O Conto da Aia: A sombra de um futuro distópico já vive entre nós

Imagem do livro — Acervo pessoal — Adquira seu exemplar aqui.

O livro “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, foi publicado pela primeira vez em 1985 e, após mais de trinta anos de seu lançamento, foi adaptado ao formato de seriado e se tornou uma febre mundial.

“Nenhuma bugiganga imaginária, nenhuma lei imaginária, nem atrocidades imaginárias. Deus está nos detalhes, é o que dizem. O diabo também” foi a regra que Atwood criou para si mesma para escrever esse livro. E talvez seja justamente essa possibilidade dos acontecimentos narrados na obra serem o futuro por, de forma isolada, aqueles fatos já terem existido ou ainda existirem, tenha tornado a obra icônica. Há um reconhecimento em comum, um lembrete que a questão não é só o medo do que vai vir, há muito daquele horror no presente e no passado.

Após um golpe contra o governo dos Estados Unidos, Gilead, uma teocracia de direitos muito limitada, é criada. Com os graus de fertilidade cada vez mais baixos devido a contaminação de águas, terras e afins, garantir a procriação da população passou a ser o principal argumento da necessidade de imposição de leis absurdas e, mais uma vez, a culpa da esterilidade ficou na conta só das mulheres.

Nessa nova sociedade, as mulheres tiveram seus direitos restringidos ao extremo e suas existências passaram a depender de um encaixe em uma das quatro atribuições disponíveis para elas, essas muito ligadas ao que é definido como feminino na sociedade que vivemos hoje.

As mulheres de Gilead podem ser Aias, Martas, Esposas ou Tias e cada um desses papéis têm um código de vestimenta restrito e com cores específicas que sinalizam seu status naquela sociedade, criando uma rivalidade entre elas. As mulheres que não se encaixam são vistas como “não mulheres” e são mandadas para trabalhar em campos de trabalho forçado, um destino de morte certa. Extermínio.

As mulheres em idade fértil que pariram em algum momento de suas vidas se tornam Aias, mulheres treinadas para engravidar, parir e amamentar um filho destinado ao Comandante e sua Esposa. Suas vestem parecem hábitos, são vermelhas e são acompanhadas de um chapéu branco que escondem seus rostos. As Esposas vestem azul, como Virgem Maria, e são mulheres inférteis casadas com os Comandantes. As Martas vestem verde e são responsáveis pelos trabalhos domésticos, enquanto as Tias têm a função de educar as Aias a servirem e usam marrom. Também há as econoesposas, as esposas de homens de classe mais baixa que a dos Comandantes, ponto pouco explorado do livro. Esses homens não têm o direito de possuir Aias, maior símbolo de status dessa sociedade.

A situação de todas as mulheres na República de Gilead é de privação de direitos, mas o lugar das Aias é o de um receptáculo controlado. Elas são um objeto de poder, por possuírem um útero fértil, esse signo de sua opressão. A história do livro é narrada por uma Aia. Seu nome verdadeiro é desconhecido, mas dentro do regime, ela é Offred, que significa “De Fred”.

A narrativa do livro é um fluxo de pensamentos da narradora-personagem. Ora a protagonista fala de suas memórias, para a gente entender como tudo era antes e quem ela foi um dia, ora fala das cerimônias, regras e rituais dessa teocracia. A personagem nos apresenta, com recortes, um mundo dominado pelo conservadorismo, sem liberdades individuais e baseado na misoginia, enquanto fala sobre seus sentimentos. Ela se apega ao passado para resistir ao presente. Lembrar de quem ela foi um dia, da filha que teve e de seu marido, é a maneira que ela encontrou de se manter com vontade de viver.

Apesar da história expor um mundo extremo, tudo ali parece possível como um desdobramento do mundo que vivemos por se basear numa opressão real e em acontecimentos e discursos derivados dela. A obra tenta nos mostrar a possibilidade daquilo vir a acontecer, especialmente quando ela traz à tona suas memórias sobre os acontecimentos que antecederam a instauração desse Estado totalitário e teocrático.

O Conto da Aia já foi traduzido para cerca de quarenta idiomas, foi adaptado para cinema e tema de um balé, de uma ópera e agora de uma série que ganhou muitas categorias do Emmy Awards 2017.

O controle do corpo das mulheres nunca deixou de ser pauta em qualquer lugar do mundo e é por isso que essa distopia se parece tão próxima de nós. E, nesses tempos, ainda mais. O mundo avança novamente para o domínio do conservadorismo. Nos EUA, Trump representa um retrocesso para todos grupos vulneráveis, incluindo mulheres e, no Brasil, a bancada fundamentalista domina o legislativo federal, estadual e até mesmo municipal.

A obra é um fenômeno atualmente por provocar reflexões sobre família, religião, Estado, violência, poder e papéis considerados como femininos num momento crucial de avanço de retrocessos.

Com a exposição de um regime baseado em controle, violência, ameaça e religião, o leitor cultiva em si a certeza da importância da desobediência. Offred desobedece ao não esquecer quem foi no passado e, nas lembranças de quem foi um dia, encontra a força necessária para continuar existindo. Enquanto o mundo retira sua humanidade, lembrar que ainda é um indivíduo é resistência.

“Alguns livros assombram o leitor. Outros assombram o autor. The Handmaid’s Tale fez os dois”, disse Atwood uma vez num artigo do The Guardian e tenho que concordar. O mundo de Gilead faz soar um alarme interior que serve como um alerta para os rumos autoritários e assustadores que estão sendo desenhados agora.

Mulheres se vestem de Aias hoje e saem para protestar contra o controle estatal de seus corpos e mostram como essa história se tornou símbolo da resistência feminista contra todas as formas de opressão.


