Arábia e a escrita de si

Cristiano (Aristides de Sousa)

O filme “Arábia”, dirigido pelos diretores mineiros Affonso Uchôa e João Dumans, conta a história de Cristiano (Aristides de Sousa), um homem que viaja Minas Gerais trabalhando onde encontra lugar para isso. Minas aqui não é lembrada por ser um local de belezas naturais, destino de turismo, ela é colocada como um local de trabalho, de esforço, de sobrevivência.

A obra se inicia com o foco em outro personagem, André (Murilo Caliari). Ele anda de bicicleta, desenha, fuma, cuida do irmão mais novo doente e é ajudado pela tia. De sua janela, ele vê, ouve e respira a fuligem da fábrica. Cristiano e André se cruzam vez ou outra na vizinhança, mas não há ligação entre eles. Apenas dividem o mesmo espaço, um bairro industrial, mas Cristiano está dentro e fora da fábrica, André somente fora.

A história começa a ser realmente contada a partir do encontro de André com o caderno-diário de Cristiano. Nesse momento, Cristiano assume seu lugar de protagonista e conta sua própria história por meio do papel.

O caderno-diário é fruto de uma tarefa que foi solicitada, não é algo que parte espontaneamente do personagem. O exercício consiste em narrar algo da vida dele que ele considere importante. “No fim de tudo, o que sobra mesmo é a lembrança do que a gente passou”, ele diz ao introduzir suas memórias.

Ao sair da prisão, Cristiano decide abandonar Contagem com medo de acabar indo em cana novamente. A pé e de carona, ele busca trabalho. Governador Valadares, Paraíso, Itabira, Ipatinga, Ouro Preto são alguns dos destinos do personagem. O acaso parece ser o elemento comum de todos eles. Seu percurso acontece sem ele ter muito poder sobre ele.

Todas suas relações partem dos espaços de trabalho, inclusive Ana (Renata Cabral), o amor de sua vida. Nos breves intervalos entre os afazeres, ele cultiva afetos. Canta, bebe, joga baralho e ouve histórias. Todos com quem divide esses momentos também trabalha para sobreviver. Seus esforços nunca resultam em algo além disso.

Por meio da escrita, Cristiano parece olhar para si pela primeira vez. O trabalho como constante o objetifica e a escrita de suas lembranças é o que faz ele entrar em contato consigo novamente. Ele reflete sobre si, a vida e o mundo que o cerca e conclui que todo mundo tem uma história para contar. Inclusive ele.

A memória é colocada como um componente da nossa própria humanidade frente a um mundo que cobra que o trabalhador seja uma máquina. Cristiano se descreve como alguém que não consegue se expressar bem, mas com um papel e uma caneta em mãos, ele encontra sua voz. Essa que parecia estar à vontade somente quando cantava em momentos de descontração. A escrita de si faz o personagem reviver lembranças e se ver como alguém além do homem trabalhador.

Durante a leitura, André descobre quem Cristiano é, um cara muito além da fábrica, das obras, da tecelagem, da plantação de mexerica e da prisão. O caderno une os dois personagens, André curioso sobre o que o trabalhador tem a dizer descobre que Cristiano também o observava. Apesar das diferenças, ambos dividem o bairro e a solidão.

A história de Cristiano toca não só por retratar as condições do trabalhador, mas também por ser uma narrativa que parte de um personagem que compartilha seu próprio ponto de vista. Uma história que poderia ser de muita gente e é parte de um Brasil que é invisível para muitos. Cristiano olha para si e a gente olha junto. Saímos do cinema cientes da desigualdade, do abandono, do cansaço do trabalhador comum e do poder da palavra e da memória na construção da subjetividade de cada um, principalmente daqueles a quem isso é negado.


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“A Número Um” e os obstáculos do machismo

Cena do filme “A número um” / Foto: Divulgação

Um fantasma que ronda todas as mulheres é o de saber que qualquer erro cometido será colocado na conta de seu gênero. O erro de uma pesa para todas, mas essa lógica não se repete para as vitórias. O sucesso de uma mulher ainda é só dela, apesar de abrir caminho para as próximas que passam a acreditar que aquilo pode ser possível. A sociedade não vê a conquista de uma posição de comando por uma mulher como um sinal de que mulheres são capazes de ocupar um lugar antes reservado para homens.

Para uma mulher acessar um espaço de poder como a presidência de uma grande empresa, não basta que ela seja ótima, ela precisa ter uma trajetória impecável, ser excepcional e receber validação pública. Sucesso, liderança, poder e dinheiro ainda são vistos como espaços masculinos. Uma mulher em um espaço desses ainda é uma intrusa, alguém que tirou um homem dali.

“A Número Um”, filme dirigido pela francesa Tonie Marshall, conta a história de Emmanuelle Blachey, uma mulher de sucesso que busca ser a primeira mulher presidente de uma grande empresa. Aos olhos do machismo, ela já é uma intrometida e quer ser ainda mais. A ambição não cai bem para as mulheres, pensam eles.

Já na primeira cena do filme, vemos a protagonista receber uma mensagem de conteúdo sexual em tom agressivo. Já em outro momento, ela comenta com outra mulher que seu assediador desconhecido parece querer calá-la colocando o pênis em sua boca e essa é somente uma das críticas feitas na obra à misoginia vigente, principalmente no mundo corporativo.

