Misteriosas forças ocultas atuam na Flip e agora também em mim

Em novembro de 2022, eu viajei 17 horas de ônibus para ir para Flip, a maior festa literária do país. Para voltar, vivenciei junto de Tatiana Lazzarotto as forças ocultas de Paraty e acabei ficando mais um dia para curtir a cidade e, durante esse dia que precisava ser o derradeiro, eu e ela quase ficamos sem passagem para enfim cada uma voltar para a casa. A volta, ao contrário do que eu mesma esperava, durou 13 horas de ônibus, a quantidade de horas mais otimista para o modal escolhido.

Nesse último dia, descobri que existe uma lenda que diz que se você pular umas correntinhas do Centro Histórico, você fica preso na cidade. E, é claro, nessa altura do campeonato eu já tinha pulado muitas correntinhas, porque eu é que não ia dar a volta se podia simplesmente pular. Ainda mais numa rua de pedras. Sendo cética como sou, mesmo já sabendo da lenda, eu teria arriscado e feito tudinho igual. Mas eu voltei para casa. E a viagem foi tranquila, com zero intercorrências, diferente da ida.

Ainda durante a festa, eu já prometia regressar no ano seguinte. Dizia, para quem quisesse ouvir, que a Flip era mágica. E sigo dizendo isso até hoje, como vocês podem perceber por esse texto. E o retorno aconteceu. Voltei a repetir a saga da ida em novembro de 2023, dessa vez de carro, economizando assim algumas horas de viagem e paciência. 

Nesse segundo ano, eu, como boa mineira, decidi que também ia aproveitar as praias e assim o fiz. Sem deixar de circular pela Casa Gueto, ir para o Areal, curtir as festas e as mesas da Flipei, ser host do Sarau das Escreviventes e afins, eu também fui para a água e levei meu companheiro junto. Ainda assim, eu sentia, às vezes, que a magia me escapava. Eu estava lá, mas nunca mais seria como a primeira vez.

E, então, a luz apagou por horas. E ali, ansiosa, frustrada e estranhando tudo, a realidade me pegou pela mão e me mostrou o impacto de tanta gente de tanto lugar em uma cidade pequena, histórica e com problemas óbvios de saneamento.

A magia foi estremecida. E ela retornou, com toda força, nos últimos dias, porque nesse ano eu não vou para Paraty e eu estou arrasada por isso. Descobri hoje que alguma dessas malditas correntinhas que pulei, fez o que prometeu, mas houve um pequeno erro de regência quando me contaram sua maldição. Ao pular, você não fica preso na cidade em si, você fica preso à cidade. 

Paraty, durante os dias da festa literária, vira um lugar de encontro. Você conhece pessoas, você estreita laços, você vê a cidade inteira se transformar em um espaço-tempo em que a literatura ora é fuga, ora é assombro, mas é sempre centro. E, por algum motivo, essa estranha reunião precisa continuar se repetindo ao longo dos anos. E isso acaba, claro, criando um fluxo impossível de pessoas. Mas a impossibilidade de tanta gente estar ali, numa data específica marcada com menos de um ano de antecedência, não muda o fato de que há pessoas que você só vê lá. Há trocas que só são possíveis ali. Só nesse espaço-tempo você acaba passando horas numa fila para ouvir uma mesa com Conceição Evaristo, consegue enfim entrar na casa, apesar da lotação, por pura generosidade da porteira e, assim, acaba passando quase uma hora agachada debaixo de uma mesa para se proteger da chuva com as poetas e amigas Marina Grandolpho e Luiza Leite Ferreira, enquanto Conceição fala de Macabéa. Só ali você vê Annie Ernaux passeando pelas ruas de pedra aos 82 anos logo após ganhar o Nobel de Literatura. Só lá você janta do lado de Dionne Brand e finge que nada está acontecendo. Só ali você consegue tolerar a chuva, ainda que siga reclamando sobre ela. Só lá você consegue entender uma pessoa falando francês devagar mesmo sem nunca ter estudado o idioma na vida. Só lá você se sente tão viciada em viver e aprender e ler e escrever e escutar assim, como se nem precisasse dormir.

Hoje concluí que Paraty sempre vai tentar nos atrair, em especial nos dias da festa literária, quando a força da ficção fica mais poderosa e, assim, a atração da cidade se multiplica além de si mesma. O problema é que essa força, ainda que potente, precisa de ainda mais gente ansiando estar lá e, por essa falta, ainda não consegue me teletransportar agora para a Travessa Gravatá ou para a Rua Fresca ou para a Rua do Fogo. 

Essa crônica foi inspirada pelo texto de Jeovanna Vieira sobre o FoMo de não estar na Flip depois de uma vez ter ido e conhecido a magia da festa.