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Obs: Durante a Virada Feminista Online pela Legalização do Aborto, fiz uma transmissão ao vivo no Ativismo de Sofá falando sobre o avanço do conservadorismo, a necessidade de resistência, livro/série “Conto da Aia” e o controle do corpo das mulheres. Quer ver o vídeo? Basta clicar aqui e dar play.


#MeToo: a importância de se quebrar o silêncio

Imagem de YourStory

A hashtag #MeToo foi citada no Twitter mais de 800 mil vezes até a última terça-feira (17/10) e o número de pessoas participando segue aumentando. Atletas como as campeãs olímpicas McKayla Maroney e Tatiana Gutsu compartilharam suas histórias e celebridades como Lady Gaga, Bjork e as atrizes America Ferrera, Evan Rachel Wood, Lupita Nyong’o também falaram sobre.

A campanha ganhou tradução. #EuTambém e #YoTambien tomaram as redes e relatos de vários lugares do mundo vieram à tona e mostraram como a cultura do estupro se faz presente nos mais diversos lugares do mundo. A violência sexual, infelizmente, faz parte da vida de mulheres do mundo inteiro e vem acompanhada de culpabilização da vítima e do silenciamento delas.

#MeToo começou com Alyssa Milano publicando em seu Twitter a frase “se todas as mulheres assediadas ou agredidas sexualmente escrevessem #metoo em suas redes, talvez o mundo passaria a ter noção da magnitude do problema”. Seu post foi feito em apoio às denúncias de assédio e estupro contra o Harvey Weinstein, produtor hollywoodiano.

As mulheres de Hollywood resolveram falar. Os relatos continuam surgindo e a força da luta contra o machismo do meio crescendo. Além de Weinstein e seu irmão, Roy Price, da Amazon Studios, e o diretor James Toback também foram citados em relatos. James Toback foi acusado de assédio sexual por 38 mulheres.

Antes da hashtag e da multiplicação de relatos, muitas feministas temiam que o mundo e Hollywood encarassem o caso Harvey Weinstein como um fruto podre, algo isolado. Com a mobilização, escancarou-se a verdade dolorida de que há homens como Harvey nos mais diversos espaços e que lidar com o comportamento abusivo e reiterado desses caras é considerado parte do pacote de quem quer fazer parte de indústrias como a cinematográfica. As vítimas quebraram o silêncio e esse ato expôs como todos em torno delas também se silenciavam sobre o comportamento de Weinstein e de outros homens como ele.

Os movimentos brasileiros #PrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto, #ChegaDeFiufiu, #MeuCorpoNãoÉPúblico e #MexeuComUmaMexeuComTodas são bem semelhantes ao #MeToo e também ocuparam as redes sociais. A grande adesão nessas campanhas mostra não só quão grave é o problema, mas também como o silenciamento das vítimas é uma constante nos casos de crimes contra mulheres e como a teia de relatos formada fortalece a voz das denunciantes.

A catarse coletiva que essas hashtags representam mostra que as denúncias feitas por mulheres encorajam outras a também falarem sobre. Forma-se, espontaneamente, uma rede de solidariedade e empatia que impulsona outras a se abrirem e fortalece as que já se manifestaram. Essas histórias estão, enfim, sendo tiradas de debaixo do tapete e isso é importantíssimo para que haja uma compreensão coletiva do que é o machismo estrutural e que ele precisa ser combatido em todos os espaços.

Os relatos de tantas mulheres expõem uma realidade que a maioria se nega a reconhecer. Numa sociedade que culpa a vítima, dizer #MeToo é um ato de coragem, força e solidariedade. Isso é enorme, mas depois de tantas campanhas de conteúdo próximo, arrisco a dizer que quebrar o silêncio é essencial, mas precisamos ir além de expor quão ruim o mundo é para nós.

Mulheres são a grande maioria das vítimas de violência sexual. Homens, especialmente quando crianças, também são vítimas, apesar de ser em menor proporção. Há uma questão de gênero e de poder exposta em quem são as vítimas, mas também há em quem são os agressores e a gente precisa tocar nesse assunto. A violência sexual é, em enorme maioria, cometida por homens e falar sobre a construção da masculinidade se basear no poder, na violência e na visão de que mulheres e tudo que é considerado feminino são inferiores a eles é essencial para o combate desse fenômeno.

Além de expor a gravidade do machismo, a gente também precisa falar sobre as engrenagens por trás da violência que a gente chama de “violência contra as mulheres”. Sem isso, nossas denúncias continuarão sendo encaradas como menos importantes, já que seguimos sendo vistas como menos dignas que eles e, mais uma vez, toda a discussão não chegará em quem deveria, já que a violência cometida contra nós segue ignorada a maior parte do tempo.

O caso de Weinstein mostrou que muitos tinham uma noção do comportamento misógino do produtor e seguiam ignorando isso, trabalhando com ele e o apoiando de alguma forma. As vítimas quebrarem o silêncio é um passo importante, mas ainda falta a sociedade num todo encarar os relatos de crimes contra as mulheres com a seriedade devida. Enquanto isso, muitos seguirão acobertados, como o próprio Weinstein foi por anos, porque a cultura do estupro conta com o silêncio negligente de quem ignora a magnitude do problema.


Texto publicado originalmente no blog Ativismo de Sofá.

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Feminismo Ilustrado: Livro reúne entrevistas relacionadas ao tema

Arte feita por Mariamma Fonseca para o livro “Você é feminista e não sabe” — Adquira seu exemplar aqui.

