
No ensaio “A guerra mais longa”*, escrito pela historiadora feminista Rebecca Solnit, a autora fala sobre como a sociedade trata estupros coletivos, feminicídios e outros crimes contra as mulheres como algo isolado, excepcional. Ela expõe o quanto eles são frequentes, seguem um padrão e como o não reconhecimento disso prejudica o combate contra eles.
Solnit nos lembra que a violência é, antes de qualquer coisa, autoritária. As agressões contra as mulheres, sejam elas sexuais, físicas ou até mesmo psicológicas e estruturais, podem ser encaradas como tentativas de controle. A autonomia feminina é vista como algo a ser reprimido.
As leis, ainda hoje feitas por eles, decidem pelas mulheres sobre seus próprios corpos. Para eles, nós não somos capazes de decidir por nós mesmas, então eles decidem por nós. Não importa o que queremos, pensamos ou sentimos. Eles são ensinados a ignorarem nossos nãos e a acharem que o que eles querem está acima do que a gente quer. Eles decidem quem de nós merece apanhar e que tipo de comportamento nos coloca como merecedoras de violência. Eles decidem até mesmo quais de nós podem continuar vivendo.
A imposição, a punição e o ódio estão presentes na violência contra as mulheres e isso faz muitas pessoas acreditarem que se determinada mulher se comportar como deve, ela viverá uma vida sem violência. Mas isso não nos protege. Focar no que a vítima deixou ou não de fazer é culpá-las pela violência sofrida e isso é só mais uma forma de perpetuar o controle que eles querem nos impor. Fora que a desobediência que os irrita pode estar em qualquer coisa e a misoginia pode ser maior que qualquer comportamento exemplar.
A misoginia é devastadora. A violência e o autoritarismo masculino assombram mulheres há séculos e tudo isso é encarado como “fato isolado”, já que o medo que nos acompanha, a culpabilização da vítima e o machismo que faz com sejamos vistas como loucas, exageradas e interesseiras nos silencia.
Se você é mulher, você consegue pensar em inúmeras coisas que você deixou de fazer por medo de sofrer uma violência. Se fosse algo isolado, isso aconteceria? O medo de ser estuprada é algo que nos acompanha antes mesmo da gente saber o conceito de estupro. O que é excepcional em nossa cultura é achar uma mulher que jamais sofreu qualquer espécie de violência, silenciamento ou discriminação.
Natalie Portman discursou na segunda Marcha das Mulheres, movimento contra Trump que recebeu um gás a mais em sua 2ª edição por causa da crescente onda de denúncias de assédio que tomou Hollywood e até o Vale do Silício. Em seu discurso, ela contou que aos treze anos recebeu uma carta de um homem que fantasiou uma cena de estupro com ela e expôs o quanto a pŕopria mídia a sexualizou: “Uma rádio local começou uma contagem regressiva para o meu 18º aniversário — eufemisticamente, a data em que seria permitido por lei dormir comigo. Os críticos de cinema falavam dos meus peitos crescendo nas críticas.”
A atriz terminou sua fala com uma frase que diz muito sobre a eterna vigilância que mulheres vivem:
‘Com 13 anos, a mensagem da nossa cultura era clara para mim’, continuou. ‘Eu senti a necessidade de cobrir meu corpo e inibir minha expressão para mandar ao mundo uma mensagem de que eu sou alguém que merece segurança e respeito. A resposta à minha expressão, de pequenos comentários sobre o meu corpo a declarações ameaçadoras, serviu para controlar o meu comportamento por meio de um ambiente de terrorismo sexual.’
Quando vi Natalie falar no You Tube e notei o uso da expressão “terrorismo sexual”, me lembrei do discurso “24 horas sem estupro” de Andrea Dworkin feito em 1983. Dworkin diz que não há igualdade enquanto houver estupro, porque estupro significa terror e parte da população vive aterrorizada por essa violência. Não é caso isolado, é sistêmico. Quantos anos, movimentos e marchas veremos até que a sociedade encare a violência dos homens contra as mulheres como algo que nos tira a dignidade e autonomia e nos coloca como menos humanas que eles? Quanto tempo será preciso para perceberem que há um padrão no gênero dos agressores nesses casos?
A violência que nos atormenta existe para nos manter subalternas, caladas e com medo, mas isso está mudando. A gente vive um levante de vozes. O movimento #MeToo, como foi o #PrimeiroAssédio no Brasil, expõe o quanto a violência é sistêmica e nos aterroriza. O mundo tomou conhecimento do estado de terror que vivemos. Mas as que falam continuam sendo acusadas de exageradas, loucas e de quererem chamar atenção. Para eles, o foco continua na vítima. Questionam a demora para denunciar Weinstein, duvidam da palavra das mulheres por achar que elas querem aparecer e zombam dizendo “mas todo mundo sabe que a indústria cinematográfica é feita de testes de sofá”.
Larry Nassar, ex-médico da Michigan State University e da equipe de ginástica olímpica da Federação de Ginástica dos EUA, carrega 140 acusações de violência sexual, mas alguns seguem sem querer admitir que a gente precisa falar disso. Os atos de Larry Nassar, Weinstein, James Toback são vistos como monstruosos e só. Não há nenhum reconhecimento fora da bolha feminista sobre isso ser apenas uma parcela de um todo muito maior, um todo composto por mulheres acuadas pela violência cometida por homens. Nosso medo e nossas denúncias ainda são vistas como exagero, porque uma sociedade educada para ver a violência contra a mulher como algo isolado e sem padrões considera o todo consequência de um problema de segurança generalizado.
Obs: Texto publicado originalmente em minha página do Facebook.
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