A trama gira em torno da tensão que envolve a busca dela por esse cargo, os jogos de poder que o cerca e os silenciamentos, estereótipos e desumanização que perseguem ela e todas as outras. Enquanto os acontecimentos se desenrolam, o espectador descobre mais sobre Emmanuelle e percebe o peso de ser a única mulher no meio de tantos homens.

O filme é sobre o jogo de poder de sempre, mas com críticas ao fato de que as mulheres estão em desvantagem. A regra do jogo para as mulheres é que um erro vale para todas, os estereótipos também. E tudo isso vira arma para nos manter fora desse e de outros espaços. No Brasil, por exemplo, somente 10,5% do Congresso é feminino.

O poder tem gênero, tem cor e tem classe. A protagonista enfrenta o obstáculo do machismo. Toda sua vida é permeada por ele, do assédio aos sutis comentários que a rodeiam, mas é importante lembrar que os caminhos para uma presidência de uma grande empresa também podem ser atravessados pelos entraves do racismo e da pobreza.


Tonie Marshall foi a primeira mulher a receber o Prêmio César de Melhor Direção por sua comédia Instituto de Beleza Vênus e no filme “A Número Um” atuou na direção, roteiro e produção.

Assista o trailer:

“Mulher-Maravilha” e o impacto de ter uma heroína nas telonas

Quando eu era criança, assumia identidades diversas durante as brincadeiras. Lembro das várias vezes que fui Power Ranger Amarela, de ser bruxa, fada e até pesquisadora de vida extraterrestre da NASA. Num mundo em que o número de personagens femininas interessantes tendiam a zero, minha maior aliada sempre foi a imaginação. Eu criava as personagens que me agradavam e adaptava as histórias dos desenhos para que as que já existiam tivessem vez nas brincadeiras.

Nessa época, eu até tinha ouvido falar da Mulher Maravilha, mas ela não me interessava muito, já que eu via esse nome ser mais usado para se referir às mães do que para falar da heroína da DC Comics. Ela nunca fui um ícone para mim, jamais me serviu de referência, mas para as novas gerações ela será.

Mulher-Maravilha” foi o primeiro filme de super herói dirigido por uma mulher e teve a estreia mais lucrativa de uma diretora nas bilheterias americanas até hoje. Os recordes de bilheteria batidos pelo filme dirigido por Patty Jenkins podem abrir caminho para mais protagonistas femininas no cinema e aumentar a contratação de diretoras para filmes de maior orçamento.

A indústria do cinema ainda considera que apenas histórias masculinas — e brancas — interessam e duvida da capacidade de direção das mulheres. Patty Jenkins, que dirigiu “Monster — Desejo Assassino”, não podia falhar e sabia disso. Quando abriu mão da direção de “Thor: O mundo sombrio”, ela comentou que fez isso porque sabia que se o resultado final não fosse bem aceito, o peso disso seria bem maior por ela ser mulher. “Eu pensei que se eu dirigisse o filme (Thor 2), seria um grande desserviço às mulheres. Se eu assumir o posto sabendo que será uma enrascada, e o filme ficar ruim por minha causa, será um grande problema. Se isso acontece com um diretor homem, é apenas mais um erro do estúdio”, ela afirmou. As mulheres carregam o fardo de que seus possíveis erros e dificuldades sempre serão usados para desqualificar todas as mulheres. A cineasta sabia que se “Mulher-Maravilha” fosse um desastre, diriam que mulheres não sabem dirigir e que ninguém quer ver uma heroína nas telonas. Felizmente, isso não intimidou Patty Jenkins. Nesse projeto, ela acreditava.

O impacto do filme vai bem além da indústria do cinema, já que até eu, que tenho 27 anos e nenhuma ligação prévia com a heroína, saí do cinema me sentindo pronta para enfrentar o mundo. Diana Prince cresceu na ilha de Temiscira, cercada por amazonas e recebeu um treinamento intenso por parte de sua tia Antíope. Sua postura ao sair de onde sempre viveu não é de medo e, mesmo sem saber as regras implícitas do mundo fora de sua ilha, ela não se sente intimidada numa Londres que trata mulheres como inferiores. Mesmo subestimada, ela confia em si e em sua história e faz sempre o que quer e acredita.

Fora da ilha de Temiscira, mulheres são criadas prontas para duvidarem de si mesmas. Depois de anos sendo interrompidas, ignoradas e subestimadas, nós acabamos perdendo a capacidade de acreditar que somos capazes. A insegurança é um elemento feminino no mundo que faço parte, mas sei que pode ser diferente. Ver a Mulher-Maravilha nas telonas, e acompanhar a história de coragem de Patty Jenkins ao assumir a direção desse filme, apesar de toda pressão, me lembrou disso.

As meninas de hoje terão Diane Prince, Katniss Everdeen, Moama, Rey e muitas mulheres reais para se apegarem quando o mundo machista disser que elas não são capazes. Elas não precisarão criar personagens femininas quando quiserem um papel maior numa brincadeira, já que a cultura pop está se tornando aos poucos um espaço que nos sentimos parte. Com esse contato com protagonistas femininas, os meninos vão aprender que mulheres pertencem ao mesmo mundo que eles e que são tão aptas quanto eles a realizarem inúmeras tarefas. Ainda assim, as meninas de hoje não estarão livres de passar por muitos desafios que o machismo e outras opressões trazem, mas o caminho para a mudança está sendo traçado em todos os espaços e, com tantos exemplos reais e imaginários, elas saberão como resistir.


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