Sei dizer quando comecei a me definir como feminista, mas sou incapaz de determinar qual foi a primeira vez que me senti em desvantagem em alguma situação por ser mulher.

A memória não é feita de arquivos de vídeos de momentos, nem é organizada em pastas por idade e não tem um anexo em escrito sobre nossas percepções da situação quando ela aconteceu. Por isso, é difícil precisar qual foi a primeira vez que eu tive consciência de que o mundo era machista. Pode ter sido quando me impediram de jogar futebol por ser menina, quando me falaram que eu tinha que lavar a louça e os meninos não ou alguma outra situação. Eu não sei. Apesar de lembrar de circunstâncias machistas que me aborreceram nessa época, eu percebo que muitas lembranças que hoje entendo como de situações relacionadas ao meu gênero passaram batido por anos até eu tomar consciência de que elas não eram naturais e/ou certas.

Meu incômodo com a desigualdade sempre existiu, mas estar inserida numa cultura machista pode nos fazer duvidar de que esse sentimento é justo. Leva tempo para gente compreender que não estamos sendo loucas de irmos contra o status quo que define como devemos nos portar e esse processo perpassa diferentes esferas. O caminho varia, mas geralmente a gente começa de onde o nosso calo aperta. A internet funcionou como um potencializador desse processo para muito gente, já que ampliou a possibilidade de mulheres dividirem suas experiências, preocupações e trajetórias.

O canal “Você é feminista e não sabe” tem como proposta aprofundar o tema feminismo por meio de diferentes recortes e fazer com que as pessoas percam o medo dessa palavra. Por meio de entrevistas com mulheres diversas, o mundo da Outra é apresentado e conhecer diferentes realidades nos ajuda a entender melhor o porquê do feminismo ser além do eu.

Através de uma campanha de financiamento coletivo no Catarse, Angélica Kalil e Mariamma Fonseca querem colocar no papel quinze entrevistas feitas pelo canal. Com temas variados, como maternidade, violência doméstica, cultura do estupro, história, política, mulheres lésbicas, periféricas, negras e indígenas, o livro promete ser um ótimo companheiro para todos que querem refletir sobre a realidade das mulheres.

Angélica Kalil, criadora do canal e do livro, comentou que no livro será possível encontrar informações sobre a história do movimento, termos usados pelo feminismo, personagens históricas que questionaram seu lugar de gênero e dados/informações sobre a situação da mulher no Brasil e no mundo.

Além das entrevistas, a obra contará com textos de apoio e com mais de 60 desenhos de Mariamma Fonseca para ilustrar informações e fatos citados pelas entrevistadas. “As ilustrações estão como complementos das falas e deixam a narração dessas mulheres ainda mais marcantes”, conta Mariamma.

Capa do livro

A campanha encerrará no dia 30 de setembro e, até então, apenas 60% foi arrecadado*. Através de contribuição, você pode adquirir o livro e, dependendo do valor, ganhar recompensas como pôsteres, adesivos e marcadores.

“Você é feminista e não sabe” promete ser uma leitura que acrescenta muito para quem acabou de chegar no rolê e quer saber mais sobre diversos temas, e também para quem já é velha de guerra, mas gosta de entrar em contato com novas abordagens de temas já conhecidos. Só sei que com um livro desses publicado, conhecer e difundir o feminismo será algo mais simples do que foi um dia.

*O livro foi financiado com sucesso! Quer adquirir um exemplar? Clique aqui e saiba mais. É possível comprar também pelo meu link na Amazon.


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Onde estão as mulheres em nossas referências?

Arquivo Pessoal — foto do livro “Histórias de ninar para garotas rebeldes” — Adquira seu exemplar aqui.

Quantas mulheres nomeiam ruas, parques, avenidas, praças e viadutos na sua cidade? Quantos desses nomes você consegue lembrar sem esforço?

Moro em Belo Horizonte há alguns anos e consegui pensar na Avenida Tereza Cristina, na rua Stela de Souza, no viaduto Henriqueta Lisboa e em bairros com nomes de mulheres da religião, como Santa Tereza e Santa Efigênia. Todos os primeiros nomes que vieram na minha mente eram masculinos, como Afonso Pena, Bias Fortes, Augusto de Lima, Cristiano Machado, Silviano Brandão e Raul Soares. Só depois me lembrei dos bairros Jaqueline, Maria Helena e Juliana.

A dificuldade que tive de lembrar nomes de mulheres ao pensar na ruas, avenidas e viadutos da minha cidade não se deu por eu conhecer pouco daqui ou por mero esquecimento, aconteceu porque elas são minoria. Apenas 16% das ruas da cidade de São Paulo têm nomes de mulheres. Uma pesquisa feita na Espanha em 2007 apontou que apenas 5% das ruas de lá tinham nomes femininos. Já na França, um levantamento feito pelo grupo feminista “Osez le Féminisme!” apontou que apenas 2,6% das ruas parisienses homenageavam mulheres notáveis.

A matéria “Nomes de rua dizem mais sobre o Brasil que você pensa” do Nexo afirma que nas rodovias, um tipo de logradouro que exige bem mais investimento, os nomes masculinos dominam com 98% e que ao analisar os trinta nomes femininos de ruas mais populares do Brasil, somente quatro não eram de religiosas. Já entre os trinta nomes populares masculinos, dezesseis não faziam referência à religião.

Os nomes dos logradouros são uma amostra do apagamento das mulheres como referências, das relações de poder e das forças envolvidas nas decisões políticas. Além da ausência de mulheres e pessoas negras, no geral, vemos também a manutenção de nomes de bandeirantes, que dizimaram indígenas, e de torturadores e ditadores.

