
É possível ver histórias em tudo: nos nascimentos, nas mortes, nas relações que vivemos, no cotidiano, na memória e até nos pensamentos, situações embaraçosas e objetos que nos circundam.
Somos contadores de história, querendo ou não, mesmo quando os relatos que saem de nós tratam sobre nossas próprias vidas e jamais se tornem um texto escrito. Narramos e justamente por isso gostamos tanto de ouvir e ler outras narrações. Narramos como um forma de nos colocar no mundo. Narramos porque precisamos. Conceição Evaristo sabe muito bem disso e por isso cunhou o termo escrevivência para definir a escrita que nasce do cotidiano, das lembranças, das experiências de vida e da cultura de seu povo, o negro. A narração, que é parte inegável da vida humana, ganha contornos políticos quando é feita para visibilizar histórias próximas que seguem ignoradas e se torna uma ferramenta poderosa de voz, preservação de memória, denúncia e humanização.
“Olhos d´água” reúne quinze histórias curtas de dor, sangue, vida, família, amor e morte. Nesse livro, a autora narra a fome, a miséria, a violência, o genocídio do povo negro e dá voz às mulheres negras e suas vivências. Sem esquecer de também mostrar os laços afetivos dos personagens, seus conflitos internos, reflexões e ancestralidade. Os contos escancaram o mundo de exclusão que muitos vivem e outros tantos se negam a ver e humaniza quem a sociedade a todo custo quer desumanizar com personagens humanos que sentem “dor-amor”, “coragem-desespero” e outros tantos sentimentos, entre eles, a esperança.
Conceição Evaristo narra acontecimentos brutais que poderiam ser realidade, mas não de um jeito jornalístico ou sensacionalista. A escrita da autora, muito poética, não explora os corpos vivos, mortos ou marcados para morrer de uma forma impessoal. Ela dá subjetividade, história e relações ao que é tratado comumente como estatística e faz com que aquilo soe como algo próximo ao leitor. Ao não explorar esses casos como meras manchetes, a escritora intensifica o incômodo e faz com que ele dure além do tempo de leitura do conto. Ela evidencia o que é brutal e as consequência da naturalização disso sem tornar seus personagens objetos. O conto “Maria”, “Ana Davenga” e o “Ei, Ardoca” são bons exemplos disso, porque nos apresentam histórias que facilmente estariam no jornal sendo contadas de uma outra forma.
Quando a autora usa palavras como mar-amor, flor-criança e viver-morrer, as contradições entre brutalidade e afeto ficam evidentes. Essa hifenização une muitas vezes antônimos, o que ajuda a compor a oposição entre o estilo de escrita da autora com o que é narrado, nos faz pensar no contraste entre essas histórias com as da elite branca e, principalmente, expõe como a vida é repleta de contradições.
Essa leveza do estilo de escrita, muito marcada pela oralidade, se contrapõe até mesmo com a linguagem dos personagens. Em “A gente combinamos de não morrer”, Bica conta que escreve desde sempre e relata um episódio que aconteceu com ela na escola quando tinha sete ou oito anos. Durante um exercício de separação de sílabas, ela pediu para ir ao quadro negro mostrar as palavras que tinha formado: pó, zoeira, maconha, craque, tiro, comando leste, oeste, norte, sul, vermelho e verde. O que a personagem escreve é uma amostra do mundo que a circunda e que Conceição expõe. Entre as tantas frases bonitas, bem feitas, cheias de sonoridade, há também a denúncia de qual é a linguagem que cerca as crianças negras que protagonizam essas histórias.
A sexualidade se faz presente na vida da maioria dos personagens criados pela escritora e nem todos são heterossexuais. Em “Luamanda”, a mulher que dá nome ao conto deseja e vive seu desejo sem se limitar, inclusive, a se relacionar somente com homens. Ela, ainda que já esteja um pouco mais velha, segue gostando de sexo e buscando viver histórias de amor. Já em “Beijo na face”, uma mulher vive uma história de amor secreta com outra mulher, enquanto está presa a um casamento infeliz e abusivo. Ainda que muitas personagens sofram violência misógina e não tenham acesso ao que chamamos de direitos sexuais e reprodutivos, elas ainda assim tentam se colocar como donas de suas próprias histórias.
O conto que dá nome ao livro e o inicia é movido pelas recordações de uma personagem que busca se lembrar da cor dos olhos da mãe que está distante. É delicado, poético e afetuoso, apesar das memórias narradas denunciarem as dificuldades passadas por essa família. Essa é uma das muitas histórias desse livro que trata sobre maternidade e ancestralidade. Iniciar com ela não é um mero acaso e a gente percebe bem isso quando chega ao fim da obra e se depara com o conto Ayoluwa.
É simbólico que o último conto seja sobre fazer brotar a força da esperança e que isso aconteça numa comunidade que ampara uma mulher em sua maternidade. Embora no caminho até essa história, a gente encontre a esperança surgindo, como acontece no “Beijo na face” e no “Quantos filhos Natalina teve?”, a violência, a exploração do trabalho, o abandono e a morte, principalmente dos homens, é o que se destaca.
Conceição Evaristo escreve sobre sobrevivência e sobre cotidiano, mas não sobre o cotidiano que é contato nas novelas e sim aquele que estampa de forma sensacionalista os jornais feitos de sangue. A autora, por meio da construção de personagens tão eles, tão gente, coloca essas histórias antes tão marginalizadas no centro do debate sem se amparar no senso comum racista e machista que vigora quando essas narrativas partem da visão dos brancos da elite. Com esse livro, a autora mineira transforma uma realidade marginalizada em literatura e denuncia as consequências da exclusão e da discriminação sem deixar morrer a esperança de que um dia isso seja diferente.
Se eu tivesse que definir esse livro numa frase, eu diria que ele é sobre a esperança de estancar o sangramento que o racismo causa.
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