Vovó adora contar histórias da minha infância. São causos variados, alguns envolvendo viagens ao litoral, outros, festas de família, mas a maioria mesmo é sobre nosso cotidiano: minha vó contando suas memórias e eu ouvindo, minha vó me olhando e eu falando sem parar, minha vó jogando baralho e eu aprendendo com ela todas as regras, minha vó assistindo à televisão e eu observando suas reações ao Sílvio Santos ou mesmo ao lindo Thiago Lacerda, minha vó bordando e eu dizendo que só aceitaria tentar se fosse um risco da digimon Tailmon, minha vó fazendo biscuit ou flor de meia e eu logo ao lado colando um porta-retrato de EVA com um enfeite da digimon Tailmon feito por mim como exercício da aula de artes da escola, minha vó cantando e eu no meu quarto tentando me concentrar no dever de casa, minha vó fazendo bolo e eu fugindo da cozinha para não ter que ajudar.
Entre tantos causos possíveis, ela escolheu como preferido o dia que ela descobriu que eu já sabia ler. Eu tinha três anos, quase quatro, e parei frente ao portão do quintal da minha casa, olhei para o cadeado dependurado e soletrei Papaiz, depois juntei as sílabas e formei a palavra. Vovó falou “mas você já sabe ler, menina?” e eu, fingindo que aquilo não era importante pra mim, simplesmente disse “claro que eu sei”. Ela sempre ri quando conta essa história, um riso que parece dizer que a surpresa dela foi sempre uma piada, como se fizesse questão de repassar essa memória simplesmente porque aquela cena foi o momento que ela me descobriu, viu o que me tornava Thaís.
E, de certa forma, foi isso mesmo o que aconteceu. Ouvi tanto esse relato que me tornei leitora. De tanto ouvir, percebi que por mais que minha avó me cobrasse que eu aprendesse o que toda meninA deveria saber, ela tinha certeza que isso nunca me bastaria. Foram tantas versões desse episódio reproduzidas que um dia finalmente entendi que a curiosidade era a principal característica que nos unia, aquilo que nos deu liga, fez a gente se juntar para ouvir, descobrir e contar histórias. A partir da narração dessa memória, minha vó teceu nossa filiação, nossa semelhança, nossa conexão às vezes desconectada. Vovó me construiu leitora quando me viu uma.
Nos meus ouvidos atentos, a leitora já existia. Na observação dos comportamentos ao redor, também. Na minha vontade de falar tudo que eu sentia, vivenciava, descobria e, principalmente, inventava, mais ainda. Vovó conta a descoberta dela como se esse momento fosse a gênesis da super-heroína da linguagem que ela acredita que eu sou.
A narração sempre vem com algum comentário. Ela complementa dizendo que eu não parava quieta, queria tudo e pulava de galho em galho atrás da próxima palavra. Essa energia minha, na voz da minha vó, nunca teve tom de crítica direta. Vovó sempre me pareceu se encantar com o tanto que eu, teoricamente, era difícil, como se certos defeitos meus fizessem parte desse pacote maior que me tornava eu.
Vovó gostava de ler histórias de mistério. Hoje não mais. Cansou disso. Minha primeira vez com Agatha Christie foi com um livro dela caindo aos pedaços, numa época em que ela ainda gostava muito dessas coisas. Ela tem lido menos e preferido formas breves, mas contado e recontado mais histórias suas, descobrindo, agora que os olhos se cansam fácil das letras, uma veia cronista cansada, mas firme. Grata também.
Não sei como minha vó me vê hoje. Sei que ela não parece se decepcionar com quem me tornei, mesmo eu não tendo uma carreira brilhante. Talvez isso seja vestígio do machismo de sua época, inclusive, mas isso não importa agora. Me conforta, na verdade. Me parece que para ela a minha característica leitora nunca me fez prometer nada além de uma boa conversa. Só que isso me lembra que ela quer que eu tente participar do programa “Quem quer ser um milionário?” do Luciano Huck desde que era Show do Milhão do Silvio Santos. Ela jura que eu ganharia meu milhão assim. É, talvez haja alguma expectativa. Ela deve esperar que eu faça alguma coisa com tanta vontade de ler o mundo. Alguma coisa que renda dinheiro. Talvez prestígio também. Como todo mundo espera, inclusive eu às vezes. Ela quer uma cena nova que me defina, como foi a do cadeado Papaiz. Uma cena que mostre para os outros que as palavras dela criaram a super-heroína da linguagem que ela vê. Sei que ela espera algo mais grandioso, mais capitalista talvez, mas vejo essa cena acontecer toda vez que medeio um clube de leitura, converso sobre um livro, falo sobre o que eu escrevo. Ou escrevo. Ou simplesmente leio. Ou paro para ouvir uma história que só ela pode contar e leio a mais recente folha de caderno que ela preencheu pra mim e me entregou se desculpando pelos possíveis erros ortográficos de quem só estudou até a 3ª série.
Vó, eu estou aqui criando e recriando a cena que você adora contar mesmo que você não note e isso me conforta. Vó, eu estou aqui usando as palavras pra contar, mais uma vez, as nossas histórias. Vó, eu ainda pulo de galho em galho atrás da próxima palavra, do próximo causo, da próxima chance de conexão.
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