Os nomes presentes no espaço público são, em peso, masculinos. Percebe-se como eles são escolhidos de acordo com uma narrativa que privilegia a elite, composta principalmente por homens brancos, e seus ideais da época. Santas, mães e esposas são bem presentes entre as poucas homenageadas por representarem o ideal de mulher que eles apoiam, essa mulher que praticamente só se pode ser branca. Nossas referências não são necessariamente nomes de ruas, mas elas são parte de um todo machista, racista e elitista. Um todo que nos influencia. Afinal, quem são as nossas referências?

Gandhi, Nelson Mandela, John Lennon, Einstein, Tiradentes, Che Guevara, Jesus, Marx, Zumbi e diversos outros nomes masculinos são lembrados toda vez que fazem essa pergunta. Quando lembram de mulheres, falam a maioria das vezes de santas, mães e avós. As nossas referências podem não ser as mesmas dos nomes das ruas, mas ainda reproduzem a mesma lógica de que o espaço público é deles.

A maioria das pessoas cresce sem pensar que a ausência de nomes de mulheres na história é fruto da falta de oportunidades dadas a elas e da invisibilidade dada pela história aos seus feitos. Apesar do machismo — e o racismo e as questões de classe — terem negado educação e acesso para tantas, ainda assim muitas conseguiram ser escritoras, artistas, cientistas, fazer descobertas e lutar por melhorias. Principalmente no século XIX e XX, mas não só.

Conhecer e divulgar nomes de mulheres que fizeram parte da história, mas que são constantemente esquecidas, é importante porque as crianças que crescem sem essas referências acabam acreditando que o papel da mulher é o de subalterna, especialmente no caso de mulheres racialmente oprimidas que continuam sendo referenciadas na nossa cultura dessa maneira mesmo quando se passa a discutir temas como mulheres nos negócios com mais frequência. Que mulheres são essas englobadas por esse termo, né? Isso prejudica a autoestima das meninas e faz ambos os gêneros acreditarem que elas são menos capazes que eles.

Se os nomes que as crianças conhecem como inteligentes, marcantes, desbravadores e criadores são só de homens, as meninas nunca acharão que são boas o suficiente, enquanto os meninos seguirão acreditando que eles podem chegar lá. Se elas recebem menos estímulos que meninos para conhecerem coisas novas e para determinadas áreas, elas são afastadas dessas possibilidades.

Uma pesquisa, publicada na Science, afirma que meninas, a partir dos seis anos, têm dificuldade de acreditar que são brilhantes, apesar de achar isso dos meninos. Outra pesquisa apresenta a informação de que professores dão notas melhores para meninas se eles não sabem que elas são meninas. Ambos estudos mostram como os estereótipos de gênero influenciam na vida e na autoestima delas. Lembrando aqui que há pesquisas que mostram que estereótipos de raça também afetam a maneira que os professores olham para crianças: Crianças negras são mais vistas como “bravas” do que crianças brancas e esse estereótipo atinge mais meninas negras que meninos negros.

Já na infância encontramos obstáculos específicos do nosso gênero e somos, desde muito novas, ensinadas a duvidar de nós mesmas. Uma dúvida que carrega em seu cerne o medo de falhar e acabar servindo como uma prova de que nosso gênero não é bom em algo.

Com a internet e tantas mulheres falando sobre representatividade, autoestima e machismo, surgiu uma necessidade e curiosidade coletiva por conhecer mais histórias de mulheres. As italianas Elena Favilli e Francesca Cavallo perceberam isso e reuniram no livro “Histórias de ninar para garotas rebeldes” uma centena de nomes admiráveis de diversas áreas de atuação.

A obra foi idealizada por elas, mas só virou realidade por causa de uma campanha de financiamento coletivo. “Histórias de ninar para garotas rebeldes” foi o livro que arrecadou o maior valor na história do financiamento coletivo e contou com apoiadores de mais de 70 países. Esse recorde mostra que as pessoas têm percebido a importância de tirar a cortina da invisibilidade da história das mulheres e que muitos sentem falta de conhecer mulheres incríveis. O que é incrível, mas também nos faz pensar em como essa pauta pode ser facilmente capturada pelo capitalismo e por grupos com interesses antifeministas, principalmente a partir das escolhas de homenageadas.

Rainhas, atletas, cientistas, ativistas, escritoras, artistas e até piratas e espiãs recheiam as páginas da obra. Cada nome tem sua história e feitos contada começando com um “era uma vez”, num tom que aproxima o público infantil. Além dos textos, há também a participação de ilustradoras de diversos países.

Um livro encantador que, na minha opinião, peca no título. As histórias contidas nele servem para ninar crianças rebeldes, não só meninas. Sei que meninas são as maiores interessadas numa obra que fortalece a autoestima delas e também imagino que a intenção das autoras é que a obra seja para todas as crianças. Acredito, inclusive, até que há muitos meninos tendo contato com o livro por iniciativa de seus pais, porém, um título como esse reforça a ideia de que há coisas para meninas e coisas para meninos e que conhecer a história de mulheres notáveis não é algo importante para eles, sendo que é essencial que eles também tenham referências femininas para crescerem vendo mulheres como iguais.


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Jarid Arraes e as heroínas negras brasileiras

Jarid Arraes — Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Divulgação. Adquira seu exemplar aqui.

Da escada, avistei uma fila de pessoas em torno de uma mesa. Elas compravam exemplares de “Heroínas Negras Brasileiras”, livro de Jarid Arraes que reúne 15 cordéis que contam a história de mulheres negras como Antonieta de Barros, Carolina Maria de Jesus, Tereza de Benguela, Luísa Mahin e Aqualtune.

