já “Trava de fogão” e “Ponto Falso” são algumas das narrativas que chamam a atenção por trazer o foco para o cuidado, sempre visto como invisível, mesmo sendo essencial. No primeiro conto, quem cuida é uma mulher de um homem idoso que nunca aprendeu a viver sozinho, porque esse trabalho invisível da casa e de si sempre fica para as mulheres ao redor e ganha o nome de amor. Já no segundo, um pai cuida do filho que machucou o supercílio levando o menino para o hospital e acaba recebendo um apoio inesperado ali, ainda que eles estivessem em um espaço visto como sinônimo de cuidado.
O cotidiano como forma de aproximação
O uso de cenas banais do cotidiano é um recurso utilizado em todo o livro. É justamente nesses detalhes, inseridos de forma tão cuidadosa pela autora, que mora a proximidade do leitor com os personagens. Só que essas banalidades tem uma função muito além de formar um cenário e uma cena per si, elas são também o cerne do livro e o que liga todas as narrativas. Nos contos “Sem costura”, Nós” e “Lista de compras”, o que guia o leitor é justamente o que se tira do mais cotidiano possível. O medo do fim pode estar no apodrecimento de uma fruta e na constatação da nossa insignificância, por exemplo. A vida acontece nesses momentos que parecem desimportantes e quase invisíveis para olhares mais desatentos. A matéria-prima de nossas existências não é o extraordinário, é o miúdo.
Essa proximidade ganha contornos ainda mais interessantes quando se pensa nesse livro como uma ferramenta dialógica sobre questões humanas que perpassam a vida desses personagens. Com diversas histórias que abordam casais não heterossexuais, isso acaba ganhando também um significado político, já que essas narrativas também combatem a desumanização ao apresentar conflitos da vida que vão muito além da sexualidade isolada em si mesma, ainda que fale sobre relações e descobertas.
Da criança ao idoso, do prazer à doença, do namoro aos laços familiares entre irmãos e avós e netos. Ana Squilanti, em sua obra de estreia, percorre narrativas que partem de diferentes fases da vida e variados relacionamentos. O que torna “Costuras para fora” um excelente livro é o quanto tudo parece e é comum e próximo. A autora, com uma linguagem que muitas vezes é bem poética, oferece para o leitor a possibilidade de olhar de novo e de forma mais atenta e humana para o cotidiano, que se mostra a linha e a agulha que nos ajuda a unir os pedaços que são desatados de nós todos todos os dias.
Se você gostou desse texto, deixe um comentário, compartilhe com seus amigos e me acompanhe pelo Medium, Facebook, Twitter, Sweek, Wattpad, Tinyletter e Instagram. Se interessou pelo livro? Adquira seu exemplar aqui.
Uma versão reduzida dessa resenha foi publicada no site Delirium Nerd.