Sobre escolher, preferir e colocar obras para competir entre si

Morning Sun — Edward Hopper

Eu deveria escrever um prefácio sobre o meu livro favorito sem dizer o nome dele. O problema é que uma das minhas principais características pessoais é não conseguir escolher preferidos entre obras literárias, cinematográficas e televisivas. Imagina então O preferido. Pois é. Agora estou aqui, atrasada no desafio de escrita criativa que me propus a fazer durante a quarentena simplesmente por ser incapaz de comparar meus gostos.

Eu poderia pegar dez livros e fazer cada título batalhar com o outro até sobrar um e pegar esse nome que restou para prefaciar. Só que eu não consigo. Esse plano encontra muitos obstáculos dentro de mim. O primeiro deles é escolher dez. Dez parece muito, mas é pouco. Mesmo se eu conseguisse chegar perto do número dez, eu ia ter que deixar algum título que eu amo de fora e isso seria uma injustiça com a obra e comigo. Uma injustiça que poderia se basear no fato de que há assuntos e abordagens essenciais que não podem competir entre si, porque são muito diferentes e também muito importantes, ou uma injustiça que moraria na possibilidade de você escolher um livro de romance e essa escolha ser vista, erroneamente, como uma eleição desse formato frente ao conto, à crônica, à poesia, à não ficção, à autoficção, à biografia e todo resto.

Sabendo dessa minha limitação, pensei muito em como eu poderia burlar as regras. Considerei mentir. Fazer um prefácio de um livro qualquer como se eu gostasse dele mais do que de todos os outros ou escrever sobre um livro que sequer existe. Como uma das regras era não citar o nome da obra no texto, mentir não seria muito difícil, mas eu não consegui. Pareceu errado. Não com vocês, mas comigo que seria obrigada a fingir ser como eu não sou. Também cogitei que eu poderia pegar um livro que foi meu preferido no passado, quando eu ainda conseguia fazer obras competirem entre si, mas nesse caso o prefácio seria sobre Harry Potter e já tem coisa demais sobre a saga nesse mundo.

É difícil escrever sobre escolha ou escolher favoritos, especialmente quando tem um alarme tocando sem parar no vizinho e uma reforma em plena quarentena bem do lado de casa. É difícil demais falar em querer e preferir quando eu sei bem o que eu escolheria fazer agora se eu pudesse. Com ou sem barulhos de vizinhos, eu queria poder sair de casa, dar uma volta, sentir o vento no rosto e o sol esquentar a pele e ter certeza que eu estou segura de novo dessa ameaça invisível que agora nos enclausura, física e mentalmente.


Esse texto foi feito a partir do #EscritaNaQuarentena e é o resultado da minha decisão por burlar todas as regras do dia quatro e da proposta. Saiba mais sobre esse desafio de escrita criativa nesse post do Twitter ou aqui no Medium, participe e se divirta. E, talvez, desobedeça. Como eu optei por fazer agora nesse texto e faço todo dia com o Bolsonaro, especialmente quando ele minimiza de maneira completamente irresponsável a pandemia de COVID-19 e o isolamento social necessário para passarmos por ela.

Publicado por

Thaís Campolina

O que falta em tamanho sobra em atrevimento. Isso foi dito sobre um galinho garnisé numa revista Globo Rural dos anos 80, mas também serve pra mim.

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