Sentei, junto com uma amiga, nas últimas duas cadeiras vazias e vi grupos se ajeitarem no chão, nos degraus ou ficarem em pé nas proximidades. De longe, se via muitos cabelos cacheados, crespos e anelados. A maioria do público era composto por mulheres negras. Eu era uma das poucas pessoas brancas da plateia.

Durante a roda de conversa, Jarid Arraes disse que escreveu essas biografias em forma de cordel e usou a palavra “heroínas” para definir essas mulheres por acreditar que a figura heroica tem o efeito de inspirar leitores e transmitir coragem para enfrentar adversidades. Ela ressaltou que o uso dessa palavra serve também para mostrar para todos que há heroínas negras bem perto de nós. Elas, como as homenageadas no livro, também resistem ao machismo, ao racismo e têm suas histórias marcadas pela resistência, coragem e talentos diversos, como a escrita e a liderança.

No evento que lotou o Sesc Palladium em Belo Horizonte, ela falou também um pouco sobre sua história pessoal, suas inspirações, contou um pouco mais sobre as mulheres que foram tema dos poemas de seu livro e expôs como o mercado editorial segue ignorando a presença das mulheres negras escritoras. Em seu discurso, ela evidenciou o efeito perverso que a invisibilidade das histórias das mulheres negras causa, já que o apagamento de uma narrativa como essa faz com que muitas pessoas cresçam sem referências de mulheres negras num mundo que continua perpetuando estereótipos de gênero e de raça.

No fim, Jarid comentou sobre seus futuros projetos em poesia e declamou o cordel que fala sobre a trajetória de Zacimba Gaba, uma princesa que foi traficada e depois torturada pelo escravocrata que a comprou por ele ter descoberto o passado dela. A princesa resistiu e envenenou o barão aos poucos e com a morte dele, liderou uma fuga e formou, junto com os demais fugitivos, um quilombo.

Ao terminar a leitura do poema, ela disse que quando escreveu “As lendas de Dandara”, seu primeiro livro publicado, narrou acontecimentos semelhantes com os feitos de Zacimba como pura ficção, porque ela ainda não conhecia essa história fantástica e real. E eu me pergunto, quantas histórias fantásticas e reais ainda não conhecemos? Quantas se perderam? Quantas ainda podemos resgatar e contar?

Nas últimas páginas de “Heroínas negras brasileiras”, há um espaço destinado para um cordel em sextilha e o convite para que nós contemos a história de uma mulher negra que nos marcou. Nessas linhas, feitos serão narrados e uma memória coletiva construída.

Muitas histórias começaram a ser lembradas ali, enquanto ainda ouvíamos a escritora apresentar seu trabalho, seus ideais e seu processo criativo. E várias já foram parar no papel um dia depois, na oficina de cordel ministrada pela autora. Entre professores, contadoras de história, fãs de cordel e especialistas no assunto, descobri como fazer sextilha, septilha e até décima com mote. Vi Jarid apresentar cada uma dessas possibilidades poéticas com trechos de seus cordéis engajados. Ela também falou sobre métrica e suas técnicas pessoais para garanti-la. E, enquanto pensávamos em quem íamos homenagear, ela leu, acompanhada de algumas participantes da oficina, vários cordéis presentes no livro.

Durante o lançamento da obra e também na oficina, Jarid ressaltou diversas vezes que a escrita não é um dom, ela é fruto de esforço e de treino. Para ela, todos nós podemos escrever. O discurso fez bem para mim, que estava ali numa missão de exploração de um novo jeito de escrever. Tentar algo novo é se expor ao erro e fiz essa oficina para conhecer mais sobre o processo de escrita da autora, experimentar um novo estilo e ampliar meus horizontes literários.

Com muita dificuldade, fiz meu primeiro cordel. Apanhei bastante da métrica e da rima, mas consegui prestar uma pequena homenagem para Adelina, uma mulher negra escravizada que ajudou a libertar cativos na luta abolicionista.

Meu primeiro cordel, como qualquer primeira coisa, ainda é uma tentativa, e apesar disso, dividirei o que fiz com vocês, já que acredito que a importância de compartilhar a história dessas mulheres é a mensagem primordial que Jarid quer passar. Sigo sem saber muito sobre literatura de cordel, mas com “Heroínas negras brasileiras” em mãos, percebo que vale a pena fazer parte desse partilhamento de histórias de mulheres notáveis e dessa valorização do cordel, enquanto parte da cultura brasileira. Vamos nos inspirar no trabalho de Jarid e apresentar para o mundo biografias de mulheres negras que admiramos?

Adelina, a charuteira

Vou contar neste cordel
uma história importante
de Adelina, a charuteira
e sua trajetória impactante
de luta abolicionista
contra todos ignorantes.

Filha de escravocrata
lidou com um tratante
Sua liberdade prometida
foi desprezada pelo arrogante
Trabalhou noite e dia
numa labuta esgotante.

Em São Luís do Maranhão
auxiliou os aflitantes
se tornou uma guia
nas ruas abundantes
ajudou muitos fugitivos
e deles foi informante.

Sobrenome não se sabe
mas seu feito foi brilhante
Vendendo uns charutos
se tornou uma militante
pela libertação dos escravos
e contra a exploração aviltante.


Acompanhe o trabalho da Jarid Arraes em seu site e página do Facebook.


