“Talvez precisemos de um nome para isso”: um poema sobre cabelos e outras coisas

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o formol cai bem aos mortos
mas a indústria é ótima com eufemismos

Um poema longo, dividido em dez partes, forma o livro de estreia de Stephanie Borges, o “Talvez precisemos de um nome para isso”. Um poema longo, dividido em dez partes, é algo que eu nunca resenhei antes. Já na estrutura, o livro me obrigou a sair da minha zona de conforto literária e encarar versos livres, diretos, um poema que narra e a força das palavras que formam uma obra que trabalha a questão do cabelo de forma pessoal e coletiva sem se perder nas possíveis apropriações do mercado.

“Talvez precisemos de um nome para isso” venceu em 2018 o Prêmio Cepe Nacional de Literatura, na categoria poesia, e trata de temáticas atuais e que parecem conversar com o leitor, apesar do formato incomum para quem, como eu, se acostumou a ler livros de poesia que não são formados por um texto único.

mas não confunda
o poder e o produto
é bom para alguém que continuem acumulando
shampoos condicionadores
antifrizz finalizante
pomada mousse
restaurador ampolas
e esqueçam

Stephanie Borges usa experiências pessoais, referências literárias e musicais, cartas de Tarot, mitologia, informações científicas e receitas naturais de hidratação para criticar as cobranças estéticas e capilares voltadas para as mulheres, sobretudo as negras com seus cabelos crespos e cacheados, e falar sobre cabelos, vida e identidade de uma maneira diferente.

O cabelo feminino carrega significados culturais e esse poema tensiona vários deles. Esses significados perpassam todo o corpo e o comportamento esperado das mulheres, mas é no cabelo que eles parecem mais visíveis, provavelmente por causa da naturalização das cobranças referentes a isso no cotidiano brasileiro. “Não parece tão grave, afinal, é só o cabelo”, alguns podem dizer, sem pensar no quanto as cobranças capilares que permeiam a feminilidade se relacionam diretamente com o racismo, o machismo e ao sofrimento das mulheres associado a eles. Engana-se, entretanto, quem acredita que esse poema é só sobre isso ou mais sobre sofrimento, dor e denúncia do que qualquer outra coisa. Ele aborda também a descoberta de si e a construção de uma outra coisa que foge de tudo isso. O cabelo também é um caminho para se chegar a um outro lugar.

é triste
que existam meninas virgens, mas seus cabelos não
e naturalizemos a beleza pela dor
a ponto
de parecer normal
o ferro quente carinhosamente
chamado de chapinha,
queimaduras de hidróxido de sódio e guanidina
me avisa quando começar a arder
pra gente lavar, tá

Ninguém parece ver muito problema nas intromissões acerca dos fios alheios, ainda que as pessoas usem termos racistas para fazê-las. Falam tanto de domar cabelos e sumir com o volume que nem percebem o quanto essas expressões se relacionam com o desejo machista de controlar mulheres e torná-las cada vez menos notáveis, mais invisíveis. Essas e outras frases são utilizadas para pressionar alisamentos, relaxamentos e tingimentos e simbolizam a pressão social para que as mulheres tenham uma aparência específica, ainda que ela fuja totalmente de sua natureza. Esse controle sobre a aparência feminina que surge nessas e outras cobranças é uma maneira de nos ocupar e nos atrapalhar a buscar caminhos além das possibilidades que nos são apresentadas como as únicas possíveis.

e embora hoje transição seja a palavra
há um tempo era assumir
repare a estranha necessidade
de quem se apropria do que sempre foi seu

Stephanie Borges expõe como toda essa cobrança racista — e machista — sobre os cabelos, especialmente femininos, foi normalizada e afeta, inclusive, o próprio mercado de trabalho que ainda hoje insiste que cabelos cacheados e, principalmente, crespos não sugerem profissionalismo. E vai além ao também fornecer ferramentas para que o leitor repense a estética de nossa época a partir de confrontos entre o que é dito sobre cabelo em diferentes mitologias, como a iorubá, ajudando quem lê a criar e recriar novas imagens para pensar o mundo. Imagens menos colonizadas, eu diria.

Um cabelo não é só um cabelo. Os fios vão muito além da estética, investigá-los é uma maneira buscar o que veio antes e entrar em contato com histórias que ainda não conhecemos. Falar sobre não é ser fútil, é saber olhar ao nosso redor e entender símbolos, comportamentos e culturas. Stephanie, nessa obra, aborda padrões de beleza, racismo, identidade, descoberta e ancestralidade olhando para si e para a sociedade. É justamente nessa mescla entre o privado e o público, o passado e o presente, as velhas e novas ideias, e as diferentes linguagens e referências que a poesia da autora nos impacta.

No fim, os fios de cabelo que formam esse livro se emaranham aos nossos próprios, sejam eles lisos, alisados, relaxados, ondulados, crespos ou cacheados e nos fazem pensar mais sobre e com a própria cabeça. Da raiz até as pontas. Os fios guardam boas histórias e a gente precisa ir atrás delas.

os cabelos guardam
histórias de origens
as passagens do tempo
todo fio
contém vestígios
e carrega desde o princípio
a iminência de sua
queda


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Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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