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Sola Fiedler, a artista têxtil que retrata cidades

Sola trabalhando na tapeçaria Vancouver

Miami, Atlanta, Las Vegas, Sydney e Vancouver foram transformadas em bordados enormes e hiper realistas pela artista Sola Fiedler. Os trabalhos de Sola são verdadeiros retratos feitos ponto por ponto e representam a cidade homenageada no tempo em que a artista esteve lá. Detalhes como o número de janelas de cada prédio, por exemplo, são observados por ela. Ela considera que isso possibilita que as pessoas se conectem com as tapeçarias, já que esses pormenores permitem que as pessoas observem a imagem formada pelas linhas e encontrem onde moram, onde trabalham e outros lugares que carregam significados pessoais.

Para retratar uma cidade é preciso mostrar sua arquitetura e as características físicas que fazem parte de sua paisagem e as relações humanas que acontecem naquelas ruas, prédios, praças e casas. São os detalhes que fazem a parte humana se tornar visível, já que são eles que possibilitam os moradores da cidade visualizarem suas histórias ali.

Tapeçaria Vancouver

Sola captura os elementos que compõem uma cidade através da observação e dedicação. Ela procura um local perfeito onde dê para visualizar toda a cidade e se imagina num helicóptero ou como uma águia e sobrevoa a cidade em busca do que irá retratar. Depois, ela anda e observa suas características. Percorre ruas e repara em cada construção e em cada árvore que encontra no caminho, às vezes tem que voltar em locais que já foi para analisar melhor. O processo dura cerca de dois a três anos.

Sola Fiedler nasceu em 1936 e cresceu em Londres durante e depois a Segunda Guerra Mundial. Nesse período, a reciclagem e a reutilização eram essenciais, já que a escassez fazia parte do cotidiano. O hábito que fez parte dos seus primeiros anos nunca a abandonou e seus bordados são feitos com fios de roupas que ela coleta, o que torna sua obra ainda mais única.

Seu lado artista só foi se manifestar de verdade após os quarenta anos. Antes disso, ela trabalhou no Canadá como pesquisadora científica e foi proprietária, junto com seu ex-marido, do The Riverboat Coffee House em Toronto. Esse café fechou em 1978, mas ainda hoje é lembrado por sua importância para a música folk. Músicos como Neil Young e Joni Mitchell se apresentaram por lá. Após se separar, ela se mudou para Vancouver e abriu o Soft Rock Café.

Seu trabalho artístico já foi premiado no Canadá e suas peças foram expostas em galerias. Além das cidades, ela faz peças abstratas, outras paisagens e fez uma adaptação da bandeira do Canadá.

Sola trabalhando

O bordado e outras formas de artes têxteis foram desvalorizados por muitos anos por serem vistos como femininos, mas há um fenômeno mundial de resgate, valorização e modernização dessas técnicas e temas e esse processo caminha junto com a recuperação de histórias de mulheres notáveis e de reconhecimento das mulheres num todo. Sola Fiedler é um dos nomes que merecem ser conhecidos. Por isso, tentei escrever aqui um pedaço de sua história e um pouco sobre suas lindas peças.

Tapeçaria Sydney

Saiba mais sobre ela em seu site oficial e assista ao vídeo sobre o processo criativo de Sola através do Vimeo. Acompanhe o trabalho dela também no Facebook e Instagram.


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“Mulher-Maravilha” e o impacto de ter uma heroína nas telonas

Quando eu era criança, assumia identidades diversas durante as brincadeiras. Lembro das várias vezes que fui Power Ranger Amarela, de ser bruxa, fada e até pesquisadora de vida extraterrestre da NASA. Num mundo em que o número de personagens femininas interessantes tendiam a zero, minha maior aliada sempre foi a imaginação. Eu criava as personagens que me agradavam e adaptava as histórias dos desenhos para que as que já existiam tivessem vez nas brincadeiras.

Nessa época, eu até tinha ouvido falar da Mulher Maravilha, mas ela não me interessava muito, já que eu via esse nome ser mais usado para se referir às mães do que para falar da heroína da DC Comics. Ela nunca fui um ícone para mim, jamais me serviu de referência, mas para as novas gerações ela será.

Mulher-Maravilha” foi o primeiro filme de super herói dirigido por uma mulher e teve a estreia mais lucrativa de uma diretora nas bilheterias americanas até hoje. Os recordes de bilheteria batidos pelo filme dirigido por Patty Jenkins podem abrir caminho para mais protagonistas femininas no cinema e aumentar a contratação de diretoras para filmes de maior orçamento.

A indústria do cinema ainda considera que apenas histórias masculinas — e brancas — interessam e duvida da capacidade de direção das mulheres. Patty Jenkins, que dirigiu “Monster — Desejo Assassino”, não podia falhar e sabia disso. Quando abriu mão da direção de “Thor: O mundo sombrio”, ela comentou que fez isso porque sabia que se o resultado final não fosse bem aceito, o peso disso seria bem maior por ela ser mulher. “Eu pensei que se eu dirigisse o filme (Thor 2), seria um grande desserviço às mulheres. Se eu assumir o posto sabendo que será uma enrascada, e o filme ficar ruim por minha causa, será um grande problema. Se isso acontece com um diretor homem, é apenas mais um erro do estúdio”, ela afirmou. As mulheres carregam o fardo de que seus possíveis erros e dificuldades sempre serão usados para desqualificar todas as mulheres. A cineasta sabia que se “Mulher-Maravilha” fosse um desastre, diriam que mulheres não sabem dirigir e que ninguém quer ver uma heroína nas telonas. Felizmente, isso não intimidou Patty Jenkins. Nesse projeto, ela acreditava.

O impacto do filme vai bem além da indústria do cinema, já que até eu, que tenho 27 anos e nenhuma ligação prévia com a heroína, saí do cinema me sentindo pronta para enfrentar o mundo. Diana Prince cresceu na ilha de Temiscira, cercada por amazonas e recebeu um treinamento intenso por parte de sua tia Antíope. Sua postura ao sair de onde sempre viveu não é de medo e, mesmo sem saber as regras implícitas do mundo fora de sua ilha, ela não se sente intimidada numa Londres que trata mulheres como inferiores. Mesmo subestimada, ela confia em si e em sua história e faz sempre o que quer e acredita.

Fora da ilha de Temiscira, mulheres são criadas prontas para duvidarem de si mesmas. Depois de anos sendo interrompidas, ignoradas e subestimadas, nós acabamos perdendo a capacidade de acreditar que somos capazes. A insegurança é um elemento feminino no mundo que faço parte, mas sei que pode ser diferente. Ver a Mulher-Maravilha nas telonas, e acompanhar a história de coragem de Patty Jenkins ao assumir a direção desse filme, apesar de toda pressão, me lembrou disso.

As meninas de hoje terão Diane Prince, Katniss Everdeen, Moama, Rey e muitas mulheres reais para se apegarem quando o mundo machista disser que elas não são capazes. Elas não precisarão criar personagens femininas quando quiserem um papel maior numa brincadeira, já que a cultura pop está se tornando aos poucos um espaço que nos sentimos parte. Com esse contato com protagonistas femininas, os meninos vão aprender que mulheres pertencem ao mesmo mundo que eles e que são tão aptas quanto eles a realizarem inúmeras tarefas. Ainda assim, as meninas de hoje não estarão livres de passar por muitos desafios que o machismo e outras opressões trazem, mas o caminho para a mudança está sendo traçado em todos os espaços e, com tantos exemplos reais e imaginários, elas saberão como resistir.


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“As cientistas” e o poder de descobrir que mulheres também mudam o mundo

Capa do livro “As cientistas — 50 mulheres que mudaram o mundo”. Adquira seu exemplar aqui.

Quando eu era criança, uma das coisas que eu gostava de fazer era passar horas e horas numa praça próxima da minha casa. Ali eu brincava na areia, no parquinho, jogava bola e observava insetos e plantas. Depois, o inseto observado era eternizado num papel com meus traços e ganhava um nome criado por mim, que era válido até eu descobrir a espécie dele ao consultar os livros de biologia do meu padrinho. Eu fazia isso por curiosidade e porque queria descobrir um animal ainda não encontrado. Adulta, por meio do livro “As cientistas”, escrito e ilustrado por Rachel Ignotofsky e traduzido por Sonia Augusto, descobri Maria Sibylla Merian, uma alemã que nasceu em 1647 e marcou a história da ciência com as descobertas que fez sobre insetos. Com a observação e a ilustração, ela documentou a metamorfose da borboleta e classificou diversas novas espécies dessas criaturas.

Entre as muitas profissões que pensei em seguir nessa época, as que se destacavam se relacionavam com minha curiosidade sobre fósseis e rochas. Eu tinha no quarto uma pequena réplica de um esqueleto de Tiranossauro Rex e, como brincadeira, adorava procurar e colecionar pedras diversas. Sabendo que sou de Minas Gerais, muitos podem se enganar e achar que o meu gosto por pedras e escavações se relacionava com ouro, diamante e esmeralda, mas a fonte disso tudo era meu amor por dinossauros, o fóssil Luzia ter sido encontrado relativamente perto da minha cidade, um documentário que vi sobre vulcões e uma visita às Grutas de Maquiné e Rei do Mato. Adulta, mais uma vez com o livro “As cientistas”, conheci a história de Mary Anning, uma inglesa nascida em 1799, que colecionava fósseis e foi uma paleontóloga. Ela descobriu os primeiros esqueletos de ictiossauros e de plesiossauros e seu trabalho foi importante para ajudar a provar que a extinção acontece.

Durante a leitura do livro de Rachel Ignotofsky, eu lembrei muito da minha infância e a cada nome e história que eu descobria, eu pensava em como saber disso antes poderia ter me feito bem. Apesar de ter inúmeras anedotas para contar que se relacionam de alguma forma com ciência, em algum momento da minha história, eu aprendi que esse espaço — e muitos outros — não era pra mim. Eu conhecia Einstein, Pitágoras, Tales e Galileu, ouvia falar dos navegadores com nomes masculinos e dos tantos presidentes homens da história e, sendo mulher, um dia tudo isso começou a soar como se eu fosse uma intrusa num mundo de homens. Se eu tivesse em minhas mãos essa obra há vinte anos atrás, talvez eu fosse uma cientista hoje ou apenas confiaria um pouco mais no meu taco.

Escrevo e pesquiso sobre mulheres notáveis há algum tempo. Faço isso por considerar essencial que mulheres conheçam a sua história e que homens aprendam a reconhecer meninas e mulheres como tão capazes quanto eles. “As cientistas” tira a cortina da invisibilidade de diversos nomes de mulheres que fizeram ciência e prova, para aqueles que ainda duvidam da capacidade feminina de descobrir, pesquisar e estudar, que somos inteligentes e curiosas.

Nomes conhecidos como Marie Curie, Ada Lovelace e Hipátia dividem espaço com Mae Jemison, Katia Krafft, Sau Lan Wu, Annie Easley e outras. Além das mini biografias, têm glossário, linha do tempo e dicas de fontes para quem quer pesquisar sobre. Quem gosta de saber mais sobre história das mulheres ou sobre descobertas científicas vai adorar ler esse livro e apreciar a linguagem didática, as fofas e coloridas ilustrações de Rachel e a linda edição que a editora Blucher preparou.


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Assunto: Um cotidiano transformador

Para: lisatsilveira@empresaficticia.com.br e outros 57 contatos.

Poltrona bonita by namedesignstudio on Etsy

Tudo começou há uns dois meses atrás, cheguei em um restaurante sozinha e tentei chamar o garçom várias vezes sem sucesso.

Eu olhava para o garçom, que me ignorava, e tinha certeza que se surgisse moscas, ele daria atenção para elas e não para mim. Sabia, inclusive, que se ele notasse um pernilongo, ele mataria para só depois conferir se era ou não um aedes aegypti. Ali, eu era mais invisível que um inseto.

Meu namorado chegou e o garçom veio todo solícito. Só registrou meus pedidos quando o meu parceiro os repetiu. Fiquei visível por um único momento: quando a Coca Zero do meu namorado chegou. O garçom a colocou na minha frente e eu pensei “Ele já não me vê e quer que eu diminua ainda mais?”. No fim desse dia, minha mobilidade estava prejudicada. Eu senti meus ossos mais duros, menos flexíveis, menos móveis. Minha bunda estava quadrada quase no formato da cadeira em que passei o jantar sentada.

Depois, durante uma happy hour com o pessoal do trabalho, essa sensação se repetiu de forma ainda mais intensa. Sentei na mesa com Marcos e Guilherme para ver um jogo do Atlético na TV e, toda vez que eu fazia algum comentário, eu me sentia invisível como eu estive para o garçom. Durante o intervalo do jogo, eles conversavam entre eles sobre o primeiro tempo como se eu não estivesse ali falando. Em algum momento dessa noite, olhei de relance para meu reflexo no vidro e me vi transformada numa cadeira de bar.

Hoje aconteceu de novo. Eu estava numa reunião do trabalho apresentando alguns relatórios, análises e ideias. Todo mundo olhou para mim e me ouviu até que eu sentei na mesa. Quando terminei, Guilherme se levantou e apresentou seus dados. Quando Michele foi fazer o mesmo, meu chefe não percebeu a presença dela e seguiu a reunião discutindo os pontos levantados pelos funcionários anteriores. Incomodada e sem graça, ela se sentou novamente, coisa que só eu pareço ter visto.

A reunião seguiu e meu chefe começou a falar dos meus relatórios, análises e ideias como se fossem conclusões do grupo e não minhas. Quando fui me manifestar sobre, notei que tinha perdido a voz.

Eu gritei sem sair som, gesticulei e quando fui me levantar, percebi que minha bunda e minhas pernas agora eram feitas de um estofado macio. Desesperada, olhei para Michele e ela tinha se tornado uma linda poltrona estampada.

A reunião acabou e todos saíram sem perceber nossa ausência.

Ainda tenho cabeça, braços e mãos e consigo escrever esses estranhos acontecimentos em meu computador. Mas me pergunto até quando, já que mais cedo ou mais tarde alguém vai acabar sentando em cima de mim como acabaram de fazer com a Michele.

Logo, meu nome deixará de constar nos documentos de recursos humanos da empresa e uma poltrona elegante assinada por Carla Silva Cunha e José Costa Madeira, meus pais, será incluída no ativo não circulante da firma.

Quando eu terminar de virar poltrona, eu serei azul marinho com poás pequenos e brancos. Estou na Av. Afonso Pena, no prédio 1208, 3º andar, sala 12. Acredito que voltarei ao meu formato humano se alguém falar meu nome ao me ver poltrona.

Me ver é essencial para que eu volte a ser gente. Me ajudem.

Atenciosamente,

Marília Cunha Madeira.

mariliacmadeira@setorempresarialficticio.com.br

PS: isso não é uma pegadinha.

Enviado às 16:32, 12 de abril de 2017.


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Descobrindo vozes

Daniela Vaz

Lady Francisco, atriz de 82 anos, já havia relatado no passado que sofreu dois estupros em sua vida e recentemente falou mais sobre. Disse que foi estuprada por um diretor da TV Globo há cerca de 50 anos e ao ser perguntada sobre o porquê de não ter denunciado respondeu: “Naquela época? Quem acreditaria em mim? Iam dizer: “Essa aí, mal chegou e já está aprontando”. Mas hoje eu faria um escândalo”.

Ela comentou também que admira o quanto mulheres tem lutado contra a violência sexual: “Tenho muito orgulho de ver o quanto a mulher evoluiu na defesa da própria dignidade. No meu tempo, a gente era estuprada e tinha de ficar quieta; hoje, um assédio repercute de tal maneira que o agressor tem de reconhecer publicamente”.

Apesar dos números de violência contra a mulher continuarem altíssimos, do machismo ser a nossa realidade e da culpabilização das vítimas de violência de gênero ainda guiar maior parte da sociedade, as coisas estão mudando lentamente. A fala de Lady Francisco evidencia isso.

O discurso do “não é não” está na boca das mulheres, juntas estamos aprendendo que a culpa da violência que sofremos não é nossa e vendo que apesar de muitos continuarem nos culpando, há quem nos apoie. Estamos assimilando que é preciso apoiar umas às outras e somando nossas vozes na hora de denunciar a violência sistêmica que nos acomete.

Quando uma mulher faz uma denúncia, bota a boca no trombone, outras mulheres se sentem encorajadas a também denunciar, falar sobre, quebrar o silêncio. Nossas histórias estão, enfim, saindo debaixo do tapete. E esses relatos nos ajudam a compreender que o machismo é estrutural e que é preciso combatê-lo em todas as esferas. Essa tomada de consciência é o que nos faz perceber a importância de colocar em prática a frase “Mexeu com uma, mexeu com todas”.


Publicado originalmente em minha página do Facebook.

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